o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015


ENCONTRO ENTRE CAUBY CRUZ E OSWALDO GOELDI

O silêncio, e o que mais aconteça.
Antonio Gamoneda

Começo o meu relato. Um rascunho. Um esboço. Uma atmosfera. Vou tentar aproximar alguns turnos de escrita e gravura. Cauby Cruz e Oswaldo Goeldi. Tantas histórias houve, há entre eles. É só deixar haver. O rosto, o traço. Ver que estão num mesmo sonho. Neste sonho é sempre noite. Num primeiro momento pressente-se o lugar, e a textura desolada da paisagem se abre sobre dorsos de corpos que vagam como espectros, vivendo de pequenos afazeres, bicos, ocupações incertas e daí de volta ao mais miserável dos quartos. O legado sombrio que se esparrama pelo mundo e pela história que os cerca. O legado que nada deixa além da escuridão. Uma espécie de errância fundamental paira sobre eles e o mundo deles. Depois da porta, há a noite, através da qual os indeléveis passos vão se tornando progressivamente mais intensos, tentando culminar num desfecho. Mas o mundo de sombras permanece inescrutável. Todos seguem ligados aos mesmos destroços da noite. Estamos no distante centro de uma cidade que é toda ela um submundo. Virada contra si mesma. Sem respirar o tempo presente e deteriorada pelo futuro. Apagada de sua própria vida. Tudo é operado para que a cidade não surja de dentro do habitante. No sonho, como na vida, o enredo pode resultar um curto-circuito... De repente, surge um homem sobre um trecho de trilhos, ele assinala para a locomotiva que se aproxima e que nem em cem anos vai tornar-se um TGV (sigla do trem-bala francês). Move no breu o braço inútil. No sonho, ele é o poeta. Pelo avesso, na vida, nós somos ele. No sonho, que permanece noite, o homem e a máquina refletem a ordem e a conexão vigente de uma realidade injusta. Noutro ponto da paisagem, outro homem ostenta um guarda chuva vermelho aberto. Uma cena que não se refere ainda a um alerta das previsões climáticas. Antes, perscruta todo cenário de mudança, transformação ao mesmo tempo criadora, intelectual e artística, e que talvez acentue ainda mais o contexto de espera inquietante. A chuva surpreende e aprisiona a um canto, como um perigo que está progredindo. Não se sabe o que é, está apenas lá, de longe, com as garras abertas. Um vislumbre. Uma fantasmagoria. “O inseto em si não pode ser mostrado”, opina Kafka. A forma como o artista, e sobretudo o escritor, se envolve com a própria criação o vincula ao mundo que avista. Cauby se retirou por mais de vinte anos para escrever – e escrevendo fez cessar a escrita. Escrever é um aborrecimento. Logo ao se iniciar deve-se retomar o silêncio. Goeldi, que nunca foi um buscador, um que estivesse à procura, tornou-se cada vez mais recuado e distante. “Tão solitário, Goeldi!”, grita Drummond. Fez longa carreira pelo mundo, ainda que o mundo lhe fosse um lugar distante, de poucas e raras aproximações. Como Cauby, sentia-se à parte da confraria. Com efeito, criar não é nada dócil, mesmo se a criação for gentilmente autorizada pelos herdeiros, mesmo se patrocinadores institucionais forem honrados (e ironia maior: ainda bem que no nosso caso não são, não podem ser, nos impõem a fazer e pronto!) ou se por uma série de razões se concorda em não pensar no assunto – sem se mover do luto, da vergonha, do pudor, saudosos de todos os falecimentos. E joga-se os velhos jogos. E fica-se do lado da lei. E toma-se parte do mesmo núcleo da moral oficial & do poder. E a arte vira esse lugar de cavaleiros pomposos. Arte Filosofia Religião Ciência produzidas em cadeia para abastecer os mercados da beleza e do cosmético, da diversão e do laser, do luxo e do bom gosto exacerbado - dominador - amado - cultuado. O convite de Cauby e de Goeldi é outro: não apenas sentir a verdade na carne; ela como algo mantida conservada em álcool – e sim de forma nietzschiana: a verdade devorada nos rituais da fome... “sofrer a mesma fome” (Cauby nos impele), engolir e ser engolido na longa noite de antropofagia que é o paraíso...


 





Ney Ferraz Paiva

Belém, janeiro, 2015.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015


A LOUCURA SEM REPOUSO
Toda doença pode ser chamada doença da alma.
Novalis


aqui sobre a mesa à nossa
frente está Berna Reale
a paisagem de uma cidade
enfermaria a céu aberto
é feita de carne
deteriora despedaça separa
arrasa como uma sombra no
pulmão
tosses suores asfixias
em busca de ar fresco
pessoas descem ruas
mercados rios praças
uma musculatura louca
também isso a arte faz
traz cadáveres à rua
pra revoar os pássaros do
horror
deixar falar os balbucios do
medo
os braços da morte não estão
mais
cruzados diante do espectador
aonde essa doença vai dar
sem penicilina & cânfora
a um sem-número de nãos?
a uma dor mais intensa?
aqui sobre a mesa à nossa
frente está Berna Reale
o corpo nu sem respiração
ligado à loucura & à morte
ainda assim quer viver
absorto em seu mal
quer seguir respirando
aspirar o ar necessário
pra nunca mais precisar
voltar à superfície




ney ferraz paiva