APRECIAÇÃO
O livro de Lyotard é ao
mesmo tempo disperso, fugidio em todos os sentidos e, todavia, fechado como um
ovo. O texto é ao mesmo tempo lacunar e enxuto, flutuante e ligado. Discours,
figure: nele, as figuras, mesmo as ilustrações, são parte integrante do
discurso; elas se insinuam no discurso, ao mesmo tempo em que o discurso
retorna às operações que as tornam possíveis. Esse livro é construído sobre
duas extensões heterogêneas que não se espelham, mas que asseguram uma livre circulação
de energia de escrita (ou de desejo?). Um ovo: meio interior variável sobre uma
superfície móvel. Esquizo-livro que, através de sua técnica complexa, atinge a
uma elevadíssima clareza. Como todos os grandes livros, difícil de se fazer,
mas não difícil de se ler.
A importância desse
livro está em ser ele a primeira crítica generalizada do significante.
Ele ataca essa noção que tem exercido há muito tempo uma espécie de terrorismo
nas belas-letras e tem até mesmo contaminado a arte ou nossa compreensão da
arte. Finalmente, um pouco de ar puro sob os espaços retrancados. Ele mostra
que a relação significante-significado encontra-se ultrapassada em duas
direções. Em direção ao exterior, do lado da designação, é ultrapassada pelas figuras-imagens:
pois não são as palavras que são signos, mas
elas fazem signos com os objetos que elas designam, objetos cuja
identidade elas quebram para neles descobrir um conteúdo oculto, uma outra face
que não se poderá ver, mas que, em contrapartida, fará “ver” a palavra (as
belíssimas páginas sobre a designação como dança, e a visibilidade da
palavra, a palavra como coisa visível, distinta ao mesmo tempo da sua
legibilidade e da sua audição). E a relação significante-significado
encontra-se ainda ultrapassada de uma outra maneira: em direção ao interior do
discurso, ultrapassada por um figural puro que vem agitar os desvios
codificados do significante, que vem introduzir-se neles e, também aí,
trabalhar sob as condições de identidade de seus elementos (as páginas sobre o
trabalho do sonho, que violenta a ordem da palavra e quebra o texto, fabricando
novas unidades que não são lingüísticas, que são outros tantos rébus sob os
hieróglifos).
Em todos os sentidos, o
livro de Lyotard participa de uma antidialética que opera uma reversão completa
da relação figura-significante. Não são as figuras que dependem do significante
e dos seus efeitos; ao contrário, é a cadeia significante que depende dos
efeitos figurais, que depende das figuras não-figurativas que fabricam configurações
variáveis de imagens, que põem linhas a fluir e as cortam segundo pontos
singulares, destroçando e torcendo tanto os significantes quanto os
significados. E tudo isso não é apenas dito por Lyotard, ele o mostra, faz ver,
torna-o visível e móvel: destruição de identidades que leva o leitor numa
profunda viagem.
. . .
Gilles Deleuze,
1972
tradução: Luiz
B. L. Orlandi
imagem: Nicole Wermers
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