o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009


a cisterna contém: a fonte transborda

de tudo retiro água

pra fazer funcionar o poema

mesmo da estátua enferrujada

de william blake dentro de um livro

se nada posso tocar na colheita

transgrido: roubo desfruto rapto

sem que nada aprenda & nada ensine

apenas espero veneno da água parada




anti-receita

rara é o palavro

raso o armadilho

rala é o pálpebro

roto o maravilho




curriculum mortis

fiz-me ao mar amargo da palavra

a morte é um cálice

cheio de silêncio

contamina o que antes fora água –

ferrugem rara sobre a relva

soletra-me seu nome

entre as pedras

o vento irado: espada afiada de dois gumes

ousa badalar os sinos que agonizam

tira dos gonzos a própria terra

consolador das crianças mortas

palavras afogadas no ódio





signé ana c.

toquei minha mão justo na mão de ana
portas nos separam ou nos mudam de lugar?
agora me pergunto se a presença do corpo é mesmo dispensável
não saber estilhaça meus sentidos
giro em torno do vazio feito um cão atrás da cauda
(quando criança costumava encher o rosto de creme
sempre foi de longe a mais vaidosa
musa transviva do amanhecer
depois namoro na praia & na montanha
a dor de pegar o avião & ir embora
a mãe amélia disfarçada em luiza
luz é símbolo da beleza absoluta)
vivo sem saber como vai ser o dia
uma escritora está sempre atrelada a seu personagem
ensaio palavras em francês pra ela ouvir
recados luminosos espalhados pelos quatro cantos do mundo

seleta do livro "não era suicídio sobre a relva"
ney ferraz paiva (2000)

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O Ver-o-Peso não dorme tranquilo



Quando a claridade diz, eu sou a escuridão,
disse a verdade.
Heiner Müller

para Evandro Pinto, capitão de breve curso das noites & ruas de Belém

“Adolescendosolar” não é algum neologismo barato, menor, de que se vale um escritor estreante pra compensar sua insegurança ou mesmo sua falta de talento. É só um jeito de corpo que a escrita de Luizan Pinheiro dá pra passar entre, pra atravessar e seguir adiante suas tramas simples, quase sempre chocantes. E esse jeito de ir entre e não de se guiar sempre fascina. De não pedir licença, não se medusar com o outro, com o estabelecido. Luizan Pinheiro vai em frente e não faz rodeios. E não quero dizer com isso que “é direto”, mas que sabe que a maior parte das histórias que conta (tratam-se evidentemente de histórias), dos protagonistas, dos cenários, está à partida condenada ao esquecimento. Mas é isso mesmo. O conto não é algo como uma escrita de jornal? Ele não sobrevive ao próprio cotidiano que aborda, este é sempre maior. Sua estatística, escuridão, pesadelo? Luizan não tem doces ilusões. Sabe que o sonho dura apenas uma noite. Logo é o dia que devora. Logo é a vida e sua comédia desmaquiada: fome, solidão, gravidez, tiro, morte. Eventualmente um João Antônio Ferreira Filho (quem?!), dá o ar da graça. O João Antonio de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, livro que, ainda inédito, sobreviveu até mesmo a um incêndio na casa do escritor. Tirado do fogo e das cinzas. No Brasil o grande livro nos chega quase sempre por acaso ou por milagre. Não tem política de incentivo, nem lei que mude isso. Os burocratas do Ministério da Cultura não têm imaginação – eles apenas fantasiam números e organogramas. As zonas inexploradas, Acre, Roraima, Amapá, Amazonas etc., permanecem. Esse enredo é algo velho, mas real e cruel.

Luizan vai por essas distâncias com o pouco que tem às mãos, escreve, dá aulas, paga do próprio bolso a modesta edição do livro – sai, dá um pique, um ziguezague pela cidade: o urbano, o subterrâneo, o deserto escuro em 22 contos ou quadros, por vezes, quase reportagens, crônicas de uma Belém dos anos 1990 ou, quem sabe, de uma Berlim dos anos 1970. O tempo é pendular, já os acontecimentos, os fatos, concretos. Não que Luizan não tente a oposição quando os descreve, pra transformá-los ou traduzi-los em outra forma. Recorre à visualidade, à musicalidade. Esgarça e restringe o ritmo. Amesquinha a personagem. Escrita, grafite, música. A descrição torna-se intensa e vívida. A paisagem, sempre um lance entre o real e o virtual, é quase perceptível e os perigos parecem autênticos. De súbito, se pode revisitar as narrativas de “Crônica de um Amor Louco”, de Charles Bukowski ou de um Heiner Muller, de “História de Amor”. As vozes, as vozes proliferam. Em “Pega leve, minha mão”, um dos contos de Luizan, Marina bem poderia dar outro desfecho pro amor que “vai se gastar” do confundido João P., personagem de Müller. A “garota” que João P. conhece numa estação de Berlim, bem poderia ser Marina. Marina enquadrada nos olhos gulosos de João P. Marina andando de um lado para outro na plataforma. Marina ao lado da banca de jornais, olhando na direção de onde o trem deveria vir. Tem pernas bonitas, a Marina, pensa João P. Marina que permanece enquadrada na sacada pelos olhos gulosos de Patrick. Ele leva vantagem sobre João P. Mora no mesmo condomínio e estuda na mesma escola de Marina. O cabelo dela parece com o da professora de inglês. Patrick sabe. E curte Legião Urbana tanto quanto ela. “Quem me dera ao menos uma vez ter de volta todo ouro que entreguei a quem”... João P. que amava Marina que amava Patrick que amava... Parece por instantes que os três podem viajar dali. Belém-Berlim-Rio de Janeiro. Os acontecimentos, os fatos não parecem tão concretos assim. A escrita de Luizan nos leva a um set de filmagens. A leitura vira cinema que vira escrita e outra coisa que se quiser, tantas as dobras, os fluxos e ângulos. A mesma duplicidade de dia e noite duma novela de Camus. Sol e Lua. Um pouco de cada coisa que vive contamina outras paisagens. Variações e virações. Contextos em decomposição, cidades, gêneros literários. As tramas não são tão simples assim. Há vários e sinuosos patamares de tempo, espaço e personagens. Os meio poderiam ser mais sofisticados – os aplausos da crítica assim exigem. Luizan, num próximo livro, deve alterá-los, mas não apenas por isso. Ele está atento às ondas de mercado, mas também e principalmente às camadas sucessivas, aos movimentos de uma escrita que devora tudo por onde passa.

Luizan não quer diminuir distâncias, quer percorrê-las. Ele avança pelo deserto sem saber o que vai encontrar pelo caminho. Foge o quanto pode do explícito, mas também não busca salvação nas metáforas. Olha ao redor, em busca das dores e dos medos que por vezes fingimos não saber, mas que são inevitáveis. Nas histórias de “Adolescendosolar” (serão mesmo histórias?) Luizan não se coloca como se estivesse de posse de um terrível segredo. Nada que escreve o consome pelo que não pode confessar. Tudo sabemos de antemão. Está em nós, ao nosso lado. Na rua, na praça, na feira. Nalgum lugar. Uma escrita que se mistura aos sons entranhados em nós. Não é um écran mudo, mas um concerto das ruas e das pessoas. Ver-o-Peso. Estrada Nova. Jurunas. Pedreira. Guamá. Beco do relógio ou Gogó da onça. Chuva, pôr-do-sol, letreiros, paredes, pichação. Assim é a cidade em sua inevitabilidade, vulnerabilidade e medo. São estas as imagens, sem simulações e retoques. Com seus focos de violência ou mesmo tornadas por inteiro uma intensa periferia. Não habitamos mais, coabitamos, apequenados, a um só tempo claridade e escuridão. E que tipo de realidade é essa? Qual é o lugar da escrita em meio a isso? Quais as diferenças e semelhanças que se acentuam? Sem dar as respostas, ainda que sempre muito atento (não à mobília, às roupas, aos objetos, senão à vida) Luizan Pinheiro toca por todos nós a flauta de sua coluna vértebra.

Ney Ferraz Paiva
Palmas dezembro 2009

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009



Conheci o Chico Espinhara uma certa noite em Castanhal, cidade próxima a Belém, lá pelos idos & corroídos anos 1980. Líamos poesia já nem sei mais onde, num lançamento, nem sei mais de quem. Batemos papo, tomamos umas, todas. Ele me falava do Recife, cidade com que também tenho íntima relação. Os tempos eram insípidos para os poetas. E tudo passou. Pra minha surpresa, quando fui lançar “Nave do Nada” no Recife, em 2004, nos reencontramos noutro lançamento, o do poeta Erickson Luna, promovido pelo Movimento Escritores Independentes de Pernambuco, lá pras bandas de Afogados, conduzido até á por ninguém menos que Pedro Américo de Farias. Conversa-vai-conversa-vem terminamos por rememorar o encontro de tantos anos atrás. Escutei atento e comovido Espinhara falar de suas angústias, impaciências, inquietações com a literatura, sua produção, as novas edições que se fazia dos poetas marginais da cidade. Apresentou-me a vários desses poetas, seus amigos. Todos trabalhadores, sempre com um poema novo pronto pra recitar. Poesia demais, gente demais, suportamos demais. As consequências da paciência. Dei a ele um exemplar da “Nave”, ele me fez outra presença, e fomos embora mais uma vez pela noite. Perdidos numa sintonia estranha com a poesia e a vida. Os tempos seguem insípidos para os poetas. E tudo passou. Agora me surpreendo com a retrospectiva “notícia” da sua morte, ocorrida a 13 de fevereiro de 2007, em pleno carnaval.

Não vou a enterros.
Que o morto
Se guarde no que é seu.
Se incorro em erro,
Perdoem-me: irei ao meu.

Bom saber que seu “Sangue Ruim” saiu logo no ano seguinte (2005) e “Bacantes” em 2006. Um poeta múltiplo e indisfarçavelmente ativo em seu niilismo. E um Nordeste imenso onde tudo parece estar contra. E está.

FANTOCHES

Os fantoches da rua Sete
Seguem cegos na procissão.
A puta diurna da Palma
Traz uma venérea na alma
E uma cova diária na mão.

Da Ponte Velha a secular ferrugem
Reticente ao trajeto branco da nuvem
Come o estrado, o arco, o vergão.
Os poetas esquecidos no beco
Transam sangue a trago seco.

Dormem como trapos sobre o chão.
Recife, musa, maldição
Cadela suja, traiçoeira
Seta certeira
Encantada cidade do cão.

Cidade porvir, poeta de prefigurações. Um amálgama de noites sem fim.

Ney Ferraz Paiva

sábado, 19 de dezembro de 2009

Ó ASPÉRRIMO DEZEMBRO!

(duas ou três coisas que posso falar sobre a Bolsa Maximiano só espero que alguém tenha coragem de escutar)


Escrivaninha de Machado de Assis


Não pretendo cumprir com este texto um parecer, muito menos a função ou repressora ou tirana daquele que afirma que leu e não gostou. Porque li com interesse e atenção (eu me reservo à surpresa). Faço questão de deixar isso claro. E enquanto lia as obras a mim entregues para avaliação neste certame de 2009 da Bolsa de Publicações Dr. Maximiano da Mata Teixeira, categoria "Obras de Ficção", passava pela minha cabeça e pelos meus ouvidos Adília Lopes, assim: “Não gosto tanto/ de livros/ como Mallarmé/ parece que gostava/ eu não sou um livro/ e quando me dizem/ gosto muito dos seus livros/ gostava de poder dizer/ como o poeta Cesariny/ olha/ eu gostava/ é que tu gostasses de mim...” ou: “Um desgosto de amor/ atirou-me para um/ curso de dactilografia/ consolo-me/ a escrever automaticamente/ o pior são os tempos livres” e ainda: “A vida/ é livro/ e o livro/ não é livre/ Choro/ chove/ mas isto é Verlaine/ Ou:/ um dia/ tão bonito/ e eu/ não fornico”. Eram essas guinadas que eu esperava encontrar, ler, ouvir em alguma página: a liberdade de criar o que se quer, um livro a seu jeito, quase outra coisa, esquisito, misturado ao disfarce da própria coisa que se inventa indiferente a quem cria, ao lugar, ao tempo – sua esquivança e deriva. Um livro que não tivesse a tarefa de dizer as coisas. Defender uma verdade. Comprar-vender. Um livro que desaparecesse nas suas fendas, nos trajetos tortuosos da imaginação. Ir à praia, ir à marte, não ir, rir disso tudo. Que escrever, é bom que se diga, não é o mesmo que ter pronta uma escrita. Ainda que todos almejem ser escritor. Ainda que haja quem escreva para vencer um certame e se acredite apesar de tudo em vitórias literárias. Ainda que se publique aos montes por aí o menor, o ruim, o impublicável. Mas não é disso que se trata quando se trata de escrever. Aí nem o limite da escrita pode delimitar o que se tem a fazer. Passa-se para o outro lado, o aberto. Para “fazer ouvir a linguagem”, como diria Michel Foucault. Mas preciso dizer que quase nada desse esgarçamento, da distensão das vozes poéticas e narrativas reverberaram nos textos que me chegaram às mãos – antes o estético se me escapou. Claro, houve o fazer da forma, da rima, de uma habilidade ou outra. Por vezes o personagem era tão sedentário que a narração mais que paralisada dava-se paralítica. Máquinas de escrever e ouvir a escrita que se emperram. E eu me voltava a meus autores em fúria, de tanto que os quero ler pelas noites e dias, sempre. A voz nômade de Vergílio Ferreira. “Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordado-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olha para aquele sítio depois que ficou só. E pensava: “verei dali a janela do meu quarto”. Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quantos estamos? É Inverno, Dezembro, talvez, ou Janeiro. Tiro a neve com uma pá, traço o rectângulo e cavo. Dois cães assomam à porta do quintal, chupados de ódio e de fome.” A essa voz que se propaga na estepe e no deserto dei ouvidos aos tons estáveis, idênticos e constantes, sem surpresa e espanto da fala que menos que documenta desloca o leitor de uma mesma direção, do ambiente fechado na mediocridade dos dias que correm. E do raro e difícil ofício que é a escrita sei, penso que sei, quero acreditar que seja possível que eu saiba, por insistir, perseverar, obstinar-me em ser leitor e em escrever, que a questão primeira da escrita não é nem será o publicar, o arquivar, o tornar memória, mas o ir inventando com a escrita um território, abrir em seus nervos uma marca. E a esse lugar não se pode premiar antes que ele exista, nem eu, nem o Estado, nem os amigos, nem a família, nem o jornal, nem a academia. Ter na escrita o seu lugar, que ele exista e que por ele se transite, se jogue e se aventure. Palavra por palavra, os lugares a mim apresentados neste certame ficaram inconclusos, incertos, indefinidos. No sentido de que infelizmente não foram inventados. Lugar da beleza ou lugar bárbaro, transitável ou de difícil acesso. Tecido em grosso tear. Continuaremos a procurá-lo. Todos. Eu. Vocês, outros. Sabemos: alguém está a escrevê-lo, a inventá-lo. Onde? Quando? Refazem-se os mapas da arte com energia, mas em silêncio.


Ney Ferraz Paiva

sábado, 12 de dezembro de 2009



imagens pesam mais do que o mar
1.
ela não ri
move-se rapidamente esquiva
de um lado a outro como se fizesse fotos
anda a casa pés trocados olhar confuso
faz uma foto dele (pra o deter de quem?)
fisicamente opostos um ao outro
o mundo vira de ponta-cabeça
a noite cai silenciosa sobre eles


2.
ele a olha com uma expressão vazia
voz baixa falando devagar
diz que tem um problema enorme
que precisa urgentemente viajar
(o mar, o fogo, a raposa...)
“ou quem sabe de um bom xampu anticaspa”
ele sempre diz isso pra fazer as pessoas rirem
ela não ri


3.
ele pergunta “por que você não sorri?”
desde pequena não sabe rir dos pequenos dramas
não sabe rir se alguém está sofrendo
perto dela – por causa dela
pra ela o inferno é isso
ele pouco sabe a respeito
nunca prestou muita atenção
ela faz mais uma foto dele
espera detê-lo a seu próprio enigma


ney ferraz paiva juazeiro 19.11.2009
imagem circlegal
O poeta Lew Welch deixou um bilhete suicida


Em uma referência a Bartleby, o famoso escrivão do conto de Herman Melville (aquele que nega os trabalhos devidos, respondendo sempre com: “Prefiro não fazer”), Jack Kerouac dizia que a beat generation era mais um conjunto de bartlebies solitários olhando para a civilização que simplesmente um bando de nômades, boêmios e hedonistas outsiders aspirantes a artistas vivendo de bar em bar.
Da geração que ficou famosa pelos livros de Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs, Lawrence Ferllinghetti e Neal Cassady, Lew Welch foi o menos notável. Um poeta desconhecido que teve uma promissora carreira literária interrompida por uma baixa autoestima.
Nascido no dia 16 de agosto de 1926, em Phoenix, Arizona, Welch se encontrou com Gary Snyder e Phillip Whalen no Reed College, em Oregon, onde, segundo Aram Saroyan, no livro Genesis angels: the saga of Lew Welch and the beat generation, resolveu tornar-se escritor após ler a novela “Melanctha”, a mais longa das três histórias de Três vidas, de Gertrude Stein. Ainda no Reed College, o poeta William Carlos Williams teria lido seus poemas e o incentivado a publicar uma tese sobre Stein.
Depois do Reed College, Welch se mudou para Nova York, onde trabalhou com publicidade. Com a aparição de seus problemas emocionais, resolveu se mudar para a Flórida, onde começou uma terapia. Pouco tempo depois, ingressaria na Universidade de Chicago, para estudar filosofia, voltando a trabalhar com publicidade. Foi nesse período que aconteceu, em outubro de 1955, a lendária leitura de poesia na Six Gallery, na Fillmore Street, em São Francisco, marco do movimento beat.
Em uma tentativa de voltar à cena, Welch retornou para a Califórnia, passando a viver com Snyder e Lawrence Ferlinghetti. Dizem que Kerouac – que fazia referência aos amigos em seus livros retratando-os em personagens (William Burroughs é, por exemplo, o Old Bull Lee de On the road e o Frank Carmody de Os subterrâneos; Lawrence Ferlinghetti aparece como Lorenzo Monsanto em Big Sur; Allen Ginsberg é Irwin Garden, no mesmo livro, Carlo Marx em On the road, e Adam Moorad, em Os subterrâneos) – se inspirou em Welch para elaborar o personagem Dave Wain, de Big Sur.
Em maio de 1971, Welch cometeu suicídio durante uma estada na casa de Gary Snyder, em Nevada, Califórnia. Seu corpo nunca foi encontrado. Apenas um bilhete, descoberto por Snyder: “Não fiz nada direito e agora traio amigos. Não posso fazer nada – nunca pude. Tive grandes visões, mas nunca consegui transformá-las em algo digno. Don Allen deve ser meu executor literário. Tenho dois mil dólares em um banco em Nevada – que deverão ser usados para pagar minhas dívidas. Não devo nada a Allen G. ou para minha mãe. Vou para o sudoeste. Adeus. Lew Welch”.


Fonte: Jornal do Brasil, 12/10/2009

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

A DISCRIMINAÇÃO COMO UMA DAS BELAS-ARTES (porque Lúcia Rocha não é hoje Presidente do Conselho Estadual de Cultura)

"Senhor piedade pra essa gente careta e covarde" (Cazuza)

Vamos ao ponto: de tudo que vi e ouvi (uma vez que sou suplente e no Conselho Estadual de Cultura só falam os titulares) só pude compreender que houve discriminação contra o fato da Vice-Presidente Lúcia Rocha não poder assumir a Presidência do Conselho. Discriminação contra a mulher, a negra, a artista. Sobretudo por tratar-se de uma pessoa atuante, preparada e que não se omite na hora de cobrar, protestar e trabalhar a favor dos artistas e do interesse público, uma vez que deve ser essa a regra (se tiver que ter uma) de atuação de todo artista. Sabe-se lá o que é isso num contexto em que tudo o que os atuais gestores (!?) querem é tampar o sol com a peneira? É uma babaquice incontornável que se perca, digo, que se deixe desvanecer o momento de se reverter os desmandos (leia-se: roubos e crimes) praticados contra a cultura e a sociedade pelo Senhor Júlio Cesar Machado e seus asseclas – o tal Júlio das Machadadas contra a cultura do Tocantins, encastelado na Torre sobre a qual ainda pairam antigas nuvens negras. Ser artista hoje no Tocantins é ser um verdadeiro otário. O cara, engomadinho, colarinho branco (sacam, né?), pretensioso, põe a mão, ou melhor, mete a mão nos suados recursos (leia-se: dinheiro, mufunfa, grana), frauda e mente. Ou parodiando os fuzileiros navais de volta do Vietnam: “Enche a pança e enraba a cultura”! E tudo bem. E ainda demite a funcionária que o denunciou à justiça (até hoje não readmitida). Mas que justiça? Se por uma outra faceta dessa mesma história vem outro e te pretere porque não vai com a tua cara ou por causa da tua cor de pele ou pelo teu sexo. O que será que esses Senhores tanto temem? Uma mulher? Não deve ser, não deve ser. Por certo esses Senhores nem mesmo são racistas. Não devem ser, não devem ser. Estes Senhores apenas pensam que o Conselho de Cultura é uma adjacência de seus cargos, dos seus propósitos ou um anexo da Fundação Cultural. Ou seja, um mero e inocente erro de perspectiva. Não sabem estes Senhores tratar-se o Conselho de um colegiado de ideias e pensamento. De debates. Será isso que temem? Onde está escrito (e por que razão estaria?) que representante da sociedade civil não pode atuar como presidente do Conselho? Que tem que ser servidor público. Tais medidas, entendimentos e práticas obliteram o desenvolvimento humano e cultural do Estado. Apartam-nos das ressonâncias sempre benéficas e produtivas que a liberdade e a independência significam para o pensamento não pensado, para o novo e o diverso que toda sociedade civilizada espera dos seus artistas. Por que aqui não pode ser assim? Somos capazes de celebrar e nos identificar com o fato de um negro assumir a presidência de um país onde ele é absoluta minoria e, numa escala menor, mas como parte das mesmas causas e efeitos, não temos sensibilidade para ver força, potência quando o mesmo pode se dar bem junto a nós. Pior para todos, mas nem tanto para nós, artistas, que fazemos o que nos é dado fazer de um jeito ou de outro, mesmo sem fundo de cultura, lei de incentivo, getons, cachês, ou seja, fazemos contra tudo e contra todos o que fica e permanece. Pior para o Estado censor. Para os oportunistas. Os carreiristas. Os míopes por vocação. Os que nem vocação tem e aí se aferram por um pagamento particular, servil. Os que não sabem discernir entre o certo e o errado, desde que "certo" esteja para eles e para os seus. É disso que se trata? Então um outro refrão poderá ser entoado em meio ao caos dos desmandos, conchavos, manobras, ao vale tudo do poder e sua lógica excludente: “Cultura ruim – sociedade pior”. Aproveitem! Aproveitem! O tempo dos pequis passa...

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

wittgenstein: um perfil


Eu disse a ele [Ludwig Wittgenstein]… que imaginá-lo como professor de escola primária, com sua mente treinada para a filosofia, era para mim como imaginar uma pessoa usando um instrumento de precisão para abrir uma cratera. Ao que Ludwig respondeu com uma comparação que me fez calar: “E você me faz pensar numa pessoa que olha através de uma janela fechada e não consegue explicar para si mesma os estranhos movimentos de um transeunte. Não sabe a tempestade que está caindo lá fora e nem que essa pessoa está tendo de fazer um enorme esforço para manter-se de pé”.
Foi então que entendi o seu estado de espírito.

Hermine Wittgenstein

sábado, 31 de outubro de 2009

a poesia de ana cristina cesar se encontra sempre no meio, entre as coisas boas que se faz na literatura pelo brasil – é um rizoma. fez da escrita mais do que a escrita, e aí se difere substancialmente do grupo de poetas da chamada “geração mimeógrafo” em que despontou, quase todos escrevendo para se tornar escritor. ana só conseguiu tornar sua a poesia, cheia de brevidade e intensa amplidão.

Cenas de abril (1979), Correspondência completa (1979), Luvas de pelica (1980), ao contrário do que os títulos possam sugerir, nada tinham de história privada; a poesia aí se lançava, desapegava-se das coisas feitas, repressivas, disciplinares – misturava-se à diferença.

por tudo isso, não se trata mais de colocar a notoriedade de ana na balança. 26 anos depois de sua morte, ela segue múltipla, no silêncio e na invisibilidade, na perpendicularidade, nas transformações possíveis, nas vigílias que prosseguem os que prosseguem, atentos passageiros da noite.

signé ana c.

toquei minha mão justo na mão de ana
portas nos separam ou nos mudam de lugar?
agora me pergunto se a presença do corpo é mesmo indispensável
não saber estilhaça meus sentidos
giro em torno do vazio feito um cão atrás da cauda
(quando criança costumava encher o rosto de creme
sempre foi de longe a mais vaidosa
musa transviva do amanhecer
depois namoros na praia & na montanha
a dor de pegar o avião & ir embora
a mãe amélia disfarçada em luiza
luz é símbolo da beleza absoluta)
vivo sem saber como vai ser o dia
uma escritora está sempre atrelada a seu personagem
ensaio palavras em francês pra ela ouvir
recados luminosos espalhados pelos quatro cantos do mundo

ney ferraz paiva, não era suicídio sobre a relva
fundação de cultura cidade do recife, 2000

terça-feira, 27 de outubro de 2009



ney ferraz paiva





tu me devolves um rosto


o túnel cego de um espelho


teu afogado corpo – grande peixe


maquiado pelas águas


secreta floração de areia e pedra


meu luto te levanta


como uma árvore um monte


o arco de beleza rejuvenesce


minha face – murada pela morte
 

juliete oliveira

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

EU SEMPRE FUI LOUISE BOURGEOIS



Antony fica na estrada entre Paris e Orly. Quando De Gaulle era presidente, foi construída uma enorme rodovia entre elas. Sempre houve acres de morangos nesses campos, acres de alface crespa para Les Halles. De repente se transformou numa região de tráfego intenso. A terra ficou caríssima, então o rio ficou aterrado e recoberto pela estrada.



Passei quinze anos sem ver a casa onde moramos. Quando voltei, com meus filhos, procuramos o rio, mas tinha desaparecido. Restou a lavanderia pública. E os choupos plantados por meu pai continuavam ali como testemunhas.


...


Minha relação com a guerra aparece no trabalho por meio da utilização de preto, o preto da guerra, que era o preto do luto. Para Franz Kline, com quem eu discutia e trabalhava, era a cor do final dos anos 40 e início dos 50. Ele não se interessava pela guerra, mas pelo preto. O que a guerra representou para mim foi que subitamente – e isso é documentado por dezenas de desenhos – vi tudo preto, caixões pretos, pernas pretas, pessoas pretas. Era o luto profundo pela guerra. Simplesmente isso.


...


Duchamp, Ozenfant , já nos conhecíamos, mas nos reencontramos quando fomos investigados por McCarthy em 1951. Tivemos destinos diversos. Duchamp tinha amigos poderosos e conseguiu se safar. Ozenfant era uma pessoa muito retraída, original e independente. Quando era atacado, revidava como uma criança. Por isso foi expulso do país a pontapés. Mas eu me defendi. Fui interrogada diversas vezes depois que me inscrevi para obter a cidadania. Minha defesa foi que não tive ligação com o que os homens com quem me envolvi faziam politicamente, nem conhecimento disso. E, felizmente, nessa época as mulheres tinham adquirido independência nesse sentido: eu não era considerada meramente a esposa ou a amiga de alguém. Eu era Louise Bourgeois. Eu sempre fui.



Louise Bourgeois, Destruição do pai Reconstrução do pai, Cosac Naify, 2000, Tradução Álvaro Machado e Luiz Roberto Mendes Gonçalves

domingo, 25 de outubro de 2009

Menores



Kant respondeu à menoridade com a maioridade. Para ele, deveríamos seguir nosso próprio entendimento e não ser dirigidos pelos outros. Pensou como conservar a liberdade de religião, de propriedade, Estado laico e autonomia do indivíduo (consumidor e cidadão). Foucault reviu as considerações de Kant pela inovação e as recolocou nos tempos de agora, como maneira de existir livre, fora do alcance dos seguidores. Andando com Nietzsche e Deleuze, pela diferença revoltada, seguir nossa razão é também se assustar com os nossos instintos, perseguir um devir minoritário, o menor como linha de fuga. Diante da sociabilidade universal com base na uniformidade consagrada no Estado laico ou na utopia da sociedade igualitária, Max Stirner contrapôs a associabilidade. Stirner encarou Marx e Hegel e afirmou a possibilidade da vida em associação. Nietzsche, de certa maneira tocado por Stirner, os revirou novamente, e falou de miríades de associações. Nietzsche e Stirner afirmaram diferenças revoltadas, a vida da associação, as amizades sem transcendentalidades, dissolvendo a separação público (amizade pela cidade) e privado (amizade entre assemelhados), a vida dos modelos. A arte de viver ultrapassa a pessoalidade burguesa do artista, a coletividade organizada burguesa ou estatal, e traz existências que abalam normalizações, legislações, regulamentações. A maioridade em uma era de controles com regulamentações, diplomacias, negociações, programas, modulações e convocações à participação não se obtém mais pela razão universal, o aperfeiçoamento moral, o projeto de paz perpétua, o socialismo e a glorificação da democracia. A maioridade agora é a outra menoridade.


Edson Passetti


Imagem: Gerhard Richter

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

E O FOGO LEVOU

Não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe. (Deleuze)



A obra de Hélio Oiticica pertence agora ao fogo e as cinzas. E não há nenhuma metáfora nem trocadilho possíveis depois do incêndio que nos arrancou de vez uma obra que jamais nos pertenceu. Hélio não coincidia em nada com a cena artística que irrevogavelmente domina o Rio de Janeiro e o Brasil inteiro. Tudo está pior. Corroído pela mediocridade obvia e ululante imposta pelas “políticas culturais”. Pela razão indolente dos “funcionários da cultura”, que não agenciam e não mais desejam, que nada têm a pensar de novo. A obra de Hélio era demais pra eles. Ele queria os fluxos, as ruas, as intensidades da vida. Ultrapassava os espaços pretensamente chiques e esnobes que cada vez mais dispensam as manifestações afetivas da arte pelo fervor do lucro e do marketing. Hélio odiava coisas que nos são próprias, que circulam por aí como infalíveis, tipo: “política cultural”, “plano nacional de (saúde da) cultura”, “conferência”, “seminário”, “fórum” etc. Hélio se colocava a postos, ativo, em combate, do outro lado, sacava seu revólver. Girava o mundo em torno de si. E, justamente por isso, afastava-se, lançava-se aos devires para fora de si. Pertencia realmente ao seu tempo, ao tempo nômade da arte, das evasões, dos riscos. Sem que tudo em sua vida fosse uma determinação ou uma origem. Teve o lance, por exemplo, da Tropicália. Uma tentativa possível de ziguezaguear a realidade e o território. Das velhas categorias que arte não soube ainda descartar, nem nós. Desde então tudo está pior. A arte, o artista, o público. A mente, o corpo. A vida. Ficamos agora sem este acervo positivo e múltiplo, móbile e móvel. Porque ainda somos uma cultura sedentária. Apequenada ainda mais que finalmente o fogo nos atingiu a alma. Tornamo-nos o que se é. Sublimados por mais uma novela das oito. Glorificados por uma olimpíada em que não poderá concorrer a angústia de uns poucos. O dogma segregativo da brasilidade não nos redimirá. E a esperança, nossa antiga vilã, fará o seu trabalho.


NEY FERRAZ PAIVA

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

















"ou Palmas (nunca fui a Palmas)"

Fiquei meio que sabendo que Caetano Veloso vem a Palmas, que já veio, não sei ao certo (não leio com frequência os “nossos” jornais). Em todo caso, pra quem faz cultura em Palmas fica um tanto quanto estranho saber que vai rolar um show de Caetano na cidade. Mesmo ele (como o título do texto demonstra) estranhou. Nossa realidade cultural nada tem a ver com Caetano. Ele aqui é um anacronismo, não por ele, claro, mas por nós. Pela nossa falta de costume. Pela infinita pobreza musical que nos domina. Pelo que não gostamos de Música, e sim de circo – não sabemos nem queremos saber que ela é uma língua que cria um real que não nos diz respeito, não nos inclui. O real da beleza, da alegria, do pensamento. Caetano vem a uma cidade que gasta o suado dinheiro público movimentando uma “indústria” mambembe de músicos medíocres. É por causa de uma excessiva generosidade verbal que a eles nos referimos como músicos. Quando muito são intérpretes do mau gosto, que nada conseguiriam se tivessem que tocar por uns trocados como fazem os malabaristas de sinal. Aqui, são financiados. Adulados. Faziam e ainda fazem fila na porta do gabinete do presidente da Fundação Cultural. A comentada porta dos sonhos, do "show dos milhões". E dizem por lá que agora a cultura será levada a sério. É brincadeira! Bem faz o artista Costa Andrade em lançar sobre eles “seus” fantasminhas ilegais, singela representação dos que por aqui recebem sem nada fazer. Sempre em "serviço externo" ou numa anababesca viagem pelo mundo, promovem violência, injustiça, atraso. Dizem que Costa Andrade levará um fantasminha a Caetano. Depois são os baianos que não gostam de trabalho...

ney ferraz paiva

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Raul Thadeu


"Nascer é muito comprido"
Murilo Mendes


Faleceu em Belém Raul Thadeu. Com ele somem coisas muito boas, que pudemos experimentar, rivalizar... Eu o conheci através do Samuel Pereira Campos, por ocasião de uma avaliação de um concurso de poesia da UFPA, creio que em 1994. Fomos a sua casa no bairro Reduto, espremida entre livros e a rua. Lá fizemos a avaliação dos poemas. E mais importante: constatei a desmesurada inteligência sobre as questões que ele era capaz de abranger numa mesma fala em torno de autores, livros, edições, enfim, o espaço literário. Lembro que ele orientava o TCC do Samuel Campos sobre James Joyce, já que os mestres medianos da universidade não sabiam de quem se tratava. Aquele encontro aproximava imagens multiformes de um mundo que a cidade abrigava. Descobri ali, para meu espanto, que Raul era pai do Paulo Ponte Souza, artista plástico e meu amigo. Com a chegada de Paulo, ele acabou entrando na roda dos jurados na avaliação dos poemas... A simples descrição daquela tarde, que se estendeu e varou a noite, é inoperante. E também não tem explicação tudo o que a partir dali se deu. Um lance de sorte meu – o acaso que sempre guiou os passos de Raul. Ou mais, bem mais. Pelas conversas, pelo desprezo ao sistema e ao ambiente literário, pelos porres, por não fabricar a fisionomia tranquilizante das coisas que devem ser, muito pelo contrário – pelo afeto e pela rispidez, pela extraordinária compreensão de autores próximos, como Max Martins, Vicente Franz Cecim, Ruy Barata e dos novos (lembro que, empenhados em produzir uma revista, fomos eu, Benoni, Yurgel e alguns outros incontáveis vezes a casa do Raul sem que ele nos atendesse jamais como um homem sobrecarraegado. Tempo depois apoiou e  participou da transposição da Revista Carlegárius para Polichinello). Por isso e muito mais, pelos embates e pelos combates, mas sobretudo pelas trocas (lembro mesmo que chegamos a “trocar” um raro exemplar que ele não tinha da poesia de Paulo Plínio Abreu por um Giacomo Joyce que, claro, até hoje conservo. Penso agora que de fato aquela tarde\noite e os sucessivos encontros-e-desencontros que se estenderam até a casa de Ana Lúcia, casa, não, corrijo-me: um mundo povoado docilmente por uma rara mulher, ex-esposa do Raul, nada disso teve e tem ainda a ver com sorte, acaso ou azar, tem a ver apenas com o movimento da vida, com as condições nada objetivas de uma vez ou outra se poder arrancar, trapacear, tomar para si, num único lance, o sete no jogo de dado.

Imagem: Paulo Ponte Souza



segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Pô, pai, ainda bem
que não é no Brasil

por Oduvaldo Vianna Filho

Deu-se o fato em Casa de La Madre Joana, país da América Latina.
Era feriado em Casa de La Madre Joana, todo mundo na rua, fazendo suas apostas. Era dia de eleição e sempre que era dia de eleição (a última havia sido em 1918, anulada) era feriado, e o povo fazia suas apostas.
– Quem será o eleito? Quem será o eleito?
Povo cheio de curiosidade pelas coisas da política.
A cotação eleitoral naquele ano era a seguinte:
– O eleito vai ser um do exército: 318%.
– Vai ser um da Marinha: 212%.
– Vai ser um da Aeronáutica: 32%.
– Um da Força Pública: 0,3% (opinião da esquerda positiva).
– Um do Corpo de Bombeiros: 0,1% (esquerda radical de Madre Joana).
Naquele dia, um deputado chegou à capital da Casa de La Madre Joana, foi chegando e perguntando: “Por favor, onde é o Congresso Nacional?”. Indicado, tocou-se para lá. Na porta do Congresso a maior balbúrdia. Uma porção de caçadores, vindos de todas as partes do mundo, querendo entrar. O porteiro berrava:
– Senhores, senhoras. Aqui se cassa deputado, sim, mas é o cassa com dois “s”.
Ninguém entendia. Um norueguês, com a maior espingarda, queria dar um tiro num deputado gordinho, o porteiro berrava, uma balbúrdia.
O deputado, recém-chegado, passou ao largo e foi falar com o Líder da Maioria. (Em Madre Joana só havia maioria).
– Estava em casa, desceu um avião no quintal e me pediram para vir pra cá. O que é? Querem nacionalizar o petróleo outra vez?
– Não, é a eleição do novo Presidente.
– No me lo digas.
– Si. Eleciones indiretas.
– Por que indiretas?
– Porque não é direta. É mais. É in-direta. “In”, entende? Não é “out”.
– Ah, sei. Quem é o nosso candidato?
– Só tem um.
O deputado recém-chegado não estava gostando muito. Aí houve uma rápida divagação sobre democracia, candidato único, que em Roma era assim, e o Napoleão, você tem alguma coisa contra Napoleão, que Péricles foi eleito indiretamente, que Deus escreve certo por linhas indiretas. O deputado se acalmou mais.
– Quem é o candidato?
– Pô, que curiosidade. Parece mulher grávida. Ta vendo aquele monte de secreta?
– Tou.
– Ele é o do meio...
– Simpático.
– É.
– E qual é o programa?
– O programa aqui na capital é chocho. Tem um barzinho que fica aberto até mais tarde, musiquinha, não se come mal e...
– Não. O programa dele.
O Líder da Maioria explicou todo o programa: ensino, saúde, o Nordeste, transporte, o Lóide, habitação, custo de vida, rede escolar, saneamento, crédito para avicultura. Implementos agrícolas, rede hospitalar, a pesca, repressão ao contrabando, ponte Rio-Niterói, regulamentação de filmes na TV. O outro observou que isso era a relação dos problemas e que ele queria saber como o novo Governo ia enfrentá-los.
– Com firmeza.
Esclarecido sobre o programa do candidato, o Líder da Maioria pediu o voto do deputado. O deputado ainda fez uma última pergunta.
– Pô, parece O Céu É o Limite – disse o Líder.
– Eu quero saber o Ministério.
O Líder lhe deu a lista:
Aviação – Gago Coutinho ou Sacadura Cabral.
Saúde – Talvez Juraci Magalhães.
Guerra – Góis Monteiro.
Indústria e Comércio – Talvez Juraci Magalhães.
Marinha – Américo Vespúcio.
Fazenda – Mágico de Oz.
Viação – Talvez Juraci Magalhães.
Minas e Energia – A cia. de energia elétrica ainda não havia indicado.
Planejamento – Obdúlio Varela.
Exterior – Vicente Rao.
Justiça – Talvez Juraci Magalhães.
O deputado leu a lista, pensou, olhou o Líder e falou:
– Olha, não vou votar, não.
Foi cassado.
Mostrei essa notícia de Casa de La Madre Joana para o meu filho, e ele, largando o álbum de figurinha, me disse:
– Pô, pai, ainda bem que não é no Brasil, hein?








Folha da Semana, 13 a 19 de outubro, 1966.
Vianinha, Org. Fernando Peixoto, Brasiliense, 1983.

Imagem: Emmanuel Nassar

quarta-feira, 26 de agosto de 2009





Jean-Paul Sartre in Paris in 1952, with Simone de Beauvoir, right, and the writer and musician Boris Vian and his wife, Michelle.

Diante da lei
Na sociedade de controle a lei é o mecanismo que assegura ao estado a ordem das coisas separando devidamente os cronópios dos famas; os viciados dos não viciados; os ajustados dos desajustados. Na sociedade de controle os mecanismos para o cumprimento da lei são: a perseguição / a prisão / a extorsão / a violência / a morte. A sociedade de controle codifica / veta / enclausura. Na mesma medida a sociedade de controle, através dos atos secretos, garante os seus ‘paraísos artificiais’, os seus bordeis privados, os seus vícios insólitos: a compulsão, a cafetinagem. Tudo à custa do dinheiro público. A sociedade de controle, tal como os nazistas, em nome da eugenia, do sangue puro, da grande saúde, persegue os fumantes, vigia, patrulha, enquadra , criando uma histeria coletiva, propagando ideologicamente o ódio contra o fumo, contra a pessoa por trás da fumaça. A sociedade de controle agora proíbe o cigarro, depois será o livro, o riso, a poesia. Fahrenheit 451 e 1984 são curiosos diagnósticos desse avanço fascista. A lei, na sociedade de controle, é uma máquina déspota que atravessa a carne, fere e não cessa de ferir.

nilson oliveira - editor da revista polichinello

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

o grito do redemoinho

Seis meses depois da morte de Max Martins sonhei com ele a bordo de um balão, ele que navegava em sua rede (navio viking de vela desfraudada) os despropósitos das viagens - e de consolar os simples. Evoé Max!


Pipeline

Hoje não quero ler. Nem nadar.
Nem ficar à sombra da cabana.
Estou trocando a pele e tenho a impressão de que todos estão vendo essa nudez.
I’m shame.
Minhas feridas estão expostas e acho que todos vão descobrir.
Cicatrizes que eu achava ter apagado com o romantismo-rosado do caladryl.
Cadê aquela mulher meio-ana, meio-caio, meio-bloomsbury?
Perdeu-se na Adélia que há em mim:
“Seja mulher! Carrega essa bandeira direito menina! E que Deus te proteja!”.
Uma menina magra que fala pouco e que hoje beija e ri muito mais do que em 1996.
Mas, escreve menos do que nunca.
Talvez seja isso: a literatura, essa vaga, essa onda.
Anda onde?
Estou aqui mais furiosa do que antes, e isso é coisa que sempre fui, com vinco entre as sobrancelhas e por cima dos óculos.
Hoje não posso nadar.
Descobri que os tubarões também sentem cheiro das feridas da alma.
Vou voltar à sombra dos meus livros.
À cabana.



Danielle Fonseca


.

a cada fim seu recomeço
         para max martins in memoriam


não reconheci aquele corpo lacrado, fino,
embora o soubesse de max m, magro poeta.
os cortes do tempo ali representados, atino
e mesura da indesejada, formando uma reta,

um risco subscrito à travessia, naquela cuíra
de ainda escrever mais, não para consolar
ou ter de volta o último trago que o traíra
mas para, colmando a lacuna, num dia solar

em marahu, o fôlego ancestral de novo seguir
como se soubesse mesmo ter onde ir


.

Paulo Vieira, 11 fev. 2009.

sexta-feira, 31 de julho de 2009


Monocórdio
Agora é sempre agosto, o mes
mo odor, o mes
mo sabor, o mês
aziago

Entra mês sai mês sempre o mes
mo agosto – a boca, amarga,
soletrando o calendário

Antônio Moura, Dez, Belém, 1996

quinta-feira, 30 de julho de 2009

O império da imaginação e da fantasia
por Continente Online


O poeta Sebastião Uchoa Leite nasceu em Timbaúba (PE), em 1935, mas antes de completar os trinta dias de vida já se mudava para o Recife. Bacharel em Direito e Filosofia, participou ativamente da vida intelectual da cidade, conforme se verá no corpo da entrevista, até 1965, quando, aos 29 anos, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde publicou a quase totalidade dos seus livros (a exceção é Dez Sonetos sem Matéria, pelo Gráfico Amador, em 1960). Entre 1966 e 1995, publicou os livros de ensaios Participação da Palavra Poética, Crítica Clandestina e Jogos e Enganos. Nesse período, traduziu mais de vinte livros. Entre os mais importantes se incluem Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho, de Lewis Carroll, Crônicas Italianas, de Stendhal, Canções da Forca, de Christian Morgenstern (tradução parcial), Poésie, de François Villon, entre outros. Em 1970, trabalhou na Enciclopédia Mirador Internacional (da Enciclopaedia Britannica), sob a coordenação de Antonio Houaiss. De 1976 a 1990, trabalhou no Departamento de Edições do Serviço Nacional de Teatro, no Rio de Janeiro; em 1986, tornou-se responsável pelo setor de edições da antiga Fundacen (Fundação de Artes Cênicas). Na década de 1990, foi funcionário do Arquivo Nacional e do Ibac (Instituto Brasileiro de Arte e Cultura) e coordenador de Editoração do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Sua obra poética inclui os livros Antilogia (1979), Isso Não É Aquilo (1982), Obra em Dobras, 1960/1988 (1988), A Uma Incógnita (1991), A Ficção Vida (1993) e A Espreita (2000). Sobre A Espreita, afirma o crítico João Alexandre Barbosa: “Uma poética rara mais do que de raridades que, desde a desmaterialização dos sonetos dos anos 60, foi aprendendo as lições que separam os poetas raros dos ralos até ser capaz, como neste livro, de deixar passar as sombras por caminhos feitos de pedras. Um raro entre os raros.” A entrevista foi realizada na residência do poeta, no bairro do Flamengo, em julho de 2002.– Em 1980, há vinte e dois anos, você recebeu o Prêmio Jabuti, com o livro Antilogia. Em 2001, o Prêmio Murilo Mendes, com o livro A Espreita. Foi também premiado pela tradução de Poésie, de François Villon. E publicou, na Espanha, uma pequena antologia “antilírica”, com o título de Contratextos, tradução de Adolfo Montejo Navas, pela Editora DVD, de Barcelona, que obteve uma boa crítica de El País, em Madri. Nesses vinte anos, a crítica, assim como os seus pares, tem afirmado a importância da sua obra no panorama da poesia contemporânea. Seu nome figura em cinco antologias na Europa (duas na Espanha, uma na Alemanha e outra em Portugal) e em uma nos Estados Unidos. Há, na Inglaterra, um livro em que você foi incluído. O mesmo aconteceu na Espanha e na Áustria. Prepara-se ainda uma antologia na Argentina onde figura o seu nome. Que balanço faz dessa trajetória? Contrariando seu próprio verso, no poema “Migração” (A Ficção Vida, 1993), você não seria uma ave migratória que chegou a falcão?

– Esse poema a que você se refere, em que falo de aves migratórias, não é necessariamente um poema biográfico. Não estou me referindo a mim mesmo como ave migratória (embora o falcão me pareça ave muito feroz para mim). Mas, enfim, já que você colocou a questão, quero dizer que não me considero totalmente migratório porque eu vim, é certo, do Recife para o Rio de Janeiro, mas não abandonei tudo por causa do Sul. De certa forma, mantenho minhas raízes, tenho parte da minha família no Recife (duas irmãs, Maria Antonieta e Selma; Célia Maria veio para o Rio) e continuo ligado lá. Não vou com freqüência porque é muito caro e não tenho condições de gastar tanto. Não acho que fiz esse sucesso todo, foram só algumas pessoas que se interessaram pela minha obra, ou coisa que o valha. Pessoas de qualidade, acho, modestamente, críticos conhecidos. Foram, sobretudo, críticos conhecidos ou amigos. Não posso dizer que sou um êxito de público geral porque não houve isso. Houve, sim, algo como um reconhecimento, sobretudo em São Paulo e em Minas, muito pouco no Rio e quase nada no Recife, infelizmente, embora quanto a esta última, não só jamais a abandonei como a lembrei em vários textos. Não só o Recife, mas outros lugares, como, por exemplo, São José da Coroa Grande e suas praias maravilhosas. Não “cantei” coisa alguma, porque não sou cigarra e nem as amo poeticamente, me desculpem. Houve, pois, um reconhecimento que considero relativo, embora algumas vezes significativo. Algumas críticas por A Espreita me deixaram muito satisfeito, sobretudo os maravilhosos textos de João Alexandre Barbosa (incluídos depois pelo editor por terem aparecido antes do livro A Espreita, quando o crítico João Alexandre analisou os originais do referido livro na revista Cult), Luiz Costa Lima e Davi Arrigucci Júnior. Essas críticas, para mim, superaram em muito a questão dos prêmios, que não significaram tanto quanto elas. Também me deixaram mais reconhecido. E bem mais conhecido também, sobretudo no sul do país, particularmente em São Paulo e Minas, como já foi dito.Pra começo de conversa, reconheço realmente a influência de João Cabral sobre mim, mas essa influência é muito relativa, e não sou sequer de longe igual a João Cabral, quanto mais discípulo dele. É só ler os meus livros, ora essa, porque sou muito mais coloquial do que ele, por exemplo. Acho que segui mais uma pequena vértebra do que as características gerais da poesia dele propriamente. Agora, quanto às outras observações, quanto a Haroldo, acho que foi um gesto de amizade que ele teve comigo, de me fazer aquela orelha tão simpática de A Espreita. Mas a questão da pedra matricial, acho bastante exagerada, com todo o respeito que tenho por ele. Acho que pode até existir isso, mas essa pedra não está só em João Cabral, está em Drummond também. Se você observar bem, nos poemas em que falo de Pernambuco não apelo tanto para a paisagem, embora tenha acontecido o fato de que sou muito ligado ao mar do Recife e a águas de Pernambuco em geral, e há muitas referências a praias pernambucanas, sobretudo a São José da Coroa Grande. A questão da pedra matricial, a que Haroldo se refere, eu não consigo mesmo reconhecer em minha poesia, mas acho que há nela realmente a secura que é própria até da natureza das pessoas de outros estados não sulistas, sobretudo Pernambuco, mas isso não é uma questão de descendência desse fio matricial da pedra. Isso não é a minha poesia, e não vejo importância alguma dessa pedra matricial quanto a ela. Quer dizer, quanto à minha poesia (desculpem-me a ênfase nesse ponto pela insistência com que falam disso), e não quanto à de João Cabral.


– E a vida no Recife? Você viveu a infância e a juventude na cidade, época das primeiras definições. A de ser poeta, por exemplo. Houve oscilações entre essa vocação e outras? Foi no Recife mesmo que essa decisão se cristalizou? E a sua formação, seus primeiros contatos e relações? Que autores/poetas você lia?

– Sim, vivi a infância e a juventude, mas não houve decisão alguma de eu ser “poeta”. Não é nada tão importante ou tão decisivo assim. Minha vida foi um pouco a esmo, ou à deriva, e jamais houve quaisquer oscilações, desculpem as contradições. Jamais tive vocação para coisa alguma na vida, só para a aspiração de uma vagabundagem infinita. Ao contrário de João Cabral, que preferia “o inútil do fazer ao inútil do não fazer”, coisa de calvinistas, acho, embora ele não fosse crente, nem eu, muito menos. Essa história de poesia comigo é “preguicite” mesmo, e só. Não tenho ideais nem coisa alguma que me salvem de ser um mero pilantra, e muito menos uma fé qualquer. Sou um descrente total dessas lorotas todas y compris a religião, essa maluquice global, a que tenho horror profundo. Houve um tempo em que adorava ler gibis e mais nada. Quanto a mim, houve o império da imaginação e da fantasia, na infância e na juventude, e continuo fiel a isso tudo, embora, paradoxalmente, ame a verdade e a realidade e tenha gravado muitos documentários, sobretudo históricos. Minha biografia de infância e adolescência, por isso tudo, é zero. Minhas leituras e contatos foram coisas demais para se falar aqui. Nem tenho essa memória toda, desculpe.


–Quando foi publicada sua poesia pela primeira vez?


– Foi no Recife, no suplemento do Diário de Pernambuco, por interferência de Mauro Mota, poeta, estudioso da região nordestina e editor de jornal. Era um homem muito importante... Levei uns poemas e uma apresentação de José Laurênio de Melo. Ele publicou cinco poemas numa página inteira. Foi uma surpresa e uma glória para um rapaz de 22 ou 23 anos, no máximo. E fiquei, de repente, conhecido. Mas nenhum dos poemas jamais foi publicado em livro. Eu era muito exigente.


– Você chegou a travar conhecimento com Carlos Pena Filho? Você frequentou a boemia do Recife? Que memória tem do período?

– Claro que conheci Carlos Pena e gostava muito dele. Eu o achava superengraçado. Nossas idéias eram um pouco diferentes, mas, no fundo, éramos até parecidos, pois ele tinha um senso de humor fundamental para certa compreensão da poesia, que é a mesma que tenho: mais ou menos irônica em relação às sentimentalices comuns e convencionalismos em geral. Nesse sentido, acredito que ele morreu cedo demais e, por isso, não houve tempo para amadurecer mais. Sinto-me, diante da ênfase brasileira e, especialmente, pernambucana, alguém muito do contra, mas, embora paradoxalmente, pernambucaníssimo, muito mais por dentro do que por fora. Carlos era assim também, acho.


– E o Teatro Popular do Nordeste, o TPN, onde o Hermilo Borba Filho teve um papel fundamental? Houve contatos seus também com o MCP, o Movimento de Cultura Popular?

– Não conheci o TPN profundamente, só alguns espetáculos, sobretudo as peças de Ariano. Surpreendi-me uma vez de ele me citar o nome num desses espetáculos. Fiquei todo envaidecido. Conheci Hermilo um pouco. Era um tipo bem engraçado. Houve um momento em que ele se mostrou muito conservador (devo explicitar, entretanto, que Hermilo jamais aderiu a qualquer credo político, sobretudo de direita, aos quais, evidentemente, ele se opunha), e também Ariano. E discordei com veemência, nos tempos, infelizmente, do triste golpe reacionário militar-civil de 1964. Depois, creio que as coisas mudaram muito. O tempo passou quase 40 anos e Ariano passou a apoiar Arraes e até colaborou numa das campanhas de Lula para a presidência. Hoje, continuo a apoiar Lula e detesto toda a corriola do PSDB, PFL, PPB, PMDB, enfim, a corja neocapitalista toda. Hermilo já morreu, e não sei que mudanças houve mais recentes quanto a Ariano. Continuará na linha da esquerda anticapitalista? Espero que sim. Ele disse uma vez que o capitalismo era a vergonha da humanidade. Concordo. Tenho horror a FHCs, Malans e tutti quanti. Horror político, pois essas pessoas me são indiferentes ou desprezíveis. Odeio também qualquer tipo de racismo.


– Ainda no Recife, em 1960, você publicou o seu primeiro livro de poesia, Dez Sonetos sem Matéria, pelo Gráfico Amador. Da experiência do Gráfico participaram muitos daqueles que se tornariam amigos seus de toda a vida, como Jorge Wanderley, Orlando da Costa Ferreira, João Alexandre Barbosa, José Laurênio de Melo, Aloisio Magalhães, Gastão de Holanda, entre outros. Qual o elemento galvanizador da experiência do Gráfico? Como avalia o clima intelectual no Recife da época?

– A presença do Gráfico na minha vida foi muito boa, porque se desenvolveram em mim várias experiências. Coisas que eu não tinha ainda conseguido compreender, como, por exemplo, o gosto dos livros do ponto de vista da qualidade material, lição inesquecível dos gráficos. E tive a influência, sim, de várias pessoas que me cercavam. As duas influências mais agudas do Gráfico Amador foram, sobretudo, a de Orlando da Costa Ferreira, que foi, digamos assim, quem gerou em mim toda essas coisas, como, por exemplo, o gosto pela qualidade e modernidade em tudo (até então, eu era meio indiscriminado quanto ao lado material dos livros e objetos em geral. Orlando era um espírito empreendedor, era ele quem mais estudava as artes gráficas, e tudo girava em torno dele), e, segundo, a de Laurênio, como também a de Gastão, que entrou com outros amigos na jogada. A experiência que eu tive foi muito boa não só no sentido intelectual, mas também no sentido do enriquecimento humano, porque eu tive o conhecimento de pessoas notáveis que viveram perto de mim e que me deram lições notáveis de vida. Entre elas, Laurênio, acima de tudo, que continua muito próximo a mim aqui, no Rio, e a quem julguei um mestre crítico em tudo e ainda como um poeta superior, que ele é ou foi, pois, estranhamente, desistiu de tudo. E também fiquei muito próximo de Orlando, não só um mestre nas artes, mas um mestre intelectual em geral. Ele era uma pessoa notável, que morreu cedo. E Gastão, que era uma personalidade muito esfuziante, pessoa de muita alegria, muito inventivo em tudo. À parte isso, tem outras pessoas que me levaram para lá. Jorge Wanderley foi um desses que me levaram para lá. E eu, depois, levei João Alexandre Barbosa. A participação de Luiz Costa Lima foi muito lateral, no Gráfico. Fiquei muito amigo dele também. Foi um grupo de amigos dessa ocasião que me influenciou muito, um grupo que era constituído por Jorge, João Alexandre, Luiz Costa Lima e Gadiel Perruci, além dos jovenzíssimos, na época, Adão Pinheiro e Marcius Cortez. E várias outras pessoas que se aproximaram também. No Gráfico, no chamado Atelier 415, da rua Amélia, havia outras presenças, sobretudo as de Aloisio Magalhães, que era só pintor na época e depois se fez muito importante, como designer, com grande atuação cultural, em geral, e dos arquitetos Glauco Campello, que chegou a ser presidente do IPHAN. Também Jorge Martins Filho, entre outros. O clima do Recife na época, em 1963, era de grande ebulição cultural, e eu atuava em várias áreas. No Jornal do Commercio, fiz o suplemento literário com João Alexandre (deixamos porque ficamos sob censura, em 1964, durante o golpe militar) e também participei como professor do Curso de Biblioteconomia (onde ensinaram também João Alexandre Barbosa, Gastão de Holanda, Gadiel Perruci, Orlando da Costa Ferreira e Adão Pinheiro). Fiz parte da revista Estudos Universitários, que foi fundada por Luiz Costa Lima e que foi fechada por Gilberto Freire (Nota: Uchoa Leite escreve de propósito com i, em vez de y. Pede respeitarem isso). Não foi fechada propriamente por ele, mas acho que obedeceram a um pedido dele, na reitoria, quando fecharam. E depois chutaram Luiz e mudaram a direção. José Laurênio, que acho um grande homem, também foi chutado da Rádio Universitária e trocado por um mediocrão intervencionista a mando dos milicos. Algumas pessoas não gostavam de Gilberto, como era o meu caso, que era um caso pessoal. Não gostava dele como pessoa, pois, intelectualmente, o conheci muito pouco. O grupo não era contra ele. Quem me levou à casa dele para conhecê-lo foi Orlando da Costa Ferreira, mas o grupo nem se contrapunha nem muito menos estava a favor dele. Eu o vi apenas uma vez e não gostei. Luiz Costa Lima publicou uma crítica a Gilberto, e eu então disse: “Cuidado, que a revista pode ser fechada”. E foi. É o que eu gostaria de falar. E, finalmente, que Paulo Freire, o educador, foi preso e depois exilado.


– Ariano Suassuna também frequentava o Gráfico? Ariano é um autor do agrado do grande público e de nordestinos como você. Como vê esse fenômeno?

– Vejo, naturalmente, como algo positivo. Sempre ri muito com as comédias dele. Gosto demais da pessoa dele, corretíssimo como sempre foi, íntegro. Do ponto de vista artístico, temos muitas diferenças, pois ele crê em muitas coisas que não aceito, como, p. ex., o nacionalismo estético, que não consigo sequer entender. Desconfio que, na prática, Ariano professa algumas coisas sem ter esse rigor todo, pois tem consciência artística bastante para discernir o que é bom em geral, e não apenas convicções teóricas. Tem um gosto mais amplo do que se pensa, acho. Ele frequentou muito o Gráfico, e era amigo de vários, particularmente de Laurênio e de Aloísio, e teve um livro editado por lá, chamado Ode. – Em artigo para o Caderno Mais, da Folha de S. Paulo, como parte das comemorações dos 40 anos do Concretismo, Luiz Costa Lima o incluiu entre aqueles poetas “que portam a sua (do Concretismo) marca”. Poderia traçar uma breve história da sua participação (ou não) no movimento?


– Acontece que o Concretismo na minha vida foi um fenômeno que não foi só intelectual: foi um fenômeno pessoal também. Eu conheci pela primeira vez Haroldo de Campos e Décio Pignatari em 1962, por ocasião de um congresso de crítica que se fez em João Pessoa, e fiquei com grande admiração por eles. Já havia tido informação sobre eles através de João Alexandre, que tinha visto uma interferência deles num congresso no sul do país e ficou admirado com a cultura deles, com a precisão com que falaram. Tudo isso nos levou a um novo julgamento do grupo, pois o nosso julgamento era, até então, muito superficial. Não tínhamos uma ideia no Recife do que eram, tínhamos uma ideia precária. Então, conheci os dois e fiquei amigo, sobretudo, de Haroldo de Campos, e trocamos correspondência. Conheci depois Augusto, em São Paulo, e ele também foi uma pessoa que teve muita importância intelectual para mim. O ponto que gostaria de afirmar é o seguinte: eles não me influenciaram no sentido comum do termo, o literário, mas exerceram uma influência intelectual geral sobre mim. Eu revi muitas coisas a partir deles. A minha colaboração com isso se limitou parcamente a um poema publicado em 64, na revista Invenção. Depois disso, tentei alguns poemas experimentais, que publiquei muito tempo depois, sob o título (um pequeno não-livro, nove poemas apenas) de Signos/Gnosis. Eu desisti desse veio porque, depois de pensar muito, cheguei a uma via própria, ou achei que tinha chegado a uma via própria através de poemas que eram, de certa forma, experimentais. Mas não naquele sentido formal estrito dos concretos. Eram experimentais no sentido de linguagem coloquial e de outros tipos de influência, como, por exemplo, poesia mais intertextual. Isso houve em minha vida, mas não acho que foi influência das vanguardas, eu não sei dizer se fui vanguardista ou não. Conscientemente, eu nunca fui vanguardista. Aliás, disse isso várias vezes em público. Jamais aderi a corrente alguma, e não digo isso com orgulho, não, digo isso talvez até por deficiência. Não consigo ser uma pessoa grupal. Aliás, jamais senti a tal “angústia da influência”, de Harold Bloom. Ignoro isso.


– Você poderia detalhar um pouco mais para os leitores em que consistiu de fato essa busca a que se refere, essa pesquisa de uma nova via?

– O que aconteceu entre Dez Sonetos e A Espreita está explicado de sobra no notável texto crítico de João Alexandre que precede a edição desse último. De um modo muito geral, ele diz, admiravelmente, que houve uma transformação lenta, aliás, lentíssima, pelo fato de eu praticamente “ruminar” as coisas. Então, me parece que não houve uma “guinada” tão radical assim. Houve mais um reajuste de linguagem. 


– Negatividade, ironia/auto-ironia, amargura. Esse trinômio, tendendo para o esvaziamento progressivo do Eu-lírico, tem muitas vezes caracterizado o seu percurso. Você concorda com essa leitura?

– Não concordo de modo algum com esse “esvaziamento”, pois discordo do “ataque à tradição” de que alguns falam. Isso seria até uma contradictio in terminis, como diziam os escolásticos. Vamos voltar aos hieróglifos? Aliás, o que é o “eu-lírico”? Alguma sentimentalice? Se for, então sou contra mesmo. Não concordo com a linguagem complacente com lugares-comuns e pieguices em geral.


– A literatura em geral, a ficção, e não só a poesia, tem sido, desde o século 19, (lembremos apenas Moby Dick como exemplo) obsessivamente auto-reflexiva, encenando o esforço do ver-se a si mesmo, marcado pela negatividade. Ou seja, o animal humano tentando morder uma cauda que não tem. Com que marca especial sua poesia se inscreve nesse processo?

– Acho que foi sobretudo a partir de Antilogia, de 1979, marcadamente intertextual. Mas fui, aos poucos, tentando me aproximar da realidade, concretizá-la. Consegui isso em parte, apenas, por causa dessa tendência a abstratizar demais. Consegui fazê-lo tentando me aproximar da realidade e de seus horrores. Não sei se imprimi uma “marca especial” nesse processo, nem me sinto tão negativo assim. É verdade que não tenho fé, nem esperança ou caridade. Não me sinto muito cristão. Quem pode ter fé, vendo obsessivamente as notícias dos telejornais, como eu faço? É difícil, não?


– A sua poesia é considerada de identificação difícil para o leitor, parece dirigir-se aos “raros apenas”. Algum dilema com respeito ao fato de não atingir um público maior? Isso chega a ser frustrante?


– Nenhum dilema, nem sinto qualquer frustração em não ser “popular”. Eu, hein? Quem quer ser popular vai ser ou jogador de futebol ou cantor. Jamais o conseguiria, mas tenho a maior admiração por muitos, como João Gilberto ou Caetano, ou Rivaldo e Ronaldinho. Tenho grande admiração. O outro caminho é vender poesia, que tal? Há quem consiga, como não? Bom proveito! Você lê poetas pernambucanos contemporâneos? Quem são os de sua predileção?


– Não, porque recebo de toda parte do país, menos do Recife. A exceção é Eduardo Diógenes, meu amigo. Acho que no Recife não sou muito conhecido, sei lá por quê. Mas não prometo responder a ninguém se mandarem coisas de repente. Estou muito doente, essa é que é a verdade. Infelizmente. Diógenes me escreveu uma vez e respondi, mas não tenho lá grandes forças hoje.No passado, amei Bandeira, Joaquim Cardoso (com s, por favor), João Cabral, é claro, Carlos Pena Filho e, mais recentemente, o pranteado Jorge Wanderley, de muitas memórias pessoais.Posso ter esquecido alguém. Perdoem-me por tudo, por favor.


– Os seus ensaios críticos (Crítica Clandestina, Livraria Taurus, e Jogos e Enganos, Ed. UFRJ/Editora 34) revelam um Sebastião Uchoa Leite bastante heterodoxo, com interesses os mais variados. Que lugar ocupam esses ensaios na sua estética?

– Sempre fui muito heterodoxo em tudo. Só se engana quem nunca me leu os ensaios nem a poesia. Ou não me conhece pessoalmente. Que outro Sebastião existe? Ou conhece? Jamais amei qualquer ortodoxia, juro. Sempre tive horror a elas. Não tenho qualquer “estética” ou coisa parecida. Oswald de Andrade chamava A Estética da Vida, de Graça Aranha (um acadêmico idiota), de “A Bestética da Vida”. Que maravilha! O lugar que os meus ensaios ocupam são os mesmos que os da poesia e da música, o do prazer. Aliás, os títulos dos livros já não dão aos leitores a ideia de heterodoxia? Acho que sim.


– Você tem um livro no prelo. Poderia antecipar para Continente que novas direções ele persegue?

– O livro novo, que sairá pela editora Cosac & Naify, tem o título de Crítica de Ouvido. São ensaios sobre generalidades diversas, sobretudo sobre poesia brasileira, mas sobre outras coisas também, inclusive cinema. O editor pensou em meu grandioso nome e em me prestar homenagem editando esses trastes, pois, comercialmente, nada valem. Não se perseguem quaisquer novas direções, são as mesmas manias de sempre. Mas o texto mais extenso é sobre “poesia e cidade”, começando com Baudelaire e terminando com os poetas brasileiros, y compris Haroldo & Augusto. O penúltimo é sobre o universo visual de Lewis Carroll e traz fotos das menininhas que ele tirou, com aquela “inocência” toda das espertas meninas inglesas da era vitoriana. Há também, esperando na minha vultosa obra completa, um livro novo de poemas, o qual ainda não tem editor. Tomara que se editem os dois. O de poesia terá o título de A Regra Secreta – em tempo, e parece que assim será. Senão, quem se ligaria nisso?

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MIGRAÇÃO
Aves migratórias
Nunca chegam a falcões
Cumpro o ciclo Kármico
Um monstro sopra das ventosas
O meu Thermidor
Perseguidores corcundas
Vêm do Mar Negro
Adeus canal e luminárias
Esse mar sem metáforas
Minha origem
É minha linguagem
Desta concha-fundo de blocos
Só vejo a piscina
Minha vertigem é o vazio
Meu rigor o salto

Sebastião Uchoa Leite, editora 34, 1993.