o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 19 de agosto de 2011



DOS INCONVENIENTES DO LIVRO

impõe-se que os livros se envergonhem do fato de ainda serem livros e não filmes de desenhos animados ou vitrines iluminadas à luz de neon
T. W. Adorno

Aos oito anos de idade Thomas Bernhard monta numa velha Steyr rumo à casa de sua tia Fanny, em Salzburgo. Voltas de bicicleta pela literatura sem que isto se constitua um tema esportivo. Bem ao contrário quando o futebol veste seu surrado uniforme literário e deixa de ser formalmente crônica (por vezes policial) para não escapar aos clichês da autobiografia, restando ao jogo  enredo ou relato – as preliminares, os planos de fundo de uma partida secundária. Juntar à literatura as “cintilações” da vida banal talvez corresponda nos dias que correm a tornar cada vez mais o livro um enfeite do mundo industrializado. Ajustado à ideia de tomar parte do consumismo feliz. Um tanto da pergunta de Sartre, Qu’est-ce que la littérature expressa um certo desacordo com a maneira com que o livro já vinha sendo exposto como mercadoria. E que será cada vez mais difícil vender livro sem as boas intensões do mercado. Das livrarias para as bienais, “feiras” ou para os “salões”, outrora apenas de automóveis. O livro e as encarnações possíveis da escrita em face ao mercado de produtos aleatórios. Ele perde aí os sentidos estabelecidos e legitimados para torna-se apenas um produto. Não há mais o ritual da grande descoberta e seus desenlaces. O maior deles talvez: que o livro cura os ingênuos e os débeis mentais. Se Adorno se chocou ao entrar numa dessas “feiras” sem reconhecer ali os livros que amou e pelos quais sofreu, mundanamente transvestidos numa outra “fisionomia”, não haveria transcorrido tempo suficiente para que o livro se integrasse a esse renovado espaço de existência  e se injetasse no leitor o desejo pelas novas regras de seu uso? Operado a contagem regressiva para o e-book tornar-se o nova volta no parafuso da cultura. E como o livro ainda não se engaja adequadamente com a audiência digital, não raras vezes é sentenciado ao encalhe, à morte pelas traças. Agora cada vez mais confrontado a suas variantes tecnológicas. Toda publicidade se emula pelo contraste, não seria diferente neste caso. O livro esquivo a tudo isso, segue impedido de atuar em qualquer lugar fora do mundo do livro, e cai numa espécie de marginalia que tende a explicar os meios principais, os termos-chave da contraofensiva – o que abrangem, multiplicam, proliferam o seu desuso. O livro se torna cada vez mais um cosmético de segunda mão.

Ney Ferraz Paiva
Imagem: Alec Soth

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