o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

terça-feira, 19 de abril de 2016

Florêncio tinha família grande. O negro do cilindro sustentava um familião. Aquela gente passava mesmo necessidade. Ali eles tinham que comprar tudo, pagavam o casebre onde moravam. Pior que no engenho. Eles passavam mais fome que no engenho. Lá pelo menos plantavam para comer, tinham as suas espigas de milho, a sua fava para encher a barriga. No Recife tudo se comprava. Estivera na casa do Florêncio para não ir mais. O masseiro, a mulher, e quatro filhos, dormindo numa tapera de quatro paredes de caixão, coberta de zinco. Custava doze mil-réis por mês. A água do mangue, na maré cheia, ia dentro de casa. Os maruins de noite encalombavam o corpo dos meninos. O mangue tinha ocasião que fedia, e os urubus faziam ponto por ali atrás dos petiscos. Perto da rua lavavam couro de boi, pele de bode para o curtume de um espanhol. Morria peixe envenenado, e quando a maré secava, os urubus enchiam o papo, ciscavam a lama, passeando bameiros pelas biqueiras dos mocambos. Comiam as tripas de peixe que sacudiam pela porta afora. Os filhos de Florêncio passavam o dia pelo lixo que as carroças deixavam num pedaço de maré que estavam aterrando. Chegavam em casa, às vezes, com presas magníficas: botinas velhas, roupas rasgadas, trapos que serviam para forrar o chão, tapar os buracos que os caranguejos faziam dentro de casa. Eram bons companheiros os caranguejos. Viviam deles, roíam-lhes as patas, comiam-lhes as vísceras amargas. [...] Morar na beira do mangue só tinha esta vantagem: os caranguejos. Com o primeiro trovão que estourava, saíam doidos dos buracos, enchiam as casas com o susto. Os meninos pegavam os fugitivos e quando havia de sobra encangavam para vender. Para isto andavam de noite na lama com lamparina acesa na perseguição. Caranguejo ali era mesmo que vaca leiteira, sustentava o povo. Ricardo ficou com o pensamento na casa de Florêncio. Os meninos eram amarelos como os do engenho, mas eram mais infelizes ainda. E agrega: [...] pobre não tinha direito de reclamar. Pobre não nascera para ter direito. [...] Ricardo achou então que havia gente mais pobre do que os pobres do Santa Rosa. Mãe Avelina vivia de barriga cheia na casa-grande. Se ela viesse para ali e caísse naquela vida? Se os seus irmãos saíssem para o lixo, ciscando com os urubus? Florêncio ganhava quatro mil-réis por noite. O que eram quatro mil réis no Recife? Uma miséria. Por isso o outro falava em greve com aquela força, aquela vontade de vencer.






José Lins do Rego, O Moleque Ricardo, 1935.
Imagem: Boris Kosoy, Salvador, 1972.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Belém, 6 de fevereiro de 1944

Lúcio:

Quando telefonei para você pra me despedir fiquei aborrecida com um engano seu. Eu disse que nunca tinha podido chegar mais perto de seus problemas porque você nunca deixava; que eu, por encabulamento, então, disfarçava minhas perguntas de amizade em perguntas de curiosidade. É bem possível que você já nem saiba do que estou falando, tenha esquecido. Mas eu precisava lhe repetir que minha amizade não se transformou em curiosidade, o que seria horrível para mim.

Estou aqui meio perdida. Faço quase nada. Comecei a procurar trabalho e começo de novo a me torturar, até que resolvo não fazer programas; então a liberdade resulta em nada e eu faço de novo programas e me revolto contra eles. Tenho lido o que me cai nas mãos. Cai-me plenamente nas mãos Madame Bovary, que eu reli. Aproveitei a cena da morte para chorar todas as dores que eu tive e as que eu não tive. - Eu nunca tive propriamente o que se chama de 'ambiente' mas sempre tive alguns amigos. Aqui só tem 'mutucas' (isso é besouro, mas por que não chamar tudo de mutuca logo de uma vez?)

Lúcio, como vai você? Responda, se responder, claramente a essa pergunta. (...)

Lúcio, sei que sou antipática e não posso fazer nada. Eu só falo de mim porque nem sei o modo de abordar você (...) Saudades da Clarice.


Colagem, Ney Ferraz Paiva, 2016.