o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

segunda-feira, 20 de agosto de 2012


APRECIAÇÃO

            O livro de Lyotard é ao mesmo tempo disperso, fugidio em todos os sentidos e, todavia, fechado como um ovo. O texto é ao mesmo tempo lacunar e enxuto, flutuante e ligado. Discours, figure: nele, as figuras, mesmo as ilustrações, são parte integrante do discurso; elas se insinuam no discurso, ao mesmo tempo em que o discurso retorna às operações que as tornam possíveis. Esse livro é construído sobre duas extensões heterogêneas que não se espelham, mas que asseguram uma livre circulação de energia de escrita (ou de desejo?). Um ovo: meio interior variável sobre uma superfície móvel. Esquizo-livro que, através de sua técnica complexa, atinge a uma elevadíssima clareza. Como todos os grandes livros, difícil de se fazer, mas não difícil de se ler.
            A importância desse livro está em ser ele a primeira crítica generalizada do significante. Ele ataca essa noção que tem exercido há muito tempo uma espécie de terrorismo nas belas-letras e tem até mesmo contaminado a arte ou nossa compreensão da arte. Finalmente, um pouco de ar puro sob os espaços retrancados. Ele mostra que a relação significante-significado encontra-se ultrapassada em duas direções. Em direção ao exterior, do lado da designação, é ultrapassada pelas figuras-imagens: pois não são as palavras que são signos, mas  elas fazem signos com os objetos que elas designam, objetos cuja identidade elas quebram para neles descobrir um conteúdo oculto, uma outra face que não se poderá ver, mas que, em contrapartida, fará “ver” a palavra (as belíssimas páginas sobre a designação como dança, e a visibilidade da palavra, a palavra como coisa visível, distinta ao mesmo tempo da sua legibilidade e da sua audição). E a relação significante-significado encontra-se ainda ultrapassada de uma outra maneira: em direção ao interior do discurso, ultrapassada por um figural puro que vem agitar os desvios codificados do significante, que vem introduzir-se neles e, também aí, trabalhar sob as condições de identidade de seus elementos (as páginas sobre o trabalho do sonho, que violenta a ordem da palavra e quebra o texto, fabricando novas unidades que não são lingüísticas, que são outros tantos rébus sob os hieróglifos).
            Em todos os sentidos, o livro de Lyotard participa de uma antidialética que opera uma reversão completa da relação figura-significante. Não são as figuras que dependem do significante e dos seus efeitos; ao contrário, é a cadeia significante que depende dos efeitos figurais, que depende das figuras não-figurativas que fabricam configurações variáveis de imagens, que põem linhas a fluir e as cortam segundo pontos singulares, destroçando e torcendo tanto os significantes quanto os significados. E tudo isso não é apenas dito por Lyotard, ele o mostra, faz ver, torna-o visível e móvel: destruição de identidades que leva o leitor numa profunda viagem.
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Gilles Deleuze, 1972
tradução: Luiz B. L. Orlandi
imagem: Nicole Wermers

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La Quinzaine littéraire, nº 140, 1-15 de maio de 1972, p. 19. (Sobre o livro de Jean-François Lyotard, Discours, figure, Paris, Klincksieck, 1971. Discours, figure é a tese de Doutorado de Estado de Lyotard. Deleuze foi um dos membros da Banca Examinadora.

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