o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sábado, 21 de agosto de 2010

Os Conjurados, Jorge Luis Borges


César

Aqui, o que deixaram os punhais.
Aqui, essa pobre coisa, um homem morto
que se chamava César. Aberto;
nas crateras da carne, os metais.
Aqui o atroz, aqui a detida
máquina usada ontem para a glória,
para escrever e executar a história
e para o gozo pleno da vida.
Aqui também o outro, aquele prudente
imperador que declinou medalhas,
que comandou barcos e batalhas
e que regeu o oriente e o poente.
Aqui também o outro, o que virá
cuja grande sombra o mundo inteiro será.

Tríade

O alívio que terá sentido César na manhã de Farsalia, ao
pensar: hoje é a batalha!
O alívio que terá sentido Carlos Primeiro ao ver o amanhecer
no cristal e pensar: hoje é o dia do patíbulo, da coragem e do machado.
O alívio que tu e eu sentiremos no instante que precede a morte, quando a sorte
nos desate do triste costume de ser alguém e do peso do universo.

A trama

As migrações que o historiador, guiado pelas desafortunadas relíquias da cerâmica e do bronze, trata de fixar no mapa, e que não compreenderam os povos que as executaram.
As divindades do amanhecer que não deixaram nem um ídolo nem um símbolo.
O sulco do arado de Caim.
O sereno na grama do Paraíso.
Os hexagramas que um imperador descobriu na carcaça de uma das tartarugas sagradas.
As águas que não sabem que são o Ganges.
O peso de uma rosa em Persépolis.
O peso de uma rosa em Bengala.
Os rotos que se pôs uma máscara que guarda uma vitrine.
O nome da espada de Heengist.
O último sonho de Shakespeare.
A pena que traçou a curiosa linha: He met the Nightmare and her name he told.
O primeiro espelho, o primeiro hexâmetro.
As páginas que leu um homem cinzento e que lhe revelaram
que podia ser Don Quixote.
Um ocaso cujo escarlate perdura em um vaso de Creta.
Os brinquedos de um menino que se chamava Tibério Graco.
O anel de ouro de Polícrates que o Destino recusou.
Não há uma só dessas coisas perdidas que não projete agora uma extensa sombra, e que não determine o que fazes hoje ou o que farás amanhã.

Relíquias

O hemisfério austral. Sob sua álgebra
de estrelas ignoradas por Ulisses,
um homem busca e seguirá buscando
as relíquias daquela epifania
que lhe foi dada, há tantos anos,
do outro lado de uma numerada
porta de hotel, junto ao perpétuo Tamisa,
que flui como flui esse outro rio,
o tênue tempo Elemental. A carne
esquece seus pesares e seus êxtases.
O homem espera e sonha. Vagamente
resgata umas triviais circunstâncias.
Um nome de mulher, uma brancura,
um corpo já sem rosto, a penumbra
de uma tarde sem data, a garoa,
umas flores de cera sobre um mármore
e as paredes, cor rosa pálido.


 São os rios

Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito o Obscuro.
Somos a água, não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos aquele grego
que se olha no rio. Seu semblante
muda na água do espelho mutante,
no cristal que muda como o fogo.
Somos o vão rio prefixado,
rumo a seu mar. Pela sombra cercado.
Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha sua moeda.
E no entanto há algo que se queda
e no entanto há algo que se queixa.

A jovem noite

Já as lustrais águas da noite me absolvem
das muitas cores e das muitas formas.
Já no jardim as aves e os astros exaltam
o regresso esperado das antigas normas
do sonho e da sombra. Já a sombra selou
os espelhos que copiam a ficção das coisas.
Melhor disse Goethe: o próximo se afasta.
Essas quatro palavras cifram todo o crepúsculo.
No jardim as rosas deixam de ser as rosas
e querem ser a Rosa.

Elegia de um parque

Perdeu-se o labirinto. Perderam-se
todos os eucaliptos ordenados,
os toldos do verão e a vigília
do incessante espelho, repetindo
cada expressão de cada rosto humano,
cada fugacidade. O suspenso
relógio, a entretecida madresselva,
o arvoredo, as frívolas estátuas,
o outro lado da tarde, o trino,
o belvedere e o ócio da fonte
são coisas do passado. Do passado?
Se não houve um princípio nem haverá um término,
se nos aguarda uma infinita soma
de brancos dias e de negras noites,
já somos o passado que seremos.
Somos o tempo, o rio indivisível,
somos Uxmal, Catargo e a apagada
muralha do romano e o perdido
parque que comemoram estes versos.

A suma

Ante a cal de uma parede que nada
nos veda imaginar como infinita
um homem se sentou e premedita
traçar com rigorosa pincelada
na branca parede o mundo inteiro:
portas, balanças, tártaros, jacintos,
anjos, bibliotecas, labirintos,
âncoras, Uxmal, o infinito, o zero.
Povoa de formas a parede. A sorte,
que de curiosos dons não é avara,
lhe permite dar fim à sua porfia.
No preciso instante da morte
descobre que esta vasta algaravia
de linhas é a imagem de sua cara.


Nuvens (1)

Não haverá uma só coisa que não dê ideia
de uma nuvem. O são as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o templo renderá. O é a Odisséia,
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de teu rosto já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte em outra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que está perdido.


Nuvens (2)

Pelo ar andam plácidas montanhas
ou da sombra de cordilheiras trágicas
que obscurecem o dia. São as mágicas
nuvens. As formas podem ser estranhas.
Shakespeare observou uma. Parecia
um dragão. Essa nuvem de uma tarde
em sua palavra resplandece e arde
e a seguimos vendo todavia.
Que são as nuvens? Uma arquitetura
do azar? Deus, talvez, as necessita
para a execução de Sua infinita
obra e são fios da trama obscura.
Talvez a nuvem seja não menos vã
do que o homem que a olha de manhã.


Tradução: Pepe Escobar

segunda-feira, 9 de agosto de 2010



A LITERATURA E A VIDA [1]
Gilles Deleuze
Tradução Peter Pál Pelbart 

Decerto que escrever não é impor uma forma (de expressão) a uma matéria, a do vivido. A literatura tem que ver, em contrapartida, com o informe, com o inacabado, como disse Gombrowicz e como o fez. Escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre a fazer-se, que extravasa toda a matéria vivível ou vivida. É um processo, quer dizer, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrevermos, devimos-mulher, devimos-animal ou vegetal, devimos-molécula até devir-imperceptível. Estes devires encadeiam-se uns com os outros segundo uma linha particular, como num romance de Le Clézio, ou então coexistem em todos os níveis, por intermédio de portas, entradas e zonas que compõem o universo inteiro, como na poderosa obra de Lovecraft. O devir não vai noutro sentido: não devimos Homem, mesmo que o homem se apresente como uma forma de expressão dominante que pretenda impor-se a toda a matéria; ao passo que mulher, animal ou molécula têm uma componente de fuga que se descarta à sua própria formalização. A vergonha de se ser um homem: haverá melhor razão de escrever? Mesmo quando é uma mulher que devém, ela tem de devir-mulher, e este devir nada tem que ver com um estado de qual poderia vir a reclamar-se. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimésis), mas é encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação, de maneira que já não nos podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: e que não são nem imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto mais singularizados numa população. Pode-se instaurar uma zona de vizinhança com qualquer coisa, com a condição de que se criem os meios literários para isso, como com o áster, segundo André Dhôtel. Entre os sexos, os gêneros ou os reinos, qualquer coisa passa [2] . O devir é sempre “entre” ou “dentre”: mulher entre as mulheres, ou animal dentre outros animais. Mas o artigo indefinido não efetua a sua potência a não ser que o termo que ele faz devir seja, ele próprio, desapossado dos caracteres formais que fazem dizer o,a (“o animal que aqui está”). Quando Le Clézio devém-índio, é um índio inacabado esse, que não sabe “cultivar milho nem talhar uma piroga”: em vez de adquirir características formais, entra numa zona de vizinhança [3]. Do mesmo modo Kafka, o campeão de natação que não sabia nadar. Toda a escrita comporta um atletismo, mas não tem nada que ver com uma reconciliação da literatura com o desporto, ou com o fazer da escrita um jogo olímpico  este atletismo exerce-se na fuga e no eclipse orgânicos: um desportista na cama, dizia Michaux. Devimos tanto mais animal quanto o animal morre; e, contrariamente a um preconceito espiritualista, quem sabe morrer é o animal, é o animal que tem o sentido disso ou o pressentimento. A literatura começa com a morte do porco-espinho, segundo Lawrence, ou a morte da toupeira, segundo Kafka: “as nossas pobres pequenas patinhas vermelhas estendidas num gesto de terna piedade”. Escreve-se para os bezerros que morrem, dizia Moritz [4]. A língua deve atingir desvios femininos, animais, moleculares, e todo o desvio é um devir mortal. Não há linha recta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos desvios necessários, criados, de cada vez, para revelar a vida nas coisas.

Escrever não é narrar as recordações, as viagens, os amores e o luto, os sonhos e os fantasmas. É o mesmo pecar por excesso de realidade ou de imaginação: nos dois casos é o eterno papá-mamã, estrutura edipiana que projetamos no real ou que injetamos no imaginário. Trata-se de um pai que se vai buscar no fim da viagem, no seio de um sonho, numa concepção infantil da literatura. Escreve-se para o seu pai-mãe. Marthe Robert levou até ao fim esta infantilização, esta psicanalização da literatura, não deixando outra escolha ao escritor senão entre Bastardo ou Filho reencontrado [5]. Mesmo o devir-animal não está ao abrigo de uma redução edipiana, do gênero “o meu gato, o meu cão”. Como diz Lawrence, “se eu sou uma girafa e os ingleses vulgares que escrevem sobre mim são cães bem educados, aí está, os animais são diferentes, detestais instintivamente o animal que sou” [6]. Regra geral, os fantasmas não tratam o indefinido a não ser como máscara de um pronome pessoal ou de um possessivo: “uma criança apanhou” transforma-se depressa em “o meu pai me bateu”. Mas a literatura segue a via inversa, e só se levanta quando descobre sob as pessoas aparentes a potência de um impessoal que de modo nenhum é uma generalidade, mas uma singularidade ao mais alto nível: um homem, uma mulher, um animal, um ventre, uma criança. Não são as duas primeiras pessoas que servem de condição à enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos retira o poder de dizer Eu (o “neutro” de Blanchot) [7]. Claro, as personagens literárias são perfeitamente individuadas, e não são nem vagas nem gerais; mas todos os seus traços individuais elevam-nas a uma visão que as transporta para um indefinido, como um devir demasiado poderoso para elas: Acab e a visão de Moby Dick. O Avarento não é um tipo, mas, pelo contrário, os seus traços individuais (amar uma rapariga etc.) fazem com que aceda a uma visão, ele vê o ouro, de tal maneira que se põe em fuga numa linha de feiticeira na qual adquire a potência do indefinido  um avarento… de ouro, cada vez mais ouro… Não há literatura sem fabulação, mas, como Bergson o soube ver, a fabulação, a função fabuladora, não consiste em imaginar nem em projectar um eu. Contrariamente a isso, ela atinge essas visões, eleva-se até esses devires ou potências.

Não se escreve com as neuroses. A neurose, a psicose, não são passagens de vida, mas estados nos quais se cai quando o processo se interrompe, quando está impedido, preenchido. A doença não é processo, mas paragem do processo, como no “caso Nietzsche”. E também o escritor como tal não é doente, mas médico, médico de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura surge então como uma tarefa de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma grande saúde (haveria aqui a mesma ambiguidade que no atletismo), mas usufrui de uma irresistível pequena saúde que vem daquilo que viu e escutou, das coisas demasiado grandes para ele, demasiado fortes para ele, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, e que lhe dá, no entanto, devires que uma grande saúde dominante tornaria impossíveis [8]. Do que viu, do que escutou, o escritor regressa com os olhos vermelhos, os tímpanos furados. Qual a saúde que seria suficiente para libertar a vida em todo o lado onde ela está presa, pelo homem e no homem? É a pequena saúde de Espinosa, enquanto dura, sendo até ao fim testemunha de uma nova visão, que se abre à sua passagem.

A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Pertence à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com as recordações, a menos que se faça delas a origem ou o destino colectivos de um povo a vir ainda emerso nas suas traições e abjurações. A literatura americana tem esse poder excepcional de produzir escritores que podem narrar as suas próprias recordações, mas como recordações de um povo universal composto pelos emigrantes de todos os países. Thomas Wolf “deita por escrito toda a América, na medida em que ela se pode encontrar na experiência de um só homem” [9]. Precisamente, não é um povo chamado a dominar o mundo. É um povo menor, eternamente menor, absorvido num devir-revolucionário. Talvez ele não exista senão nos átomos do escritor, povo bastardo, inferior, dominado, sempre em devir, sempre inacabado. Bastardo não designa já um estado familiar, mas o processo ou a deriva das raças. Eu sou uma besta, um negro de raça inferior para toda a eternidade. É o devir do escritor. Kafka para a Europa central, Melville para a América, apresentam a literatura como enunciação colectiva de um povo menor, ou de todos os povos menores, que, por intermédio do escritor e nele próprio, encontram a sua expressão [10]. Ainda que reenvie sempre para agentes singulares, a literatura é agenciamento colectivo de enunciação. A literatura é delírio, mas o delírio não é um assunto de pai-mãe: não há delírio que não passe pelos povos, pelas raças e as tribos, e que não habite a história universal. Todo o delírio é histórico- mundial, “deslocamento das raças e dos continentes”. A literatura é delírio, e nisto joga o seu destino entre os dois polos do delírio. O delírio é uma doença, a doença por excelência, quando erige uma raça que se pretende pura e dominante. Mas ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida, que não pára de se agitar sob as dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona, e de se esboçar enquanto fundo na literatura como processo. Ainda aí, há um estado doentio que pode sempre interromper o processo ou o devir; e encontramos a mesma ambiguidade da saúde e do atletismo, o risco constante que um delírio de domínio se misture com o devir bastardo, e arraste a literatura para um fascismo larvar, a doença contra a qual ela luta, até que a diagnostique nela própria e lute contra ela própria. Fim último da literatura, distinguir no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, quer dizer, uma possibilidade de vida. Escrever para esse povo que falta (“para” significa menos “no lugar de” do que “na intenção de”).

O que a literatura faz na língua surge agora melhor: como diz Proust, aquela traça nesta uma espécie de língua estrangeira, que não é outra língua, nem um patos reencontrado, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a transporta, uma linha de feiticeira que se escapa do sistema dominante. Kafka fazia dizer ao campeão de natação: eu falo a mesma língua que vós, e porém não percebo uma palavra daquilo que dizeis. Criação sintática, estilo, é este o devir da língua: não há criação de palavras, não há neologismos que tenham valor fora dos efeitos de sintaxe em que se desenvolvem. A literatura apresenta dois aspectos, na medida em que ela opera uma decomposição ou uma destruição da língua materna, mas também opera a invenção de uma nova língua na língua, por criação de sintaxe. “A única maneira de defender a língua é atacá-la. Cada escritor é obrigado a fazer a sua língua” [11]. Dir-se-ia que a língua está tomada por um delírio, que a faz precisamente sair dos seus próprios sulcos. Quanto ao terceiro aspecto, reside em que uma língua estrangeira não é sulcada na própria língua sem que toda a linguagem, por sua vez, oscile, sem que seja levada a um limite, a um lado de fora ou a um avesso consistindo em Visões e Audições que já não pertencem a nenhuma língua. Estas visões não são fantasmas, mas verdadeiras Ideias que o escritor vê e escuta nos interstícios da linguagem, nos hiatos de linguagem. Não são interrupções do processo, mas paragens que fazem parte dele, como uma eternidade que não pode ser revelada a não ser no devir, uma paisagem que não aparece a não ser no movimento. Não estão fora da linguagem, elas são o seu lado de fora. O escritor enquanto vidente e ouvinte, objectivo da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as Ideias.

São estes os três aspectos que em Artaud estão perpetuamente em movimento: a queda das letras na decomposição da linguagem maternal; a sua retomada numa nova sintaxe ou em novos nomes de alcance sintáctico, criadores de uma língua (“eTReTé” [12]); as palavras-sopro finalmente, limite assintáctico para onde tende toda a linguagem. E Céline, não podemos impedir-nos de o dizer, tão sumário o sentimos: a V agem ou a decomposição da língua maternal; Morte a Crédito e a nova sintaxe como uma língua na língua; Guignol's Band e as exclamações suspensas como limite da linguagem, visões e sonoridades explosivas. Para escrever, talvez seja necessário que a língua materna seja odiosa, mas de maneira tal que uma criação sintáctica trace aí uma espécie de língua estrangeira, e que a linguagem toda inteira revele o seu lado de fora, para além de toda a sintaxe. Acontece que se felicita um escritor, mas ele sabe que está longe de atingir o limite que se propôs e que não pára de se deslocar, que está muito longe de ter acabado o seu devir. Escrever é também devir outra coisa diferente de um escritor. Àqueles que lhe perguntam em que é que consiste a escrita, Virgínia Wolf responde: quem é que vos fala em escrever? O escritor não fala disso, está preocupado com outra coisa.

Considerando estes critérios, vemos que, de entre todos aqueles que fazem livros com intenção literária, mesmo entre os loucos, muito poucos podem dizer-se escritores.


Notas:

1. Deleuze, Gilles, “La Litérature et la Vie”, Critique et Clinique, Minuit, Paris, 1993, pp. 11-17.
2. Cf. André Dhôtel, Terres de mémoire, Ed. Universitaires (sobre um devir-áster em La Chronique fabuleuse, p.225).
3. Le Clézio,Haï, Flammarion, p.5. No seu primeiro romance, Le procès-verbal, Folio-Gallimard, Le Clézio apresentava de maneira quase exemplar um personagem tomado num devir-mulher, depois num devir-rato, depois num devir-imperceptível em que se apaga.
4. Cf. J.-C. Bailly, La légende dispersée, anthologie du romantisme allemand, 10-18, p.38.
5. Marthe Robert, Roman des origines et origines du roman, Grasset.
6. Lawrence, Lettres choisies, Plon, II, p.237.
7. Blanchot, La part du feu, Gallimard, p.29-30, e L'entretien infini, p.563-564:
“Qualquer coisa lhes acontece (aos personagens) donde não podem sair a não ser desapossando-se do seu poder de dizer Eu.” A literatura parece aqui desmentir a concepção linguística, que encontra a condição da enunciação nos “embrayeurs”, nomeadamente nas duas primeira pessoas.
8. Sobre a literatura enquanto assunto de saúde, mas para aqueles que não a têm ou que têm uma saúde frágil, cf. Michaux, posfácio a “Mes propriétés”, in La nuit remue, Gallimard. E Le Clézio, Haï, p.7: “Um dia, saberemos talvez que não havia
arte, mas apenas medicina.”
9. André Bay, prefácio a Thomas Wolfe, De la mort au matin, Stock.
10. Cf. as reflexões de Kafka sobre as literaturas ditas menores, Jou rn al, Livre de poche, p.179-182; e as de Melville sobre a literatura americana, D'où viens-tu, Hawthorne?, Gallimard, p.237-240.
11. Cf. André Dhôtel, Terres de mémoire, Ed. Universitaires (sobre um devir-áster, em La Chronique fabuleuse, p.225).
12. Como no original. [n.d.t.].

sábado, 7 de agosto de 2010

UM GUARDA-CHUVA NO CAOS: D. H. LAWRENCE




A poesia, dizem, é uma questão de palavras. E é verdade, tanto quanto a pintura é uma questão de tinta e o afresco, uma questão de água e ocra. Mas isso está tão longe de ser toda a verdade que soa um tanto simplista quando dito secamente.

A poesia é uma questão de palavras. A poesia consiste em combinar palavras para fazê-las ondular e vibrar e colorir. A poesia é um jogo de imagens. A poesia é a iridescente sugestão de um ideia. A poesia é todas essas coisas e, contudo, é algo mais. [...]

A qualidade essencial da poesia consiste em que ela exige um esforço renovado da atenção, e que “descobre” um mundo novo no interior do mundo conhecido. O homem, e os animais, e as flores, vivem todos dentro de um caos estranho e permanentemente revolto. Chamamos cosmo ao caos ao qual nos acostumamos. Chamamos consciência – e mente, e também civilização – ao indizível caos interior de que somos compostos. Mas trata-se, em última instância, do caos, iluminado por visões, ou não iluminado por visões. Exatamente como o arco-íris pode ou não iluminar a tempestade. E, tal como o arco-íris, a visão perece.

Mas o homem não pode viver no caos. Os animais podem. Para o animal tudo é caos, havendo apenas algumas poucas e recorrentes agitações e aparências em meio ao tumulto. E o animal fica feliz. Mas o homem não. O homem deve envolver-se em uma visão e construir uma casa que tenha uma forma evidente e que seja estável e fixa. No pavor que tem do caos, começa por levantar um guarda-chuva entre ele e o permanente redemoinho. Então, pinta o interior do guarda-chuva como um firmamento. Depois, anda à volta, vive, e morre sob seu guarda-chuva. Deixado em herança a seus descendentes, o guarda-chuva transforma-se em uma cúpula, uma abóbada, e os homens começam a sentir que algo está errado.

O homem ergue, entre ele e o selvagem caos, algum maravilhoso edifício de sua própria criação, e gradualmente torna-se pálido e rígido embaixo de seu pára-sol. Então ele se torna um poeta, um inimigo da convenção, e faz um furo no guarda-chuva; e oba!, o vislumbre do caos é uma visão, uma janela para o sol. Mas depois de um certo tempo, tendo se acostumado à visão, e não lhe agradando a genuína golfada de ar do caos, o homem do lugar-comum rascunha um simulacro da janela que se abre para o caos, e remenda o guarda-chuva com o remendo pintado do simulacro. Isto é, ele se acostumou à visão; ela faz parte da decoração de sua casa. De maneira que o guarda-chuva finalmente parece um amplo e brilhante firmamento, de vistas variadas. Mas, que pena!, é tudo simulacro, feito de inumeráveis remendos. Homero e Keats, cheios de anotações e acompanhados de um glossário.

Esta é a história da poesia em nosso tempo. Alguém vê Titãs no ar selvagem do caos, e o Titã torna-se uma parede entre as sucessivas gerações e o caos que elas deveriam ter herdado. O céu selvagem pôs-se em movimento e cantou. Até isso torna-se um grande guarda-chuva entre a humanidade e o céu de ar fresco; ele tornou-se, então, uma abóbada pintada, um afresco num teto abobadado, sob o qual os homens empalidecem e se tornam infelizes. Até que um outro poeta faça um buraco no amplo e tempestuoso caos.”


D.H. LAWRENCE – in Selected Critical Writings, p. 234.


Nota: Deleuze e Guattari em O que é Filosofia (Editora 34, ) retomam de modo brilhante este texto de D. H. Lawrence. Você verá também um estudo sobre o Apocalipse a partir de Lawrence em: Nietzshe e São Paulo, D. H. Lawrence e João de Patmos – in Gilles Deleuze, Crítica e Clínica. Tradução de Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

cultura-caos

não leio livros coleciono capas
descobri drummond não usou
mais que quatro cores na vida
whitman jamais assinou e sim
registrou foto às “folhas de relva”
lima barreto cortou orelhas
que machado escusou prefaciar
ana cristina mimeografou em londres
livros nos fundos de uma boate gay
não enrubesçam nem se revoltem
leio capas coleciono livros
o diafragma aberto de seu dorso



ney ferraz paiva
imagem: c. neill

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Orfeu Rebelde



Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do Tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.





Miguel Torga
imagem: Dante Ferraz



Desfecho



Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte).
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente,
Do teu vulto calado,
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando, alguém lhe perturba a solidão
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.





Miguel Torga, Câmara Ardente
imagem: ney ferraz paiva