A minha letra é um bilhete de loteria. Às vezes ela me dá muito, outras vezes tira-me os últimos tostões de minha inteligência. Eu devia esta explicação aos meus leitores, porque, sob a minha responsabilidade, tem saído cada coisa de se tirar o chapéu. Não há folhetim em que não venham coisas extraordinárias. Se, às vezes, não me põe mal com a gramática, põe-me em hostilidade com o bom senso e arrasta-me a dizer coisas descabidas. Ainda no último folhetim, além de um ou dois períodos completamente truncados e outras coisas, ela levou à compreensão dos meus raros leitores – grandeza – quando se tratava de pândega; num artigo que publiquei há dias na Estação Teatral, este então totalmente empastelado, havia coisas do arco-da-velha.
Aqui já saiu um folhetim meu, aquele que eu mais estimo, “Os galeões do México”, tão truncado, tão doido, que mais parecia delírio que coisa de homem são de espírito. Tive medo de ser recolhido ao hospício...
Que ela me levasse a incorrer na crítica gramatical da terra, vá; mas que me leve a dizer coisas contra a clara inteligência das coisas, contra o bom senso e o pensar honesto e com plena consciência do que estou fazendo! e não sei a razão porque a minha letra me trai de maneira tão insólita e inesperada. Não digo que sejam os tipógrafos ou os revisores; eu não digo que sejam eles que me fazem escrever – a exposição de palavras sinistras – quando se tratava de exposição de projetos sinistros. Não, não são eles. Nem eu. É a minha letra.
Estou nesta posição absolutamente inqualificável, original e pouco classificável: um homem que pensa uma coisa, quer ser escritor, mas a letra escreve outra coisa e asnática. Que hei de fazer?
Eu quero ser escritor, porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei os meus navios; deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras.
Não quero aqui fazer minha biografia; basta, penso eu, que lhes diga que abandonei todos os caminhos, por essas letras; e o fiz conscientemente, sem nada de mais forte que me desviasse de qualquer outra ambição; e agora vem essa coisa de letra, esse último obstáculo, esse premente pesadelo, e não sei que hei de fazer!
Abandonar o propósito; deixar a estrada desembaraçada a todos os gênios explosivos e econômicos que de que esses Brasis e os políticos nos abarrotam?
É duro fazê-lo, depois de quase dez anos de trabalho, de esforço contínuo e – por que não dizer? – de estudo, sofrimento e humilhações. Mude de letra, disse-me alguém.
É curioso. Como se eu pudesse ficar bonito, só pelo fato de querer.
Ora, esse meu conselheiro é um dos homens mais simples que eu conheço. Mudar de letra! Onde é que ele viu isso? Com certeza ele não disse isso a Senhor Alcindo Guanabara, cuja letra é famosa nos jornais, que o fizesse; com certeza, ele não diria ao Senhor Machado de Assis também. O motivo é simples: O Senhor Alcindo é o chefe, é príncipe do jornalismo, é deputado; e Machado de Assis era grande chanceler das letras, homem aclamado e considerado; ambos, portanto, não podiam mudar de letra; mas eu, pobre autor de um livreco, eu que não sou nem doutor em qualquer história – eu, decerto, tenho o dever e posso mudar de letra.
Outro conselheiro (são sempre pessoas a que faço reclamações sobre os erros) disse-me: escreva em máquina. Ponho de parte o custo de um desses desgraciosos aparelhos, e lembro aqui aos senhores que aquilo é fatigante, cansa muito e obrigava-me ao trabalho nauseante de fazer um artigo duas vezes: escrever à pena e passar a limpo em máquina.
O mais interessante é que a minha letra, além de me ter emprestado uma razoável estupidez, fez-me arranjar inimigos. Não tenho a indiferença que toda a gente tem pelos inimigos; se não tenho medo, não sou neutro diante deles; mas isso de ter inimigos só por causa da letra, é de espantar, é de modificar.
Já não posso entrar na revisão e nas oficinas aqui da casa. Logo na entrada percebo a hostilidade muda contra mim e me apavoro. Se fosse no cenáculo do Garnier ou em outro qualquer, seria bom; se fosse mesmo no salão literário do Coelho Neto, eu ficaria contente; entre aqueles homens simples, porém, com os quais eu não compito em nada, é para a gente julgar-se um monstro, um peste, um flagelo. E tudo isso por quê? Por causa da minha letra. Desespero decididamente.
De manhã, quando recebo a Gazeta ou outra publicação em que haja coisas minhas , eu me encho de medo, e é com medo que começo a ler o artigo que firmo com a responsabilidade do meu humilde nome. A continuação da leitura é então um suplício. Tenho vontade de chorar, de matar, de suicidar-me; todos os desejos me passam pela alma e todas as tragédias vejo diante dos olhos. Salto da cadeira, atiro o jornal ao chão, rasgo-o; é um inferno.
Eu não sei se no jornal todos têm boa caligrafia. Certamente, hão de ter e os seus originais devem chegar à tipografia quase impressos. Nas letras, porém, não é assim.
Eu não cito autores, porque citar autores só se pode fazer aos ilustres, e seria demasia eu me pôr em paralelo com eles, mesmo sendo em negócio de caligrafia. Deixo-os de parte e só quero lembrar os que escrevem grandes obras, belas, corretas, até ao ponto em que as coisas humanas podem ser perfeitas. Como conseguiram isso?
Não sei; mas há de haver quem o saiba e espero encontrar esse alguém para explicar-me.
De tal modo essa questão de letra está implicando com o meu futuro que eu já penso em casar-me. Hão de surpreender-se em ver estas duas coisas misturadas: boa letra e casamento. O motivo é muito simples e vou explicar a gênese da associação com toda a clareza de detalhes.
Foi um dia destes. Eu vinha de trem muito aborrecido porque saíra o meu folhetim todo errado. O aspecto todo desordenado dos nossos subúrbios ia se desenrolando aos meus olhos; o trem se enchia da mais fina flor da aristocracia dos subúrbios. Os senhores com certeza não sabiam que os subúrbios têm uma aristocracia.
Pois tem. É uma aristocracia curiosa, em cuja composição entrou em grande parte dos elementos médios da cidade inteira: funcionários de pequena categoria, chefes de oficinas, pequenos militares, médicos de fracos rendimentos, advogados sem causa etc.
Iam entrando com a morgue que caracteriza uma aristocracia de tal antiguidade e tão fortes rendimentos, quando uma moça, carregada de lápis, penas, réguas, cadernos, livros, entrou também e veio sentar-se a meu lado.
Não era feia, mas não era bela. Tinha umas feições miúdas, um triste olhar pardo de fraco brilho, uns cabelos pouco abundantes, um colo deprimido e pouco cheio. Tudo nela era pequenino, modesto; mas era, afinal, bonitinha, como lá dizem os namorados.
Olhei-a com o temor com o que sempre olho as damas e continuei a mastigar as minhas mágoas.
Num dado momento, ela puxou um dos muitos cadernos que trazia, abriu-o, dobrou-o e pôs-se a ler. Que não me levem a mal o Binóculo, e a Nota Chic e não deitem por isso excomunhão sobre mim! Sei bem que não é de boa educação ler o que os outros estão lendo ao nosso lado; mas não me contive e deitei uma olhadela, tanto mais (notem bem os senhores do Binóculo e da Nota Chic) que, me pareceu, a moça o fazia para ralar-me de inveja ou de encher-me de admiração por ela.
Tratava-me de álgebra e as mulheres têm pela matemática uma fascinação de ídolo inacessível. Foi, portanto, para mostrar-me que ela o ia atingindo que desdobrou o caderno; ou então para dizer-me sem palavras: Veja, você, seu homem! Você anda de calças, mas não sabe isso... Ela se enganava um pouco.
Mas... como dizia: olhei o caderno e o que vi, meu Deus! Uma letra, um cursivo irrepreensível, com todos os tracinhos, com todas as filigranas. Os “tt” muito bem traçados – uma maravilha!
Ah! pensei eu. Se essa moça se quisesse casar comigo, como eu não seria feliz? Como diminuiriam os meus inimigos e as tolices que são escritas por minha conta? Copiava-me os artigos e...
Quis namorá-la, mas, não sei namorar, não só porque não sei, como também porque tenho consciência da minha fealdade. Fui, pois, tão canhestro, tão tolo, tão inábil, que ela nem percebeu. Um namoro de... caboclo.
Seria, casar-me com ela, a solução para esse meu problema da letra, mas nem este mesmo eu posso encontrar e tenho que aguentar esse meu inimigo, essa traição que está nas minhas mãos, esse abutre que me devora diariamente a fraca reputação a apoucada inteligência.
LIMA BARRETO
Título original. in: Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 28-06-1911. Integra Feiras e Mafuás.
Imagem: Max Martins