o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

A Guerra de Dríade
ou
Volta a ser Eucalipto

O enorme cão abriu os olhos,
deu um salto e arqueando o dorso negro,
bem plantado em suas quatro patas,
uivou com uivo interminável:
que via com seis olhos injetados,
seus três focinhos contra quem ganiam?
via uma nuvem prenhe de centelhas,
via um par de olhos, via um gato montês,
o gato caiu sobre o cão,
o cão derrubou o gato,
o gato arrancou um olho ao cão,
o cão se tornou um ladrido de fumaça,
a fumaça subiu ao céu,
o céu se tornou tempestade,
a tempestade baixou armada de raios,
o raio incendiou o gato montês,
as cinzas do gato se espalharam
entre as quatro esquinas do universo,
o quarto se converteu em Saara,
soprou o simun e me abrasei em seu hálito,
convoquei os gênios da água,
o trovão rodopiou no terraço,
quebraram-se os cântaros de cima,
choveu sem parar durante quarenta relâmpagos,
a água chegou ao céu do teto,
no vértice da crista tua cama balouçava,
com os lençóis armaste um velame,
de pé na proa de teu esquife instável
tirado por quatro cavalos de espuma e uma águia,
uma chama ondulante tua cabeleira elétrica,
levantaste a âncora, negaceaste o temporal
e te fizeste ao mar,
                                        tua artilharia
disparava de estibordo,
desmantelava minhas premissas,
fazia em pedaços meus conseguintes,
teus espelhos ustórios
incendiavam minhas convicções,
recuei para a cozinha,
rompi o cerco no porão
escapei por um esgoto,
no subsolo achei tocas,
a insônia acendeu suas velas,
sua luz díscola iluminou minha noite,
inspirações, conspirações, imolações,
com fúria verde, uma chamazinha iracunda
e o maçarico de “vais me pagar!”,
forjei um punhal de misericórdia,
me banhei no sangue do dragão,
saltei o fosso, escalei as muralhas,
espreitei o corredor, abri a porta,
tu te olhavas no espelho e sorrias,
ao ver-me desapareceste num lampejo,
corri atrás dessa claridade desaparecida,
inquiri a lua de cristal do armário,
espremi as sombras da cortina,
plantado no centro da ausência
fui estátua numa praça vazia,
fui palavra fechada num parêntese,
fui agulha de um relógio parado,
fiquei com um punhado de ecos,
dança de sílabas fantasmas
na cova do crânio,
reapareceste num resplendor súbito,
levavas na mão direita um sol diminuto,
na esquerda um cometa de cauda vermelho-romã,
os astros giravam e cantavam,
ao voar desenhavam figuras,
se uniam, separavam, uniam,
eram dois e eram um e eram nenhum,
o dúplice pássaro de luz
aninhou em meus ouvidos,
queimou meus pensamentos, dissipou minhas memórias,
cantou na jaula do cérebro
o solo do farol na noite oceânica
e o hino nupcial das baleias,
o punhal floresceu,
o cão de três cabeças lambia teus pés,
o espelho era um arroio reprimido,
o gato pescava imagens no arroio,
tu rias no meio do aposento,
eras uma coluna de luz líquida,
Volta a ser eucalipto, disseste,
o vento agitava-me a folhagem,
eu calava e o vento falava,
murmúrio de palavras que eram folhas,
verdes cintilações, língua de água,
estendida ao pé do eucalipto
tu eras a fonte que ria,
vaivém das ramagens sigilosas,
eras tu, era a brisa que voltava.


Octavio Paz, de "Arbol adentro", 1987
tradução: Haroldo de Campos
imagem: Grete Stern

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