o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

  

MORTE-ESCRITURA, ROLAND BARTHES


A escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. Essa é a idéia central em “A morte do autor: da obra ao texto”, de Roland Barthes (In: O Rumor da Língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988).

Para Barthes, a escritura é um neutro, um composto e um oblíquo para o qual se lança o sujeito. É também o branco e o preto onde toda identidade se perde, principalmente aquela identidade do indivíduo que escreve. Conte-se um fato e esse desligamento acontece. A voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa. Isso contrasta em muito com a postura de elevação da pessoa do autor por parte do positivismo em assuntos de literatura.

Mas é a linguagem que pronuncia, não o autor, com sua história, seus gostos e suas paixões. De forma intrigante, Barthes opina que fornecer ao texto um autor é travá-lo, é fechar a escritura. E o reinado do Autor foi também aquele do crítico. Barthes anuncia o lugar onde o texto se escreve: a leitura. Vai-se, portanto, da obra ao texto. É o leitor que dá ao texto suas múltiplas significações, conexões a partir de diversas escrituras que dialogam, parodiam-se e contestam-se. É sintomático, portanto, que o nascimento do leitor implica a morte do Autor.


quarta-feira, 7 de setembro de 2011


MORTE-ESCRITURA, MAURICE BLANCHOT
"A morte trabalha conosco no mundo: poder que humaniza a natureza, que eleva à existência o ser, ela está em nós, como nossa parte mais humana; ela é morte apenas no mundo, o homem só a conhece porque ele é a morte por vir. Mas morrer é quebrar o mundo: é perder o homem, aniquilar o ser; portanto, é também perder a morte, perder o que nela e para mim fazia dela morte. Enquanto vivo, sou um homem mortal, mas, quando morro, cessando de ser um homem, cesso também de ser mortal, não sou mais capaz de morrer, e a morte que se anuncia me causa horror, porque a vejo tal como é: não mais morte, mas a impossibilidade de morrer."

num outro ponto Blanchot esclarece o que a uns ainda é tão obscuro: a relação Morte-Escritura: 

"Escrever é ser atraído para fora do vivido, do mundo, em direção à Eurídice, aos infernos – espaço da escritura. Orfeu se volta para Eurídice, pois não voltar-se seria trair uma experiência simultaneamente essencial e arruinadora da obra, experiência onde se atinge o ponto extremo, o extremo risco, exigência paradoxalmente impossível da obra. A experiência é experiência da escritura, busca impossível da origem e da morte. É experiência da atração da origem: o desobrar; e impossibilidade de “olhar” a origem: o obrar."
Maurice Blanchot, 1997
imagem: Francesca Woodman

domingo, 28 de agosto de 2011




RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS 

Minha mãe viveu encalacrada entre sua arte poética, suas diminutas crias e marido, la paramour, a cruz, o terço e a memória... 

Ela trocou o mito de Sísifo, vivido na pia da cozinha, pela lavra de professora.
A ciência não salva, mas dá chaves. Para quem vive na prisão, uma chave é a toda-esperança.
No laboratório dessa vida, o fígado dos ratos, os cânceres dos ratos, o 
sexo dos ratos, os olhos e a noite-virada dos ratos refulgiam como nossos paradigmas mais caros.
Adicionamos ferro, vidro e madeira para pôr em pé esse edifício de ossos, músculos, nervos, artérias e veias.
A geometria nos transpassava revoltosos imaginários.
Passou pela nossa janela, na rua humilde, o circo Circe e seu elefante, meu primeiro irmão africano, quando a África era uma áfrica.
 



João Antonio Cajado Botelho
imagem: Alec Soth, a sra. Bonnie segura a fotografia que diz ser de um anjo

sexta-feira, 19 de agosto de 2011



DOS INCONVENIENTES DO LIVRO

impõe-se que os livros se envergonhem do fato de ainda serem livros e não filmes de desenhos animados ou vitrines iluminadas à luz de neon
T. W. Adorno

Aos oito anos de idade Thomas Bernhard monta numa velha Steyr rumo à casa de sua tia Fanny, em Salzburgo. Voltas de bicicleta pela literatura sem que isto se constitua um tema esportivo. Bem ao contrário quando o futebol veste seu surrado uniforme literário e deixa de ser formalmente crônica (por vezes policial) para não escapar aos clichês da autobiografia, restando ao jogo  enredo ou relato – as preliminares, os planos de fundo de uma partida secundária. Juntar à literatura as “cintilações” da vida banal talvez corresponda nos dias que correm a tornar cada vez mais o livro um enfeite do mundo industrializado. Ajustado à ideia de tomar parte do consumismo feliz. Um tanto da pergunta de Sartre, Qu’est-ce que la littérature expressa um certo desacordo com a maneira com que o livro já vinha sendo exposto como mercadoria. E que será cada vez mais difícil vender livro sem as boas intensões do mercado. Das livrarias para as bienais, “feiras” ou para os “salões”, outrora apenas de automóveis. O livro e as encarnações possíveis da escrita em face ao mercado de produtos aleatórios. Ele perde aí os sentidos estabelecidos e legitimados para torna-se apenas um produto. Não há mais o ritual da grande descoberta e seus desenlaces. O maior deles talvez: que o livro cura os ingênuos e os débeis mentais. Se Adorno se chocou ao entrar numa dessas “feiras” sem reconhecer ali os livros que amou e pelos quais sofreu, mundanamente transvestidos numa outra “fisionomia”, não haveria transcorrido tempo suficiente para que o livro se integrasse a esse renovado espaço de existência  e se injetasse no leitor o desejo pelas novas regras de seu uso? Operado a contagem regressiva para o e-book tornar-se o nova volta no parafuso da cultura. E como o livro ainda não se engaja adequadamente com a audiência digital, não raras vezes é sentenciado ao encalhe, à morte pelas traças. Agora cada vez mais confrontado a suas variantes tecnológicas. Toda publicidade se emula pelo contraste, não seria diferente neste caso. O livro esquivo a tudo isso, segue impedido de atuar em qualquer lugar fora do mundo do livro, e cai numa espécie de marginalia que tende a explicar os meios principais, os termos-chave da contraofensiva – o que abrangem, multiplicam, proliferam o seu desuso. O livro se torna cada vez mais um cosmético de segunda mão.

Ney Ferraz Paiva
Imagem: Alec Soth

segunda-feira, 15 de agosto de 2011



3 POEMAS: CAUBY CRUZ


OS ELEMNTOS DO VERBO


Quando digo água quero que entendas fogo
a palavra se estende e deflora
um novo entendimento uma nova
forma insuspeitada mas viva além
de viva constantemente transformada.

Dependo não só dela porém da aceitação
em ti: o céu é inferno e mais que inferno
é este termo amar com que labuto
o meu pretérito alcança meu avô
que morto mas firme em mim, galopando.
E através dele vou, através de seus pastos
e porquê digo pastos entenderás que é noite
e o ar me amansa diante de seus passos.

O que falo importa se alcançar a tua carne
pois flutuar não serve. E é mister que invadas
e descubras porquê foi que hesitei
e hesites comigo, sofras a mesma fome
a mesma água engulas, igual peixe
adores e meus cabelos te cubram.

Então, a primavera que invento poderá
ser tua e teu este mistério este cão
que à noite ladra coisas inteligíveis
e o galo , cujo canto acordará teu homem.


CONSIDERAÇÕES SOBRE UM RETRATO

Não sabemos quem foi
porém seus passos audíveis
surpreendem os estrangeiros
como eu, à tarde
no silêncio morto dos quartos.
Decerto, traria consigo
o látego para o escravo
porque severo foi: pode-se ver
no estilo das cartas violadas
na escrivaninha, por lembranças
que meu pai guardava de outros tempos
pelo quarto de correntes do pátio.
Olha da parede o seu retrato
porém esmaecido cores cinza-escuro
emergindo os olhos frios
mas sensíveis à dor
como no parto. A barba
em ponta o faz severo
e, todavia, marca seu rosto
de beleza triste, beleza
inda constante no tempo das máquinas.
Tudo foi seu. Até a cadeira
onde sento e seus os livros
das estantes. Conhecemos seu gosto
sua memória embora parcial
mostrada apenas do lado direito.
Certo, conheço agora amores seus furtivos
e o que salta do muro de suas cartas
enche sua vida e a minha de poesia.


DONATÁRIO

Donatário de terra imersa
procuro meus campos
meu boi que esqueci anos
mergulhado no mesmo gesto invicto
de mastigar, meu cão também
como também meus sapatos.

A terra desapareceu. Aqui ela ficava.
Rio de pedras várias cortava o terreno
mas eu não via as pedras. Amava a posse
de tudo, donatário que fui deste terreno.
Hoje, chão de peixes


CAUBY CRUZ, nasceu em Belém em 1928, contemporâneo
de Mario Faustino, Max Martins e Benedito Nunes.
Autor de Os Elementos do Verbo (1955).


domingo, 7 de agosto de 2011

por Pedro Correia | 

Na noite de 10 de Fevereiro de 1963, num dos invernos mais frios de que há memória no Reino Unido, uma americana bonita e talentosa, de 30 anos, deitou a filha de três anos incompletos e o filho com apenas 13 meses nas respectivas camas. Na cozinha, preparou-lhes copos de leite e um prato com biscoitos que lhes deixou no quarto quando ambos já dormiam. Depois voltou para a cozinha, fechou a porta, acendeu o fogão a gás e meteu a cabeça envolta numa toalha dentro do forno. Era Sylvia Plath, uma das melhores escritoras de sempre em língua inglesa, autora de poemas decorados por sucessivas gerações de leitores que a idolatram. Tinha aquilo a que hoje chamamos uma personalidade bipolar: alternava sem transição os momentos de intensa euforia com os mais dilacerantes estados de depressão. No ano anterior, logo após ter dado à luz o filho Nicholas, descobrira que o marido, Ted – um escritor quase tão talentoso como ela –, a enganava com a alemã Assia Wevill, mulher de um poeta amigo do casal. Há quem garanta que jamais se recompôs do choque.


O bebê que dormia inocentemente naquele quarto de uma casa vitoriana em Primrose Hill, com um copo de leite e um prato de biscoitos na mesa de cabeceira, era Nicholas Hughes – o circunspecto e reservado filho de Sylvia que se tornou biólogo marinho e um dia decidiu viver nos confins do Alasca, em comunhão com a natureza. Cansou-se de viver numa segunda-feira, 16 de Março de 2009: como se cumprisse um desígnio do destino, enforcou-se num aposento da casa onde vivia. Dir-se-ia que o fantasma da mãe jamais o abandonara desde aquela noite invernosa, uma das mais frias de que há registo no Reino Unido.

Há famílias tocadas pelo sopro da tragédia. Ted Hughes, o pai de Nicholas, bem poderia dizê-lo: passou a viver com Assia pouco após a morte de Sylvia, mas a 23 de Março de 1969 a segunda mulher seguiu os passos da primeira, suicidando-se também com gás. Com a diferença de que não partiu só: minutos antes, matara a própria filha, Shura Hughes, de quatro anos.

Pouco antes de morrer de cancro em 1998, aos 68 anos, Ted escreveu uma longa carta a Nicholas – que nunca casou nem teve filhos – em que mencionava as profundas feridas que o suicídio de Sylvia Plath deixara na família: “Em 1963, sofreste um golpe ainda mais duro do que eu sofri. Terás de lidar para sempre com isso, tal como aconteceu comigo.”

Só quando Nicholas e a irmã mais velha, Frieda, já eram adolescentes Ted Hughes decidiu enfim revelar-lhes como haviam perdido a mãe. Há quem considere que o suicídio constitui um acto de suprema liberdade. Mas nunca saberemos até que ponto existe uma predisposição genética para um tal desfecho, o que invalidaria por completo tal raciocínio: como escrevia há dias Christina Patterson no Independent, “o suicídio é um acto violento que ressoa através de gerações.” Tal como nunca saberemos o que verdadeiramente levou Nicholas a seguir as pisadas da mãe 46 anos depois, no inverno do Alasca. Talvez nos derradeiros instantes pensasse nestes versos de Sylvia Plath: “Dying / is an art, like everything else. / I do it exceptionally well.”

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

‎3 poemas: ALBERTO DA CUNHA MELO
– mirando o mar e altas distâncias
numa luneta de escoteiro –

POEMAS


Moro tão longe, que as serpentes
morrem no meio do caminho.
Moro bem longe: quem me alcança
para sempre me alcançará.
Não há estradas coletivas
com seus vetores, suas setas
indicando o lugar perdido
onde meu sonho se instalou.
Há tão somente o mesmo túnel
de brasas que antes percorri,
e que à medida que avançava
foi-se fechando atrás de mim.
É preciso ser companheiro
do Tempo e mergulhar na Terra,
e segurar a minha mão
e não ter medo de perder.
Nada será fácil: as escadas
não serão o fim da viagem:
mas darão o duro direito
de, subindo-as, permanecermos.


(Poetas da Rua do Imperador, 1986)


DESCOBERTAS


A floresta tem
todos os bichos,
todas as madeiras,
todas as borboletas,
rios gordos, rios magros,
igarapés
e índios tão santos
que não querem o céu;
tudo tem a floresta,
mas penso no teu corpo
e sua mata diminuta,
que uma só borboleta
poderia cobrir.


(Clau, 1992)


CASA VAZIA


Poema nenhum, nunca mais,
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,


para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,


uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,
ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.


(Meditação sob os Lajedos, 2002)
imagem: Nicholas Hughes

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A sala cheirava a maçã

Na sexta-feira, 15 de fevereiro, houve um inquérito
 judicial no insípido e úmido tribunal de investigação atrás de Camden Town: indícios sussurrados, longos silêncios. A moça australiana em prantos (a babá que Sylvia contratara). Antes, naquela mesma manhã, eu fora com Ted a uma agência funerária em Mornington Crescent. O caixão estava no final de uma longa sala vazia e encortinada. Sylvia jazia rígida, com uma absurda gola pregueada no pescoço. Somente seu rosto aparecia. Estava cinza e ligeiramente transparente, como cera. Eu nunca vira uma pessoa morta antes, e mal a reconheci; suas feições pareciam muito finas e agudas. A sala cheirava a maçã; era um cheiro vago e doce, mas de alguma forma sujo, como se as maçãs estivessem começando a apodrecer. Fiquei contente de sair dali e enfrentar o frio e o barulho das ruas esquálidas. Parecia impossível que ela estivesse morta.
Até hoje acho difícil acreditar. Havia muita vida em seu corpo comprido e sem curvas, de ossos fortes, em seu rosto longo, em seus belos olhos castanhos, tão cheios de astúcia e sentimento. Sylvia era prática e franca, passional e compassiva. Para mim foi um gênio. Às vezes me pego acalentando a ideia infantil de que um dia desses vou encontrar com ela andando em Primrose Hill ou no Heath, e que vamos retomar a conversa no ponto onde paramos. Mas talvez isso seja porque seus poema ainda reproduzem tão bem sua maneira de ser: rápidos, sarcásticos, imprevisíveis, naturalmente criativos, um pouco irados e sempre totalmente seus.   

A. ALVAREZ, O Deus Selvagem, Companhia das Letras, 1999.


vivissecção


li numa antologia de poetas norte-americanos
você foi a única a morrer
olhos vazados cor de fogo de jacinto & enxofre
ainda dispostos a se irar
coração arrancado bem na frente dos filhos
você nem teve tempo de gritar
ovelha na cerração
desorientada & com medo
trinta anos apenas já sacrificada
golpeada por machado
comida por ervas daninhas



Ney Ferraz Paiva, Não era suicídio sobre a relva


sábado, 30 de julho de 2011




AMY MORTA POR WILLIAM BURROUGHS?
Amy Winehouse a vítima de um jogo entre bêbados que acabou mal

O esforço de explicar um vício, conferir-lhe um lugar na economia do ego, talvez seja sempre uma empresa voltada ao fracasso.
J. M. Coetzee sobre William Faulkner


Amy Winehouse poderia ter sido personagem de Beckett, diga-se: uma personagem bem mais decidida, até mesmo para a morte. "Logo ela estará bem morta, apesar de tudo". Mil sinaizinhos indicam. O que Malone (Malone morre, Beckett) tenta prorrogar de uma data a outra, Amy sabe de antemão que muitas festas vão ter que passar sem ela. E não exatamente as festas de são João Batista, do 14 de julho ou da liberdade. Sequer as da transfiguração e assunção. Amy fez todo esforço para ausentar-se. Amy não tava nem aí pra coisas como sucesso e fama. Fez gato-sapato, desdenhou do fato de a terem reduzido a uma celebridade, quando queria ter feito muito, muito mais com a música. Porém tudo foi truncado, deixado distante da personagem que poderia ser – não a que foi assomada pelo pitoresco que a mídia se põe a exibir. É foda, mas é sempre isso. Poderia morrer hoje, ontem ou amanhã. Nenhum espanto mais seria cabível. O serviço sujo está feito. E Amy, por seu turno, se esforçou, precipitou as coisas. Tudo a ver com Basquiat, pensei de imediato quando soube. Ter que decidir por si mesmo. Não ficar neutro e inerte num ambiente de irradiações falsas, negativas, de incompleta atrofia do sensível. Não se pode dizer que ainda role segredos sobre os primeiros e os últimos passos no universo pop. Tudo acontece em um terreno comum, onde a escória circula livremente: traficantes, prostitutas, bajuladores, proxenetas, falastrões, jornalistas de aluguel e similares. De fora e por fora, o grande público espectador assiste, consome e comunga. Pode durar anos e render muito. Como Willian Faulkner, a vida inteira um alcoólatra agudo e crônico. Pode durar pouco e render muito mais ainda. Num ímpeto de impaciência antecipar o fim. Nos dois casos, a saída como de uma regra alternativa: exagerar, extravasar, passar da conta em tudo. Ser o primeiro a se livrar de entusiasmo e motivação. Todos olhando o astro se desintegrar. decidir por si mesmo... a menos que um outro William, o Burroughs resolva a parada a seu modo: entre na história e aperte o gatilho.


Ney Ferraz Paiva
Imagem: "The Only Good Rock Star is a Dead Rock Star"
Amy Winehouse "shot" by William Burroughs instalation, by Marco Perego. Half Gallery, New York City.

quinta-feira, 28 de julho de 2011


ESTA MINHA LETRA...   

A minha letra é um bilhete de loteria. Às vezes ela me dá muito, outras vezes tira-me os últimos tostões de minha inteligência. Eu devia esta explicação aos meus leitores, porque, sob a minha responsabilidade, tem saído cada coisa de se tirar o chapéu. Não há folhetim em que não venham coisas extraordinárias. Se, às vezes, não me põe mal com a gramática, põe-me em hostilidade com o bom senso e arrasta-me a dizer coisas descabidas. Ainda no último folhetim, além de um ou dois períodos completamente truncados e outras coisas, ela levou à compreensão dos meus raros leitores – grandeza – quando se tratava de pândega; num artigo que publiquei há dias na Estação Teatral, este então totalmente empastelado, havia coisas do arco-da-velha.
Aqui já saiu um folhetim meu, aquele que eu mais estimo, “Os galeões do México”, tão truncado, tão doido, que mais parecia delírio que coisa de homem são de espírito. Tive medo de ser recolhido ao hospício...
Que ela me levasse a incorrer na crítica gramatical da terra, vá; mas que me leve a dizer coisas contra a clara inteligência das coisas, contra o bom senso e o pensar honesto e com plena consciência do que estou fazendo! e não sei a razão porque a minha letra me trai de maneira tão insólita e inesperada. Não digo que sejam os tipógrafos ou os revisores; eu não digo que sejam eles que me fazem escrever – a exposição de palavras sinistras – quando se tratava de exposição de projetos sinistros. Não, não são eles. Nem eu. É a minha letra.
Estou nesta posição absolutamente inqualificável, original e pouco classificável: um homem que pensa uma coisa, quer ser escritor, mas a letra escreve outra coisa e asnática. Que hei de fazer?
Eu quero ser escritor, porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei os meus navios; deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras.
Não quero aqui fazer minha biografia; basta, penso eu, que lhes diga que abandonei todos os caminhos, por essas letras; e o fiz conscientemente, sem nada de mais forte que me desviasse de qualquer outra ambição; e agora vem essa coisa de letra, esse último obstáculo, esse premente pesadelo, e não sei que hei de fazer!
Abandonar o propósito; deixar a estrada desembaraçada a todos os gênios explosivos e econômicos que de que esses Brasis e os políticos nos abarrotam?
É duro fazê-lo, depois de quase dez anos de trabalho, de esforço contínuo e – por que não dizer? – de estudo, sofrimento e humilhações. Mude de letra, disse-me alguém.
É curioso. Como se eu pudesse ficar bonito, só pelo fato de querer.
Ora, esse meu conselheiro é um dos homens mais simples que eu conheço. Mudar de letra! Onde é que ele viu isso? Com certeza ele não disse isso a Senhor Alcindo Guanabara, cuja letra é famosa nos jornais, que o fizesse; com certeza, ele não diria ao Senhor Machado de Assis também. O motivo é simples: O Senhor Alcindo é o chefe, é príncipe do jornalismo, é deputado; e Machado de Assis era grande chanceler das letras, homem aclamado e considerado; ambos, portanto, não podiam mudar de letra; mas eu, pobre autor de um livreco, eu que não sou nem doutor em qualquer história – eu, decerto, tenho o dever e posso mudar de letra.
Outro conselheiro (são sempre pessoas a que faço reclamações sobre os erros) disse-me: escreva em máquina. Ponho de parte o custo de um desses desgraciosos aparelhos, e lembro aqui aos senhores que aquilo é fatigante, cansa muito e obrigava-me ao trabalho nauseante de fazer um artigo duas vezes: escrever à pena e passar a limpo em máquina.
O mais interessante é que a minha letra, além de me ter emprestado uma razoável estupidez, fez-me arranjar inimigos. Não tenho a indiferença que toda a gente tem pelos inimigos; se não tenho medo, não sou neutro diante deles; mas isso de ter inimigos só por causa da letra, é de espantar, é de modificar.
Já não posso entrar na revisão e nas oficinas aqui da casa. Logo na entrada percebo a hostilidade muda contra mim e me apavoro. Se fosse no cenáculo do Garnier ou em outro qualquer, seria bom; se fosse mesmo no salão literário do Coelho Neto, eu ficaria contente; entre aqueles homens simples, porém, com os quais eu não compito em nada, é para a gente julgar-se um monstro, um peste, um flagelo. E tudo isso por quê? Por causa da minha letra. Desespero decididamente.
De manhã, quando recebo a Gazeta ou outra publicação em que haja coisas minhas , eu me encho de medo, e é com medo que começo a ler o artigo que firmo com a responsabilidade do meu humilde nome. A continuação da leitura é então um suplício. Tenho vontade de chorar, de matar, de suicidar-me; todos os desejos me passam pela alma e todas as tragédias vejo diante dos olhos. Salto da cadeira, atiro o jornal ao chão, rasgo-o; é um inferno.
Eu não sei se no jornal todos têm boa caligrafia. Certamente, hão de ter e os seus originais devem chegar à tipografia quase impressos. Nas letras, porém, não é assim.
Eu não cito autores, porque citar autores só se pode fazer aos ilustres, e seria demasia eu me pôr em paralelo com eles, mesmo sendo em negócio de caligrafia. Deixo-os de parte e só quero lembrar os que escrevem grandes obras, belas, corretas, até ao ponto em que as coisas humanas podem ser perfeitas. Como conseguiram isso?
Não sei; mas há de haver quem o saiba e espero encontrar esse alguém para explicar-me.
De tal modo essa questão de letra está implicando com o meu futuro que eu já penso em casar-me. Hão de surpreender-se em ver estas duas coisas misturadas: boa letra e casamento. O motivo é muito simples e vou explicar a gênese da associação com toda a clareza de detalhes.
Foi um dia destes. Eu vinha de trem muito aborrecido porque saíra o meu folhetim todo errado. O aspecto todo desordenado dos nossos subúrbios ia se desenrolando aos meus olhos; o trem se enchia da mais fina flor da aristocracia dos subúrbios. Os senhores com certeza não sabiam que os subúrbios têm uma aristocracia.
Pois tem. É uma aristocracia curiosa, em cuja composição entrou em grande parte dos elementos médios da cidade inteira: funcionários de pequena categoria, chefes de oficinas, pequenos militares, médicos de fracos rendimentos, advogados sem causa etc.
Iam entrando com a morgue que caracteriza uma aristocracia de tal antiguidade e tão fortes rendimentos, quando uma moça, carregada de lápis, penas, réguas, cadernos, livros, entrou também e veio sentar-se a meu lado.
Não era feia, mas não era bela. Tinha umas feições miúdas, um triste olhar pardo de fraco brilho, uns cabelos pouco abundantes, um colo deprimido e pouco cheio. Tudo nela era pequenino, modesto; mas era, afinal, bonitinha, como lá dizem os namorados.
Olhei-a com o temor com o que sempre olho as damas e continuei a mastigar as minhas mágoas.
Num dado momento, ela puxou um dos muitos cadernos que trazia, abriu-o, dobrou-o e pôs-se a ler. Que não me levem a mal o Binóculo, e a Nota Chic e não deitem por isso excomunhão sobre mim! Sei bem que não é de boa educação ler o que os outros estão lendo ao nosso lado; mas não me contive e deitei uma olhadela, tanto mais (notem bem os senhores do Binóculo e da Nota Chic) que, me pareceu, a moça o fazia para ralar-me de inveja ou de encher-me de admiração por ela.
Tratava-me de álgebra e as mulheres têm pela matemática uma fascinação de ídolo inacessível. Foi, portanto, para mostrar-me que ela o ia atingindo que desdobrou o caderno; ou então para dizer-me sem palavras: Veja, você, seu homem! Você anda de calças, mas não sabe isso... Ela se enganava um pouco.
Mas... como dizia: olhei o caderno e o que vi, meu Deus! Uma letra, um cursivo irrepreensível, com todos os tracinhos, com todas as filigranas. Os “tt” muito bem traçados – uma maravilha!
Ah! pensei eu. Se essa moça se quisesse casar comigo, como eu não seria feliz? Como diminuiriam os meus inimigos e as tolices que são escritas por minha conta? Copiava-me os artigos e...
Quis namorá-la, mas, não sei namorar, não só porque não sei, como também porque tenho consciência da minha fealdade. Fui, pois, tão canhestro, tão tolo, tão inábil, que ela nem percebeu. Um namoro de... caboclo.
Seria, casar-me com ela, a solução para esse meu problema da letra, mas nem este mesmo eu posso encontrar e tenho que aguentar esse meu inimigo, essa traição que está nas minhas mãos, esse abutre que me devora diariamente a fraca reputação a apoucada inteligência.


LIMA BARRETO
Título original. in: Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 28-06-1911. Integra Feiras e Mafuás.
Imagem: Max Martins

domingo, 24 de julho de 2011


O SOFREDOR DO VER

O Espelho Morto


Ando deveras muito preocupada com o que se passa ao meu redor. Não que tema morrer; em vez disso, sinto medo de me ver eternizada em bloco de pedra, ou mesmo continuar como estou: esperando, esperando, apenas esperando salvar-me dos rostos quadrados, fugir e encontrar pessoas com as quais possa falar, sem que minhas palavras se percam no vácuo, inúteis. Porque vivo sozinha num mundo cada vez mais estranho, fantástico, monstruoso. Não que as coisas tenham se modificado tanto. Desde menina este encarceramento me sufoca, minha coragem foi sempre formada do desejo de evasão, o desespero de fuga deu-me forças até hoje. Ignoro mesmo se existe um lugar onde se movam pessoas e esta dúvida pode ser a causa da crescente inquietação que me domina, pois ameaça ruir minha única esperança. Não: tudo se agravou mesmo depois da morte do espelho. 
o costumo sair de casa. Os dias são distantes, depressa, e quase nunca há sol. Habito um apartamento de andar térreo, um pouco escuro, ainda durante o dia, luxuoso e antigo, onde moram três outras criaturas. Ignoro porque moramos juntas. Conheço-as há pouco tempo. São mais ou menos parecidas com as que tenho visto, apesar de sabê-las mais perigosas - decerto pela proximidade. (Na verdade, gostaria de me mudar. Conheço, porém, a inutilidade das mudanças.) Falam demais, andam constantemente armadas, usam com ferocidade os dentes. Estão sempre gordas de razão. Esqueci-me de dizer que são mulheres, estas tremendas criaturas. Apesar deste detalhes, uma delas deixou crescer vasto bigode, que a tornou um pouco mais simpática, ocultando-lhe as presas, fortes, ameaçadoras. Ao levantar-me de manhã, para ir à cozinha fazer meu café, encontro-a, articulando a possante mandíbula, no trabalho pertinaz da primeira refeição. Cumprimento-a delicadamente, esforçando-me em parecer afável. Tenho por resposta o rosnar ameaçador de como se protege a caça. Nem sempre consigo tomar até o fim o meu café. A criatura rosna impaciente, às vezes uiva, dançando pela cozinha, dando-me a impressão de grande exagero na sua manifestação, creio, de alegria.
Volto ao quarto e me deito sob os cobertores, enquanto outra se veste rápida, precisa, para chegar na hora exata à primeira aula do Curso de Geologia. (Ocupamos as duas o mesmo quarto.) Antes de sair, faz ginástica. Conseguiu desenvolver de tal modo os músculos das pernas que, por várias vezes, julguei entrar um edifício inteiro pelo quarto, em sua construção exótica: pilares gigantescos sustentando pequeno tronco, enquanto a cabeça rodava, bola, distante e pequena como a cabeça de um alfinete. Após a ginástica arruma, sempre rápida, precisa, a metade do aposento que lhe pertence, jogando, debaixo e mesmo sobre minha cama, grandes pedras, por ela colhidas diariamente nas praias. Pedras personalíssimas, quase vivas, que já me tomam a metade do leito. Encolho-me sob os cobertores, as pedras ocupando sempre mais espaço, atiradas pela intrépida criatura: mecânica-rápida-organizada. Gostaria de impedir que meu corpo se expusesse diariamente a estas pedradas. Não vejo solução, já que deitar-me sob os cobertores é a maior proteção por mim encontrada. Se abandonar o quarto, enfrentando olhares antropófagos nas ruas, corro o risco de, ao voltar, achar toda a cama tomada. E me sentiria impossível argumentar com as pedras, eu que sou destituída de qualquer senso de organização, mesmo iniciativa.
Não que me ache conformada. Tentei protestar uma vez mas a estudante continuou, solene, limpando os móveis. Depois, sem pressa, meteu-me uma grande pedra na boca, deixando tranquila o quarto. Mais tarde, escutei-a relinchando na sala para as outras, que eu cacarejo demais e não sei marchar. Não a compreendi. Ainda assim fui possuída de grande raiva, tomei de uma arma esquecida por uma delas na cadeira, tentei atingi-la nas costas. Não consegui e terminei amarrada em trouxa dentro de meu próprio cobertor, onde passei dois dias. Ao libertar-me, grunhiu qualquer coisa, como sentir pena dos meus compromissos. Que ignoro quais sejam. 
A terceira criatura é tirana – e muito boa pessoa. Proibiu-me mover rápido a cabeça para os lados, temendo que o ar sinta-se demais agredido. Assim, ando pelo apartamento buscando ver sempre o que está à minha frente. Se me viro, faço-o com delicadeza. Esse cuidado me traz em constante tensão. É uma mulher pequena, rosto quadrado, cabelos duros de torre; vai sempre ao cabelereiro. Costumo confundi-la com os objetos da casa.
Como já disse, evito sair à rua. Os edifícios me ameaçam, as mãos frias do vento me sufocam. Além dos olhares assassinos e da velocidade; pessoas enormes deslizam ruidosas pela cidade, conduzindo dentro delas outras pessoas. Posso vê-las quando arrisco meu olhar assombrado pelas janelas dos seus ventres.
Não prefiro coisa alguma. No entanto, saio às vezes, principalmente à noite. Vem buscar-me um ser que desconheço – embora venha buscar-me. Mostra-me os dentes, parece quase sempre irritado, joga-me porta a fora como se eu fosse um saco de abóboras. Costuma também relinchar, mostrando toda ferocidade nos dentes brancos. Nas ruas, busca proteger-me. Apesar de já me haver deixado sozinha, entregue às feras, habitantes de um certo subúrbio. Este ser talvez me quisesse dizer algo. Vejo-o luzente, vestido de alumínio, brilhando de noite à minha frente. Não seria sua maneira de rir? Indago-me se essa lata possui um coração.
Além dele, visita-me, não sei para quê, outra criatura, um pedaço de tronco fino de árvore. Sentado à minha frente, discorre longamente sobre pulgas, galinhas e percevejos. Depois do quê, sai sem se despedir, encolhido em sua própria casca, morena, rugosa.
Ruas fervilham. Duelos se dão e todo instante. Mulheres se odeiam, beijando faces umas das outras. Muitas enxertam carne de vaca nas nádegas. Nem por isso perdem o jeito mau e duro de andar. Mostram as presas, se as olhamos dão constantes coices. Homens comem ávidos, o hálito podre provocando náusea. Mas é então que as fêmeas se agitam de todo, coiceam e relincham, movendo caudas e crinas. O asfalto queima.
Encolho-me no apartamento, sofrendo a presença das três horrendas criaturas. Gostaria de viver sozinha, ou pelo menos possuir um quarto, onde não me atormentassem tanto. Móveis animados passeiam o dia todo pelo aposento. Ouço ruídos esquisitos.
Tudo se tornou demais difícil depois do crime da futura geóloga, assassinando o espelho com uma pedrada. Considero esse crime a maior desgraça em minha vida, inútil, calada, vazia. Foi o espelho a única criatura humana que conheci. Desde a infância habituara-me a ele e não havia como temê-lo. Vê-lo diariamente, minha grande aventura. Contemplava-lhe a figura trêmula, hesitante, de olhos escuros, amáveis. O espelho possuía de medo o rosto branco. Tinha de medo o rosto. Aquele belo rosto quase sempre triste levou-me a admitir, em algum lugar, outros rostos, outras pessoas, outros medos, outras lágrimas. Esqueci-me de dizer que, se nenhuma dessas criaturas parece alegre, nenhuma também se mostrou ainda triste. É deveras sombrio. Existe em tudo grande ordem. Jamais vi alguém subir correndo uma escada, saltar dois ou mais degraus. Fazem-no um por um, meticulosos. Sou obrigada a seguir o que se estabeleceu ou desperto cólera. Começo a perder a noção do tempo. Acompanhando o crescimento do espelho acompanhei meu próprio crescimento. Vendo-o se transformar, tive consciência de minha infância perdida. Cada vez mais o espelho se tornava adulto, o que me obrigava a admitir-me também assim. Já não sei, mas talvez eu esteja quase velha. Tenho chorado muito. As caras de cimento armado acusam meu rosto molhado de deterioração. Mas é que tenho chorado. Diariamente tomo entre as mãos a caixa onde estão os restos mortais do meu amigo. E sofro. Sozinha, sem outro rosto, outra esperança, é-me impossível voltar a acreditar.



MAURA LOPES CANÇADO
Imagem: André Masson

sexta-feira, 22 de julho de 2011


"Se não escrevo mais, é por estar farto de caluniar o universo. Sou vítima de uma espécie de desgaste. A lucidez e a fadiga venceram-me – falo de uma fadiga filosófica tanto quanto biológica , algo se rompeu em mim. Escreve-se por necessidade. Chega um tempo em que nada disso interessa mais. Em outras palavras, frequentei pessoas em demasia que escreveram em excesso, obstinadas pela produção, estimuladas pelo espetáculo da vida literária parisiense. Mas me parece que eu também escrevi demais. Um único livro teria bastado."

“Só tem essas convicções aquele que não aprofundou nada”. Esta frase de Emil Cioran praticamente resume o seu pensamento. Pertencente à grande tradição de despertadores de espíritos, da qual fazem parte Nietzsche, Pascal, Kierkegaard e Unamuno, o filósofo romeno foi, durante todo o século XX, uma espécie de posto avançado da oposição ao predomínio da técnica e da razão na sociedade moderna. Ferozmente independente, ele não admitiu mestres e, apesar de místico, nunca recorreu aos mestres da teologia para insurgir-se contra a progressiva coisificação do homem: “Um balbucio de Santa Teresa nos dá mais ideia de Deus do que toda a teologia de Santo Tomás de Aquino”.

Além de tudo, foi um dos maiores prosadores em língua francesa do século passado, apesar de ter adotado tardiamente o idioma. Em 1949 escreveu seu primeiro livro em francês: Breviário da Decomposição (Editora Rocco).

A crítica francesa da época se espantou. Afinal, quem era aquele jovem escritor, vindo de uma cultura periférica que arrogantemente atacava toda a filosofia contemporânea e, por tabela, toda a civilização ocidental? Pois é justamente isso o que Cioran faz nesse Breviário. As mitologias, as doutrinas, as linhas de pensamento, enfim, todas as certezas pedantes são submetidas à prova do fogo cioraniano, atiçado pela ironia e pelo sarcasmo amargo. Fazer com que seus leitores vivessem na dúvida e no assombro de encarar as falácias de quem quer tudo explicar pela razão: eis, em poucas palavras, a sofrida missão de Cioran.