o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

CÍRCULO ONANÍSTICO DE LEITURA


Guillaume Zuili












Prece

Eu não sabia
Nem tu sabias
Nem mesmo
alguém desconfiava
que toda manhã

- Quando a neblina 
ainda espessa
ancorava sobre o rio
e se demorava
por levantar pássaros
extraindo do orvalho
o sonido estridente das cigarras
-um grilo intumescido
um alvo senso 
no acordar
da estrela solar-

ele calava diante das águas
numa prece pastoril
sacro-ofício de quem na vida
encontrou-se a perder

e ver
tudo o que já lhe arrancou o tempo
- o mesmo que ensina sua filha a crescer -

E ele sabe que dessas grandezas,
a falta que só cabe
na esfera da saudade
e no que não se pode mais dizer
e no que não se pode mais fazer,
é um além que caminha lado a lado
de correntes atadas aos pés
uma pedra gigante sobre as costas
que ali
ante a lama
e o respiro
dos seres invertebrados
- artrópodes
umectando o ar -
ele, o Anfíbio
agora soltava

No estrondo do silêncio

desaguava em direção às margens
não um segredo intocável
ou qualquer coisa indecifrável
mas aquilo que tu certamente sabes
e eu também
e nem mesmo alguém precisou contar
pois

É sobre o que também sabem as mães
ao lado de seus filhos  
na maca de um hospital
É sobre os invernos das cidades
e os mendigos sem vestes
sobre as míseras migalhas de pão
no coração dos corruptos
sobre o desvio
opulente o abandono

a solidão

Aquilo que só se revela
no gélido da aurora
e penetra nossa face
quando se pode tocar
o frio da manhã
dentro do peito
é quando o peito
abre
até o osso
é quando
de súbito volta
uma canção que diz
sobre a infância
reencontrando o tempo
é sobre tudo o que se ama
sobre tudo o que se chora
e por mais uma vez
desaparece
na curva do rio


Mayara La-Rocque

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A quantidade de espelhos
não garante absorção e reflexão
de questões que lhe dirigimos [apenas um objeto]
Repele tu a matéria
e te conduz a um outro aspecto
Eleja a ferrugem
Pois viver em saudade é a mancha prazerosa
Tens pensado em uma casa
Agora, com o sacrifício dos metais de tua preferência
uma pia antiga
uma moldura combinante
Tens pensado em gavetas de dois puxadores
em gavetas retangulares de ponta a ponta
a fim de caber peças
para montar-te na forma de uma fotografia apagada
Aniquilas a capacidade do real/visível
da presença de fora
Amiúdas-te
até provocar confusão
Tens pensado na vontade da casa
de colocar os pés em um por vir
onde entrarás com propriedade
Até aqui, todo um caminho seguindo umbigadas
Faz teu assentamento em quadril
O capacho felpudo
a quadrilha deixa um sopro
para lembrar-te do conforto de uma casa vazada.


Gabriela Sobral



O Círculo Onanístico propõe escutar a leitura de poemas feita pelos próprios poetas. Nesta versão, as poetas Mayra La-Rocque (“Uma luminária pensa no céu”, Editora Escriba, 2017) e Gabriela Sobral (Caranguejo, Editora Patuá, 2017) apresentarão os seus poemas, uma oportunidade para deixar rolar os afluxos, excitações, associações, como acontece quando alguém lê um livro levantando a cabeça, ou seja, com ousadia.




domingo, 15 de julho de 2018

MÃO NA MASSA:

UMA CONVERSA SOBRE LIVROS ARTESANAIS


Evento Literário com as poetas Luiza Leite Tatiana Podlubny Izabela Leal. Conversações, leitura de poemas e lançamento do livro Retratos Sob Disfarce Para Mulheres Sob Disfarce. Mediação: Estela Rosa. Realização: Mulheres que escrevem e Edições 1/4.

16 de Julho 19 h | Bar O Plebeu

Rua Capitão Salomão 50 Botafogo - RJ



UNICA ZÜRN










ÚLTIMO ADEUS IV



em geral sou pesada feito chumbo
nada me salva num naufrágio

boia de borracha bote apito
sinal luminoso colete salva-vidas
vou direto pro fundo em movimentos largos
balé subaquático nado sincronizado

fiz de tudo na hora da partida
embarquei  às pressas
soltei as amarras só de sacanagem
de vez em quando posso até morrer na praia
enrodilhada em algas e sargaços

outras vezes também me distraio
envio bilhetes da Inglaterra
cartões postais de uma viagem à Itália

já não dou corda pros teus chiliques
nem lanço âncora em qualquer enseada
e sequer penso em afundar navios

mas um dia ainda me afogo no álcool


Izabela Leal, Retratos fora de foco para mulheres sob disfarce, Belém: Edições 1/4, 2018.


























quarta-feira, 14 de março de 2018


Porque eu vou morrer


Stop.
Pára Hércules, solta o Leão de Neméia.
Entope Gibraltar.
Descansa um momento e chora,
porque eu vou morrer.

Aquieta-te Nero,
apaga o fogo de Roma,
larga os cristãos,
segura tua harpa e chora,
porque eu vou morrer.

Escuta Colosso de Rodes,
larga essa tocha,
fecha esse porto,
te senta um pedaço e chora,
porque eu vou morrer.

Acalma-te mar,
descansa tuas águas,
enxuga tuas praias,
afoga-te em ti e chora,
porque eu vou morrer.

Alerta campônio,
põe de lado essa enxada,
expele esse arado,
depressa queima tua casa e chora,
porque eu vou morrer.

Atentai todos os homens.
Papai, um instante.
Olhai por cima,
chorai uns três mares e também morrei,
porque eu vou morrer.




Torquato Neto, Bahia 12.10.1961

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Este Mundo


Noite, duro tempo
fechado mas os dias
nascem. A manhã
abre com luz 

na janela.
O sol, agora, escala
O céu azul.
Ao meio-dia

na praia
posso ver
cintilantes ondas,
para sempre,

seguir seus sons
fundos, na mente
ecoam –
deixar a luz

como ar
ser um alívio.
O vento
corta o rosto

e as mãos,
mais frias. O que
se pode pensar –
o mar

miríade de pedras.
Nuvens passam,
cinza do lado de baixo,
branco feixe

de ar, tudo
ar. Água
se move à margem,
azul, verde

branca trama
de espuma.
O que se
perde,

se recobra.
O que importa, a cada um,
neste mundo?




Robert Creeley Tradução Régis Bonvicino
Foto: Skopje, Macedónia © Dragana Jurisic

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

A dança dos fantasmas
Sobre as figuras de Ney Ferraz Paiva
Por Nilson Oliveira


Detetive sem mistério, Ney Ferraz Paiva, colagem, 2017.



As figuras de «Numa gaiola com pombos como Magritte» gravitam em instigante jogo de acoplamento e montagem, num movente espiral, cujas formas oscilam cintilando grafias, imagens, traços, rasgos, numa composição plena de margens e atritos. Por vezes são figuras sobrepondo figuras, constituindo uma vertiginosa poética das disjunções.
Tais figuras/espectros, nessa linha de montagem e desmontagem, irrompem para fora de toda quietação, desordenando identidades, num fluxo de erupções e desassossegos.

São sombras sem sombra, rostos realçados pelo fulgor de uma fenda imprecisa. Por vezes estão sós, acuados entre a desordem da tela e o arco vazio da moldura branca. Mas, por outras, acoplados a coisas, a uma máquina, a um fantasma, ou a outrem, com o riso mais comumremota singularidade. Todos, nesse fundo sem fundo, com Magritte, imersos no mistério do caminho.


Seguindo tranquilamente o caminho, Ney Ferraz Paiva, colagem, 2016.



Das figuras, neste abismo de gaiolas e pombos, cruzam a cena, Haroldo Maranhão, Sylvia Plath, João Cabral de Melo Neto, Max Martins. Todos, numa sensível relação de metamorfose entre o espaço, a escritura e o vazio.
Vigoroso elo entre corpos e escritas, cujos desdobramentos implicam numa experiência: a ideia da colagemzona de cópula e atritoefusão de cortes e suturas, imagens contrabandeadas, devaneios do resto, garatujas.
Essas experiências derivam de forças imperceptíveiscubismo, surrealismo, arte popna direção do vitalismo possível no espaço do fazer artístico. De outro modo, se articulam na interface dos combates entre imagem e poesia, na cadência de um pensamento no qual o gesto se consagra nas distinções entre o mundoda literaturae o que pulsa na imprecisão do fora mais longínquo.

Nesses pouco mais de 20 anos de poesia, os caminhos de Ney Ferraz Paiva sempre foram antípodas do repouso, no trabalho braçal do poema, de jornada em jornada, na inquieta busca da poesia.



terça-feira, 21 de novembro de 2017

CHELSEA HOTEL MAIO DE 1971





No decorrer de uma manhã de brincadeiras
Como num filme de Hitchcock
Você me deu uma faca
O suspense entre nós estava criado
Sob o chuveiro você convida
Atenta ao perigo que a cerca
A faca risca a cena
Obriga o corpo a uma tarefa delicada
De olhos vendados
Passo a marcar você
A dor se abre como uma árvore
Mão suspensa no ar
Tudo que vai colher
Deixo todos os traços da minha passagem
A febre o corte o rasgo
















Ney Ferraz Paiva

terça-feira, 3 de outubro de 2017

INTEMPESTIVIDADE




Onde nasci? em Estranha
Maura Lopes Cançado
É a minha mais esquisita
Conterrânea
Lá as mulheres não enlouquecem
Por castigo divino
Trocam e-mails impublicáveis com o primo
Têm um elefante solto na cabeça
Onze Mil Varas de Apollinaire
Num pendrive





Ney Ferraz Paiva

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Antipoética de Houdini


Atado pelos pulsos na cama
Arranco os fios à noite?
Mal acordo
E sou o Arranca-Fios!
Estude os nós
Tudo é desatável
Pela atenção paciente
Sou Houdini o mágico
Mas jamais afundaria nas águas
Acorrentado numa pedra



Sebastião Uchoa Leite
David Shannon

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Contrariedades

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
    Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
    E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
    E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
    Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
    Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redação, das que elogiam tudo,
    Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
    Vale um desdém solene.

Com raras exceções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
    Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
    Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingenuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
    Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";
E a mim, não há questão que mais me contrarie
    Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimento finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
    Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
    E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
    Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
    Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague",
E esta poesia pede um editor que pague
    Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
    Que mundo! Coitadinha!



Cesário Verde
Guilherme Ginane, 6 cigarros, 2016. Óleo sobre tela. 120 x 100 cm