o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A sala cheirava a maçã

Na sexta-feira, 15 de fevereiro, houve um inquérito
 judicial no insípido e úmido tribunal de investigação atrás de Camden Town: indícios sussurrados, longos silêncios. A moça australiana em prantos (a babá que Sylvia contratara). Antes, naquela mesma manhã, eu fora com Ted a uma agência funerária em Mornington Crescent. O caixão estava no final de uma longa sala vazia e encortinada. Sylvia jazia rígida, com uma absurda gola pregueada no pescoço. Somente seu rosto aparecia. Estava cinza e ligeiramente transparente, como cera. Eu nunca vira uma pessoa morta antes, e mal a reconheci; suas feições pareciam muito finas e agudas. A sala cheirava a maçã; era um cheiro vago e doce, mas de alguma forma sujo, como se as maçãs estivessem começando a apodrecer. Fiquei contente de sair dali e enfrentar o frio e o barulho das ruas esquálidas. Parecia impossível que ela estivesse morta.
Até hoje acho difícil acreditar. Havia muita vida em seu corpo comprido e sem curvas, de ossos fortes, em seu rosto longo, em seus belos olhos castanhos, tão cheios de astúcia e sentimento. Sylvia era prática e franca, passional e compassiva. Para mim foi um gênio. Às vezes me pego acalentando a ideia infantil de que um dia desses vou encontrar com ela andando em Primrose Hill ou no Heath, e que vamos retomar a conversa no ponto onde paramos. Mas talvez isso seja porque seus poema ainda reproduzem tão bem sua maneira de ser: rápidos, sarcásticos, imprevisíveis, naturalmente criativos, um pouco irados e sempre totalmente seus.   

A. ALVAREZ, O Deus Selvagem, Companhia das Letras, 1999.


vivissecção


li numa antologia de poetas norte-americanos
você foi a única a morrer
olhos vazados cor de fogo de jacinto & enxofre
ainda dispostos a se irar
coração arrancado bem na frente dos filhos
você nem teve tempo de gritar
ovelha na cerração
desorientada & com medo
trinta anos apenas já sacrificada
golpeada por machado
comida por ervas daninhas



Ney Ferraz Paiva, Não era suicídio sobre a relva


Um comentário:

  1. Só existe uma liberdade, a de aceitar a morte. Depois disso, tudo é possível.
    Albert Camus

    Sylvia Plath não seria um ícone sem essa morte. Mas essa morte também não seria nada sem a obra de Sylvia Plath. É bastante inútil especular sobre o que a cabeça no forno fez à obra. A obra estava escrita e sobrevive. Sobreviveu mesmo ao andor, ao altar, a Santa Sylvia, padroeira das aflitas.
    - Alexandra Lucas Coelho

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