o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

segunda-feira, 20 de agosto de 2012


APRECIAÇÃO

            O livro de Lyotard é ao mesmo tempo disperso, fugidio em todos os sentidos e, todavia, fechado como um ovo. O texto é ao mesmo tempo lacunar e enxuto, flutuante e ligado. Discours, figure: nele, as figuras, mesmo as ilustrações, são parte integrante do discurso; elas se insinuam no discurso, ao mesmo tempo em que o discurso retorna às operações que as tornam possíveis. Esse livro é construído sobre duas extensões heterogêneas que não se espelham, mas que asseguram uma livre circulação de energia de escrita (ou de desejo?). Um ovo: meio interior variável sobre uma superfície móvel. Esquizo-livro que, através de sua técnica complexa, atinge a uma elevadíssima clareza. Como todos os grandes livros, difícil de se fazer, mas não difícil de se ler.
            A importância desse livro está em ser ele a primeira crítica generalizada do significante. Ele ataca essa noção que tem exercido há muito tempo uma espécie de terrorismo nas belas-letras e tem até mesmo contaminado a arte ou nossa compreensão da arte. Finalmente, um pouco de ar puro sob os espaços retrancados. Ele mostra que a relação significante-significado encontra-se ultrapassada em duas direções. Em direção ao exterior, do lado da designação, é ultrapassada pelas figuras-imagens: pois não são as palavras que são signos, mas  elas fazem signos com os objetos que elas designam, objetos cuja identidade elas quebram para neles descobrir um conteúdo oculto, uma outra face que não se poderá ver, mas que, em contrapartida, fará “ver” a palavra (as belíssimas páginas sobre a designação como dança, e a visibilidade da palavra, a palavra como coisa visível, distinta ao mesmo tempo da sua legibilidade e da sua audição). E a relação significante-significado encontra-se ainda ultrapassada de uma outra maneira: em direção ao interior do discurso, ultrapassada por um figural puro que vem agitar os desvios codificados do significante, que vem introduzir-se neles e, também aí, trabalhar sob as condições de identidade de seus elementos (as páginas sobre o trabalho do sonho, que violenta a ordem da palavra e quebra o texto, fabricando novas unidades que não são lingüísticas, que são outros tantos rébus sob os hieróglifos).
            Em todos os sentidos, o livro de Lyotard participa de uma antidialética que opera uma reversão completa da relação figura-significante. Não são as figuras que dependem do significante e dos seus efeitos; ao contrário, é a cadeia significante que depende dos efeitos figurais, que depende das figuras não-figurativas que fabricam configurações variáveis de imagens, que põem linhas a fluir e as cortam segundo pontos singulares, destroçando e torcendo tanto os significantes quanto os significados. E tudo isso não é apenas dito por Lyotard, ele o mostra, faz ver, torna-o visível e móvel: destruição de identidades que leva o leitor numa profunda viagem.
. . .

Gilles Deleuze, 1972
tradução: Luiz B. L. Orlandi
imagem: Nicole Wermers

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La Quinzaine littéraire, nº 140, 1-15 de maio de 1972, p. 19. (Sobre o livro de Jean-François Lyotard, Discours, figure, Paris, Klincksieck, 1971. Discours, figure é a tese de Doutorado de Estado de Lyotard. Deleuze foi um dos membros da Banca Examinadora.

domingo, 19 de agosto de 2012


"E QUANTO A VOCÊ? QUE SÃO SUAS 
      'MÁQUINAS DESEJANTES’?" 

Os leitores da revista Temps Modernes encontrarão aqui um estranho dossiê. Pierre Bénichou expõe alguns resultados de sua pesquisa sobre os masoquistas (os "verdadeiros" masoquistas, aqueles que se infligem tratamentos muitas vezes graves e sanguinários). Mas, para essa pesquisa, ele não se dirige aos masoquistas, não os leva a falar. E, todavia, eles falariam de bom grado. Mas, ao falar, eles entrariam num circuito pré-formado, pré-fabricado: o circuito de seus mitos e fantasmas, e até mesmo o circuito de uma psicanálise sobre a qual, atualmente, todo mundo tem uma ideia mais ou menos precisa, de modo que, de antemão, cada um sabe vagamente aquilo que dele se espera, e responde Édipo ou papai-mamãe logo que é interrogado. Enfim, todo esse mundo de interioridade do qual já estamos profundamente enfadados.
            Pierre Bénichou substitui a trindade psicanalítica pai-mãe-eu por uma trindade bem diferente, tira-prostituta-cliente. Seria precipitado dizer que ambas são a mesma trindade. Em vez do sujeito que fala e do psicanalista que eventualmente escreve para publicações científicas, tem-se o sujeito que não fala, que não tem o direito de falar; ele apenas escreve, escreve as suas aspirações e seus pedidos, passa um pequeno bilhete no qual emite críticas sobre a última sessão e expõe os seus projetos para a próxima. Em contrapartida, a prostituta e o tira falam. A pesquisa de Pierre Bénichou acrescenta à psicanálise aquilo que atualmente lhe faz tanta falta: uma nova relação com o Fora.
            É tudo o que se quer esperar no que concerne à relação psicanalítica: uma inversão, uma caricatura, um extraordinário  retraimento. O masoquismo é a perversão por excelência que passa pela forma de um contrato, mesmo que seja próprio desse contrato ser a cada vez transbordado, desviado pelo capricho ou pela autoridade superior da toda poderosa "Dona da casa". (Pierre Bénichou faz referência ao pagamento mensal que dá direito a um número determinado de sessões.) É que, como na psicanálise, o contrato toma aqui uma dimensão que não encontra equivalente alhures: não há mais distinção possível entre as partes contratantes e o objeto sobre o qual o contrato incide. Como diz Pierre Bénichou," o desvio sexual propriamente dito é o único domínio no qual instaura-se uma relação direta. A prostituta faz mais que fornecer um objeto, ela é esse objeto. Matéria viva que escuta, grava, responde, questiona, decide; droga que fixa a sua própria dose, bola da roleta que escolhe a casa na qual vai parar, obviamente, sempre a errada. Ela tudo viu, tudo ouviu … E nada entendeu ? Pouco importa, ela conta, ela sabe do que está falando, ela "conhece". Das duas relações, a perversa e a psicanalítica, qual delas desfigura a outra?
            Durante muito tempo a psiquiatria foi uma disciplina normativa, falando em nome da razão, da autoridade e do direito, numa dupla relação com os asilos e os tribunais. Depois veio a psicanálise como disciplina interpretativa: loucura, perversão, neurose; procurava-se descobrir o que isso "queria dizer", por dentro. Hoje, reclamamos os direitos de um novo funcionalismo: não mais o que quer dizer, mas como isso marcha, como isso funciona. É como se o desejo não quisesse dizer mais nada e fosse um agenciamento de pequenas máquinas, máquinas desejantes, sempre numa relação particular com as grandes máquinas sociais e as máquinas técnicas. E quanto a você? Que são suas máquinas desejantes? Num difícil e belo texto, Marx invocava a necessidade de pensar a sexualidade humana não apenas como uma relação entre dois sexos humanos, masculino e feminino, mas como uma relação "entre o sexo humano e o sexo não humano". Ele, evidentemente, não se referia aos animais, mas ao que há de não-humano na sexualidade humana: as máquinas  do desejo. Talvez a psicanálise tenha permanecido numa idéia antropomórfica da sexualidade, e isso até na sua concepção do fantasma e do sonho. Um estudo exemplar, como o de Pierre Bénichou, apresentando máquinas masoquistas reais (também existem máquinas paranóicas, máquinas esquizofrênicas reais etc.), abre o caminho para tal funcionalismo ou para uma análise, no homem, do "sexo não humano".
. . .


Gilles Deleuze
Tradução de Fabien Lins



Introdução ao texto de Pierre Bénichou, "Sainte Jackie, Comédienne et Bourreau", Les Temps Modernes, nº 316, novembro de1972,  pp. 854-856.
K.Marx, Critique d e la philosophie de l'Etat d e Hegel, in Œuvres complètes, IV, Paris, Gallimard, coll. "Bibliothèque de la Pléiade", pp. 182-184.

domingo, 29 de julho de 2012

De Max Martins para vocês


Amemo-nos neste instante, minha alma: Há
 coisas entre nós que não sabemos, ou
 ainda não são
                     são álibis

Max Martins, “Exílio 2”


Em "Mal de Arquivo", de Jacques Derrida, se percebe não haver nem neutralidade, nem inocência quando se trata de preservar a memória. A “mal-estrelada/Memória arfante” do célebre poema de Mário Faustino. Se a grande obra está sempre em expansão, pode acontecer também, por vezes, dela cair no exílio. Grafônomo até o fim, Max Martins tem ainda boa parte de um acervo inédito, avulso, disperso a ser reunido – bilhetes, notas, colagens e principalmente cartas que o poeta enviou em todas as direções, como comprova o livro recentemente lançado em São Paulo "Cartas ao Max", de Élida Lima. E doravante o lugar de chegada desse material é o Museu da UFPA, que já abriga o acervo reunido pela família, e que inclui as edições originais dos livros do poeta, biblioteca, diários e objetos pessoais. Autor de uma obra artística vigorosa, Max Martins deve figurar naturalmente em qualquer bibliografia avançada dos estudos contemporâneos de poesia. Daí a grande expectativa pela entrega do acervo que o Museu mantém sob sua guarda desde 2010.
A petição que circula no ambiente rarefeito da internet demonstra a constelação dos interesses e os ecos que a obra propaga. O documento reivindica exatamente maior urgência no trabalho de catalogação do acervo. Não que isso em momento algum pretenda desqualificar a instituição que já abriga outros importantes acervos, como os de Eneida de Moraes, Vicente Salles, Silveira Neto. Antes, manifesta a preocupação com a disponibilização do acervo num espaço adequado de liberdade e criatividade, num formato de gestão não “empresarial” que nem sempre a instituição pública consegue empreender, sobretudo em face dos parcos recursos públicos e do descompromisso dos governos com a cultura. Outro aspecto que a petição evoca é maior visibilidade ao poeta Max Martins, e para tanto reivindica a adição do seu nome à Casa da Linguagem – ele para si mesmo nunca reivindicou tal coisa nem mesmo outra –, por tudo que esse homem, esse grande poeta criou e foi capaz de amar, e para que isso permaneça junto de nós, não só desde um letreiro, mas para além disso, pelo cruzamento de vida e personalidade artística radical, dionisíaca, capaz de afetar e se fundir ao tempo. 

Esse documento tomou forma a partir das discussões mantidas com leitores, estudiosos e familiares do poeta, sempre a partir das articulações poéticas que permanentemente a obra de Max Martins provoca no ambiente de cultura da cidade e mundo afora. E recai na urgência maior de se republicar a sua obra.  Da mesma maneira, lembremo-nos ainda, como responsabilidade de curto prazo, do espólio de Paulo Plínio Abreu, Mário Faustino, Cauby Cruz, Bruno de Menezes, Ruy Barata, Lucinerges Couto, Maria Lúcia Medeiros. Da imensa força que eles ainda movimentam e da qual não podemos abrir mão, sem que a fúria do silêncio nos amesquinhe um pouco mais.


Ney Ferraz Paiva
imagem: Helena Almeida

quinta-feira, 26 de julho de 2012

pra reconciliar os foliões breton & tzara
o método é simples
fumar cigarro tomar vinho
não há outra maneira de fazê-lo
levará tanto tempo quanto vocês queiram
mas é algo a fazer aqui mesmo agora mesmo
– a palavra duas vezes mais embriagada que outra
atingirá duas vezes mais rápido o coração do outro?





ney ferraz paiva

imagem: james gallagher

quarta-feira, 25 de julho de 2012

SALDO



Entrem amigos       tomem assento entre os meu
 pertences
os quais não me pertencem mais do que a vocês
suas melenas copiosas     não tenho nada para
 brindar
como em outro tempo leite pão velho ou uma ou
 outra
tíbia palavra que roer     como veem 
 as coisas mudaram muito
vocês estão mortos a uns quantos
 calendários
eu tive um pouco mais digamos de destreza
com as doenças dos primeiros anos
mais acreditem   não é nenhuma vantagem
estar ainda do lado dos vivos
gozando de seus escassos privilégios
(estar de novo com vocês 
no portal imaginário da casa onde
 convivíamos 
onde ainda aguardamos o café de cada tarde
não sem certa amargura recente e viva como um 
 morto)
velhos amigos como lamento esta falta de tudo o que lhes
 oferecer
minha ignorância e um pouco de impotência
pelas coisas que ocorrem por aí (falou-se
muito da guerra do genocídio e de certa
 probabilidade
de extermínio parcial ou total da espécie humana
mas falem
como vão vocês sem ninguém     como vão vocês no nada
sem ter que trabalhar para ganhar um osso
quando já não faz falta romper a noite
               com um tremendo uivo





 

Delfín Prats, O Sonho da Insularidade, Lume, 2012
Tradução: Fábio Aristimunho Vargas

domingo, 22 de julho de 2012

Mas no vento seu rumor chegava

Ama-a mas ama-a
como se tudo tivesse concluído e passado
como se desde o futuro mais remoto
recordasses o vinho de teus melhores anos
o verão de mil novecentos e oitenta
quatorze de abril
quando foi tua
em um hotel perto do mar
cujas janelas não davam para o mar
mas no vento seu rumor chegava
e ela vinha a ti como uma onda
morrendo às margens de teu corpo




Delfín Prats, O sonho da Insularidade
tradução: Fábio Aristimunho Vargas 
imagem: Bredan George Ko

domingo, 15 de julho de 2012


primeira & última vez de sarah kane

 
viva – a mulher não tem como
ser suficientemente explícita
esvoaça a sua volta um dilema – dois
morta – ela só está fazendo número
que a põe em cartaz uma outra vez
diários cartas caem em domínio público
mas ela ainda não fica satisfeita
pega numa armadilha sem saída
é dessa vez que ela quer tudo
o dom raro da mulher – o azar
suas cinzas coagulam ao vento


ney ferraz paiva 
william eggleston

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Partilha do sensível – o acervo Max Martins


O instinto e a instituição são as duas formas organizadas de uma satisfação possível. 
Gilles Deleuze, “Instintos e Instituições” in A ilha deserta, 2002.


Ao decidir vender o acervo do poeta Max Martins à Universidade Federal do Pará, a família optou predominantemente por um critério emocional – que todo material ficasse em Belém, favorecendo que o espólio estivesse acessível a leitores, estudiosos e pesquisadores da cidade onde o poeta viveu e desenvolveu toda a sua obra. Passados mais de dois anos de sua aquisição, e integrado ao Museu da UFPA, o acervo sequer chegou à fase de catalogação. A redutora falta de verba das instituições públicas de cultura, que corrói transações como essa e, consequentemente os próprios acervos, é a causa alegada. O desgaste de boa parte dos livros da biblioteca particular do poeta já se encontrava em estado avançado bem antes de sua morte. Vê-los amontoados numa sala, fora de estantes e sem a higienização necessária, causa espanto e indignação. Não se conhece os termos ou as condições de compra e venda entre as partes, mas ao fazer a aquisição a Universidade Federal do Pará deveria prever os custos altos que, de fato, envolvem a preservação, conservação, restauração e proteção de acervos bibliográficos. E supor que uma sala, por mais generosa e especial que seja, possa abrigar e vir a ser o espaço adequado para fazer funcionar a usina de criação e pensamento que a obra de Max Martins põe em movimento, na sua diversidade e multiplicidade, aponta e confirma um histórico de enganos e equívocos, um horizonte negativo na guarda de acervos por instituições públicas no Pará. E não cabe aqui apontar exceções, uma vez que se sabe que os espaços de excelência confirmam a desproporcional distribuição dos lugares e a efetiva proscrição. A essa altura, o Museu da UFPA fica devendo à comunidade o levantamento e a publicação de um catálogo que dê conta das informações básicas desse acervo, divulgando-o e incorporando-o à vida cultural de Belém, como informação preciosa à imaginação, pelo que ela é capaz de trazer ao ar livre da cidade, despoluindo saberes e pensabilidades, seus modos e formas de funcionamento, que só a linguagem criativa é capaz de desmobilizar, ativando e articulando qualidade de vida e desenvolvimento humano.

Max Martins em seu gabinete, de onde se vê parte de seu acervo, 1988.

Ney Ferraz Paiva

um pacto


faço um pacto com você, walt whitman -

já o detestei bastante


corro atrás de você como um menino atrevido


que teve um pai caturra;

estou na idade de fazer amigos


você cortou a madeira 


é tempo de cultivar


temos a mesma seiva & a mesma raiz


deixa que haja troca entre nós






ezra paund

tradução: ney ferraz paiva
imagem: bill traylor

sábado, 7 de julho de 2012

Que Tienes Debajo del Sombrero?



A norte-americana Judith Scott trabalhava as suas esculturas como se fosse um inseto. Apanhava peças e cobria-as com lã. Surda-muda e com síndrome de Down. Nada deteve as vozes de Judith Scott.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Democracia é engraçada; Demokratie ist lustig!
Com esta frase Joseph Beuys comenta a sua expulsão da Academia de Artes de Dusseldorf.


Em outubro de 1972 Joseph Beuys participava da Documeta de Kassel 5 com sua escultura social “Escritório de Organização para a Democracia Direta através do Plebiscito”, dias depois volta a Dusseldorf para inicio das aulas de inverno. Chegando em Dusseldorf no dia 11 de Outubro Joseph Beuys com mais 54 estudantes, invadem a secretaria da Academia de Artes de Dusseldorf. Beuys já havia programado a ação e havia escrito aos 125 canditatos que haviam sido recusados no processo de escolha através de portfólios. Dos 125, 54 compareceram à ação onde Beuys pleiteava a inserção e requeria a aceitação de todos os estudantes em sua classe!
Na noite da invasão Beuys recebe a carta de demissão assinada por Johannes Rau, em razão de aceitar estudantes em sua classe que foram recusados pelo processo de seleção. Para finalizar com a ação e manter a ordem, o ministro do estado ordena a retirada de Beuys e seus estudantes com a auxilio da força policial!
O registro da ação por Bernd Nanninga e que ano após se transformaria em uma edição de postais e cartazes, se tornou uma das imagens mais emblemáticas de Joseph Beyus, sorridente com um jeans surrado e um longo casaco, a foto mostra ele e seus alunos abandonando a secretaria da Universidade. Beuys defendeu a liberdade do indivíduo e repudiava as convenções e controle do estado, o com esta ação Beuys se vê diante, deste equipamento de manutenção da disciplina e ordem em nossa sociedade. A imagem em forma de postal torno-se um registro desta ação.


Joseph Beuys postal 1973 14.8 x 10.5 cm e edição em poster de 75 x 114,5 cm com unidades numerada e 5 exemplares assinados.


"É a Demokratie é mesmo lustig" (1973)

domingo, 1 de julho de 2012

Al Berto . Coimbra . Janeiro 1992



Antes de começar a ler só queria perguntar-vos se vocês não são capazes de estar em silêncio cinco minutos com vocês mesmos para conseguirem estar em silêncio às vezes quando é necessário com os outros, e quem não gosta sai e volta a seguir porque se for um merda, deixem-me acabar, se faz favor, se for um merda com uma guitarra que faz três acordes vocês estão em silêncio porque se curte e é imensamente bom para a carola, a poesia, pá, lamento, boa ou má, talvez não fosse má ideia ouvir. E suponho que há montes de gente aqui nesta sala que nunca abriu um livro de poesia sequer. E é uma questão de respeito pelas outras pessoas e por aquilo que elas fazem. Eu vou dormir mas pagaram-me para estar aqui, inclusivamente, e eu não publico livros para idiotas. Importas-te de servir mais um que é para eu me animar? Eu estou bem, só preciso de um reforço aí no copo. O que eu acabo de dizer não obriga ninguém a gostar daquilo que eu escrevo, inclusivamente. Já começo, se for preciso eu espero. À vossa. Eu estou lindamente. Posso começar? Também me posso ir embora, de qualquer maneira não tem importância nenhuma, para mim é-me igual. Não, eu estou lindamente. Eu hoje estou numa de chato também, se não te importas, também tenho o direito. Agora é quando me apetecer também. E como eu não sou a Anabela, não canto, não é, é um problema, ela abre o gasganete, pá... Falta gelo, é horrível isto assim, não leio nada sem gelo, toma. Gelo aí para dentro. Eu já começo, eu vou ler, juro. Nem penses, agora é quando eu quiser. Não, Helder, tu não me conheces! Ouve lá, queres vir comigo? Vais tu primeiro! Agora começo quando me apetecer e se calhar nem sequer leio que é para chatear! Não, eu até me vou embora, não preciso de ler nada, eu. Eu não preciso de ler nada. Mas eu não preciso de ler nada! É-me igual, mais do que eu já bebi... costumo tomar o pequeno-almoço às 10 da manhã. Bom, eu vou tentar abstrair-me do som de fundo.

E um caralho para quem faz barulho.

Vocês são mesmo ordinários, foda-se. Acho que não leio mais nada, não me apetece. Não pensem que me vou embora sem dizer meia dúzia de coisas, eu por acaso lamento imenso que pessoas que têm um nível, penso eu, ou não têm, de facto, é a primeira vez que me acontece e devo dizer que desde 1985 que leio poemas em público, é a primeira vez que não consigo ler ou que estou a ler com imenso sacrifício porque é perturbante ter um barulho e a falta de respeito pelo trabalho dos outros, é a mesma coisa que eu entrar quando vocês estão a fazer exames e eu digo assim então e agora se fossem apanhar no cu, não é, é giro, é muita giro, é fresco, pá, é porreiro à brava. É mais ou menos a mesma coisa só que eu já não faço exames há vinte anos, sou profissional, no sentido que sou... eu sou escritor há vinte anos, há vinte anos que escrevo, há dez que publico neste país, tenho imensa pena da vossa ignorância, ou da ignorância de alguns. Primeiro, e as outras pessoas que aqui estão também, não estou sozinho, não estou, felizmente não estou sozinho! Porque está aqui o Manuel Fernando, está aqui o Helder Moura Pereira, o António Franco Alexandre, o Paulo da Costa Domingos, se vocês não conhecem são mais ignorantes que aquilo que eu pensava, mas muito mais. O que vocês precisam é de Saramagos, muitos. E mais mal escrito, porque ele até nem escreve muito mal. Lamento imenso, mas eu não vou ler mais nada, porque não é possível. As vaias fazem parte também de uma paixão, do mito. Muito obrigado. E eu só trabalho para o meu mito, mais nada. Agradeço aqueles que também me vaiaram porque estão a contribuir para isso, largamente, nesta cidade, sobretudo onde eu nasci, sobretudo na cidade onde eu nasci, é porreiro, porque é a primeira vez que fui vaiado. E é a primeira vez que não houve respeito por mim nem pelas outras pessoas que aqui estiveram, que estão de boa vontade e sem mais algum interesse. Muito obrigado, adorei o whisky que vim tomar a Coimbra. Não vou voltar tão cedo.

terça-feira, 26 de junho de 2012


imagens pesam mais do que o mar

alessandra negrinni como a vi em seus quarenta anos



ela não ri: move-se esquiva de um lado a outro
anda a casa como se fizesse fotos
pés trocados olhar confuso
faz pose pra ele pra o deter de quem?
fisicamente opostos & partidos
o mundo vira de ponta-cabeça
ele a olha com expressão vazia
voz baixa fala devagar
diz ter um problema enorme
precisa urgentemente viajar
ir ao mar ao fogo às nuvens
“ou quem sabe de um bom xampu anticaspa”
sempre diz isso pra fazer as pessoas rirem
ela não ri ele pergunta “por que você não ri?”
desde pequena que não sabe
rir nem dos pequenos dramas
“ria se alguém está sofrendo
perto de você – por causa de você”
pra ela o inferno é isso
ele nada sabe a respeito
não presta muita atenção
suspensa no ar sem deixar





ney ferraz paiva

CANTO VIGÉSIMO OITAVO

Tenho a impressão que a avareza
não é um defeito se acontece na velhice
quando  o tédio já invadiu o cérebro.
A mim salvou-me aos setenta anos
quando uma tarde comecei a apagar as luzes
e meu irmão tropeçava por todo o lado.
Agora recolho os fósforos usados
(com algodão podem servir para limpar os ouvidos)
e de manhã à noite
tenho muito que fazer:
quero que meu irmão deite pouco açúcar
no leite e eu, guloso por mel,
lambo apenas uma colherzita ao domingo,
em pé, entre as duas portas do guarda-louça.
A toalha não é necessária, usámos um pedaço de papel
que depois serve também para acender o lume.
De noite se alguém se levanta
basta uma candeia enquanto o outro permanece no escuro.
Assim passa uma hora, passam duas, passa um mês
e a cabeça trabalha.


Tonino Guerra «O Mel», Assírio e Alvim
imagem: Saul Leiter

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Para o livro de Literatura de segundo grau


Não leias odes, meu filho, lê os horários
(dos trens, dos ônibus, dos aviões):
são mais exatos. Abre os mapas náuticos
antes que seja tarde demais. Sê vigilante, não cantes.
Chegará o dia em que eles, de novo, pregarão listas
no portão e desenharão marcas no peito daqueles que dizem
não. Aprende a ir incógnito, aprende mais do que eu:
a mudar de bairro, de passaporte, de rosto.
Entende da pequena traição,
da salvação suja de todos os dias. Úteis
são as encíclicas para se fazer fogo,
e os manifestos: para a manteiga e sal
dos indefesos. É preciso raiva e paciência
para se soprar nos pulmões do poder
o fino pó mortal, moído
por aqueles, que aprenderam muito,
que são exatos, por ti.







Poema: Hans Magnus Enzensberger
Tradução: Kurt Scharf e Armindo Trevisan

Imagem: Carlos Vergara

quarta-feira, 2 de maio de 2012

adeus às coisas aqui embaixo


tento morrer agora
que os cinquenta anos
travam meus pés
numa armadilha
e a poesia continua a ser
minha ocupação
não posso dar um passo
à frente nem atrás
preciso tentar a morte
com determinação
atento à voz do Cosmo
aos gritos de Minerva
morrer no mais refletido
onde chego a ser dois
enxertado em livros
léxicos tipografias
hastes subterrâneas
sem nada levar da arte
além da minha loucura




poema: ney ferraz paiva
imagem: graciela itubirde

segunda-feira, 23 de abril de 2012

ERA UMA VEZ FERNANDO DINIZ



quis ser vilão de história em quadrinhos
anjo de rua com plumagem de pássaros
 isso de qualquer forma acabou sendo
paisagens estriadas desertos bifurcados
face selvagem martelada no painel caos
de longeva infância & breve vida adulta
tipo exato de louco que se quis moldar
pedra borboleta margarida estrela
razão limbo incerto da alvorada



Fernando diniz



Ney Ferraz Paiva

segunda-feira, 16 de abril de 2012

"cambridge", desenho de sylvia plath


brasília


será que elas existem
essas pessoas com torso de aço
cotovelos e olhos alados

aguardando tufos
de nuvem, para lhes dar expressão
esses super-homens! 

e o meu bebê deixado num prego
impulsionado, conduzido
adentro, grita, obeso

ossos exalam a distância.
e eu, quase extinta,
seus três dentes de corte

 acertam meu polegar 
e a estrela,
a velha história.

no caminho encontro ovelhas e vagões,
terra vermelha, sangue materno.
ó tu que devoras

homens como raios de sol, deixe
este
espelho, desfigurado, não redimido

pela aniquilação da pomba,
a glória
o poder, a glória.


sylvia plath, londres, 1962
livre versão: ney ferraz paiva


ao centro, quadro com o poema "brasília" ilustrado com o desenho "cambridge".
exposição de sylvia plath na mayor gallery, londres, 2011.



Will they occur,
These people with torso of steel
Winged elbows and eyeholes

Awaiting masses
Of cloud to give them expression,
Thes super-people! 
And my baby a nail
Driven, driven in.
He shrieks his grease

Bones nosing for distance.
And I, nearly extinct,
His three teeth cutting
Themselves on my thumb 
And the star,
The old story.

In the lane I meet sheep and wagons,
Red earth, motherly blood.
O You who eat

People like light rays, leave
This one
Mirror safe, unredeemed

By the dove's annihilation,
The glory
The power, the glory.


Parte superior do formulário

domingo, 15 de abril de 2012


tédio

folhas de chá, negando visões de desastre,
prometem vida que não vai se cumprir:
o tédio cruza a palma de sua mão
mas nem a cigana prevê perigo aí.
estéril advertência: o cavaleiro ingênuo
recua aos dragões e ogres impotentes
enquanto princesas blasées consideram
absurdo inclinar-se, na arena, ao terror.


a besta, no bosque de henry james, não saltará,
ofuscando ainda mais a fama do herói em crise;
e quando anjos à espreita soarem a divina trombeta,
a uma plateia entediada ou, afinal, de olhar ansioso,
atenta ao desafio - não aos apelos e aos prêmios,
não deixará escapar pela porta da ruína, mulher e tigre.


sylvia plath
livre versão: ney ferraz paiva

terça-feira, 10 de abril de 2012

Protesto poético 


Minha mãe enterrada
é exumada para reprises...

Agora querem fazer um filme
Para os incapazes
De imaginar o corpo
Com a cabeça no forno.
Os comedores de amendoim, divertidos
Com a morte de minha mãe, irão para casa ...
Talvez comprem o vídeo.
Só precisarão pressionar 'pause'
Se quiserem colocar a chaleira no fogo
Enquanto minha mãe segura sua respiração na tela
Para terminar de morrer depois do chá...


Eles pensam que eu deveria adorar ... eles pensam
Que eu deveria lhes dar as palavras de minha mãe
Para encher a boca de seu monstrengo
Sua Boneca Sylvia Suicida
Que vai saber andar, falar
E morrer quando eles quiserem
Morrer e morrer de novo
Viver sempre morrendo.







Frieda Hughes (excerto)