o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O Ver-o-Peso não dorme tranquilo



Quando a claridade diz, eu sou a escuridão,
disse a verdade.
Heiner Müller

para Evandro Pinto, capitão de breve curso das noites & ruas de Belém

“Adolescendosolar” não é algum neologismo barato, menor, de que se vale um escritor estreante pra compensar sua insegurança ou mesmo sua falta de talento. É só um jeito de corpo que a escrita de Luizan Pinheiro dá pra passar entre, pra atravessar e seguir adiante suas tramas simples, quase sempre chocantes. E esse jeito de ir entre e não de se guiar sempre fascina. De não pedir licença, não se medusar com o outro, com o estabelecido. Luizan Pinheiro vai em frente e não faz rodeios. E não quero dizer com isso que “é direto”, mas que sabe que a maior parte das histórias que conta (tratam-se evidentemente de histórias), dos protagonistas, dos cenários, está à partida condenada ao esquecimento. Mas é isso mesmo. O conto não é algo como uma escrita de jornal? Ele não sobrevive ao próprio cotidiano que aborda, este é sempre maior. Sua estatística, escuridão, pesadelo? Luizan não tem doces ilusões. Sabe que o sonho dura apenas uma noite. Logo é o dia que devora. Logo é a vida e sua comédia desmaquiada: fome, solidão, gravidez, tiro, morte. Eventualmente um João Antônio Ferreira Filho (quem?!), dá o ar da graça. O João Antonio de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, livro que, ainda inédito, sobreviveu até mesmo a um incêndio na casa do escritor. Tirado do fogo e das cinzas. No Brasil o grande livro nos chega quase sempre por acaso ou por milagre. Não tem política de incentivo, nem lei que mude isso. Os burocratas do Ministério da Cultura não têm imaginação – eles apenas fantasiam números e organogramas. As zonas inexploradas, Acre, Roraima, Amapá, Amazonas etc., permanecem. Esse enredo é algo velho, mas real e cruel.

Luizan vai por essas distâncias com o pouco que tem às mãos, escreve, dá aulas, paga do próprio bolso a modesta edição do livro – sai, dá um pique, um ziguezague pela cidade: o urbano, o subterrâneo, o deserto escuro em 22 contos ou quadros, por vezes, quase reportagens, crônicas de uma Belém dos anos 1990 ou, quem sabe, de uma Berlim dos anos 1970. O tempo é pendular, já os acontecimentos, os fatos, concretos. Não que Luizan não tente a oposição quando os descreve, pra transformá-los ou traduzi-los em outra forma. Recorre à visualidade, à musicalidade. Esgarça e restringe o ritmo. Amesquinha a personagem. Escrita, grafite, música. A descrição torna-se intensa e vívida. A paisagem, sempre um lance entre o real e o virtual, é quase perceptível e os perigos parecem autênticos. De súbito, se pode revisitar as narrativas de “Crônica de um Amor Louco”, de Charles Bukowski ou de um Heiner Muller, de “História de Amor”. As vozes, as vozes proliferam. Em “Pega leve, minha mão”, um dos contos de Luizan, Marina bem poderia dar outro desfecho pro amor que “vai se gastar” do confundido João P., personagem de Müller. A “garota” que João P. conhece numa estação de Berlim, bem poderia ser Marina. Marina enquadrada nos olhos gulosos de João P. Marina andando de um lado para outro na plataforma. Marina ao lado da banca de jornais, olhando na direção de onde o trem deveria vir. Tem pernas bonitas, a Marina, pensa João P. Marina que permanece enquadrada na sacada pelos olhos gulosos de Patrick. Ele leva vantagem sobre João P. Mora no mesmo condomínio e estuda na mesma escola de Marina. O cabelo dela parece com o da professora de inglês. Patrick sabe. E curte Legião Urbana tanto quanto ela. “Quem me dera ao menos uma vez ter de volta todo ouro que entreguei a quem”... João P. que amava Marina que amava Patrick que amava... Parece por instantes que os três podem viajar dali. Belém-Berlim-Rio de Janeiro. Os acontecimentos, os fatos não parecem tão concretos assim. A escrita de Luizan nos leva a um set de filmagens. A leitura vira cinema que vira escrita e outra coisa que se quiser, tantas as dobras, os fluxos e ângulos. A mesma duplicidade de dia e noite duma novela de Camus. Sol e Lua. Um pouco de cada coisa que vive contamina outras paisagens. Variações e virações. Contextos em decomposição, cidades, gêneros literários. As tramas não são tão simples assim. Há vários e sinuosos patamares de tempo, espaço e personagens. Os meio poderiam ser mais sofisticados – os aplausos da crítica assim exigem. Luizan, num próximo livro, deve alterá-los, mas não apenas por isso. Ele está atento às ondas de mercado, mas também e principalmente às camadas sucessivas, aos movimentos de uma escrita que devora tudo por onde passa.

Luizan não quer diminuir distâncias, quer percorrê-las. Ele avança pelo deserto sem saber o que vai encontrar pelo caminho. Foge o quanto pode do explícito, mas também não busca salvação nas metáforas. Olha ao redor, em busca das dores e dos medos que por vezes fingimos não saber, mas que são inevitáveis. Nas histórias de “Adolescendosolar” (serão mesmo histórias?) Luizan não se coloca como se estivesse de posse de um terrível segredo. Nada que escreve o consome pelo que não pode confessar. Tudo sabemos de antemão. Está em nós, ao nosso lado. Na rua, na praça, na feira. Nalgum lugar. Uma escrita que se mistura aos sons entranhados em nós. Não é um écran mudo, mas um concerto das ruas e das pessoas. Ver-o-Peso. Estrada Nova. Jurunas. Pedreira. Guamá. Beco do relógio ou Gogó da onça. Chuva, pôr-do-sol, letreiros, paredes, pichação. Assim é a cidade em sua inevitabilidade, vulnerabilidade e medo. São estas as imagens, sem simulações e retoques. Com seus focos de violência ou mesmo tornadas por inteiro uma intensa periferia. Não habitamos mais, coabitamos, apequenados, a um só tempo claridade e escuridão. E que tipo de realidade é essa? Qual é o lugar da escrita em meio a isso? Quais as diferenças e semelhanças que se acentuam? Sem dar as respostas, ainda que sempre muito atento (não à mobília, às roupas, aos objetos, senão à vida) Luizan Pinheiro toca por todos nós a flauta de sua coluna vértebra.

Ney Ferraz Paiva
Palmas dezembro 2009

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