SEM MÉDIA SEM MÍDIA SEM MEDO
Todos os homens deveriam ser objetadores de consciência.Murilo Mendes
Escrevo em torno do que me fascina, e isto não é o mesmo que dizer que apascento cordeiros e que reservo a eles meus elogios. O que sei é que a crítica deve constituir-se sempre em um evento repentino e decisivo. Sacrifica os cordeiros ainda no estágio vago e inicial da descoberta e da primeira leitura. Se forem encorpados artificialmente a ponto de não se ter um desenvolvimento preciso de pensamento e escrita. Ou seja: se o livro entra em colapso sob seu próprio peso. E o que dizer dos livros de ensaios, que são por si sós algum exercício de crítica ou de teoria, e frequentemente volumosos? Parte considerável deles pertence a rebanhos agonizantes. Em algum momento desaparecem sem deixar rastros. Bons livros de ensaios são acontecimentos raros. Escritos com sangue, fúria e sem mansidão, geralmente escapam à observação dos fatos relativamente próximos (mas não aos afetos). “Meus olhos têm telescópios espiando a rua”, nos diz João Cabral de Melo Neto, um misto de ensaísta e poeta que, ao proceder como astrônomo ou astronauta, pões em movimento uma obra em permanente expansão. André Queiroz segue, neste livro, uma dicção consistente de pensamento e inventividade, não só de recheada semântica: desde “Tela atravessada – ensaios sobre cinema e filosofia” (2001) continuamente estabelece conexões entre palavra e imagem, agora mais variadas, expandidas, de elementos combinados que não se neutralizam, e sim desencadeiam outras reações de fusão, linguagens, ciclos e dobras. Ao mesmo tempo em que o livro libera, absorve energia. Ou se pode dizer: transmuta-se entre os muito cultos/muito astutos ensaios de estrutura semelhante à de narrativas. Deles o leitor poderá extrair enredos (cinematográficos e/ou literários) extremamente fragmentados, cortantes, espiralados, de um núcleo de escrita mesclado à filosofia (pelo que observa-investiga-indaga-conceitua os gêneros relacionados), cercado por esferas de singularidade e multiplicidade, e cujo invólucro externo das formas de expressão se compõe principalmente pela força dos contrastes - ritmos de perplexidade - sentidos de estupor. Com efeito, o livro não faz lembrar um estojo de enfermagem a serviço do desastre das ações humanas – senão um equipamento de combate, de incursões ofensivas e deflagrações, de uma escrita em plena linha de conflito. É assim mesmo, André Queiroz tende a individualizar-se até o caminho fatal do que não seja apenas o discurso que restitui nitidamente a cena do seu fracasso. Prossegue por onde ainda os ecos de uma visada desmedida, estonteante, febril. De um Beckett e um Foucault a um Raduan Nassar e a um Bergman... até um José Lins do Rego. O procedimento de montagem escapa às coletâneas didáticas, à figuração do jornalismo de assuntos culturais em que repercutem palavras que afagam ouvidos e beijam bocas; antes, aqui, o corpo se arrasta inteiro e mais o que a ele se enxerta e amplia das entranhas frementes das coisas, suas cavidades e rupturas, aos apelos da dúvida de quem não enceta uma comunicação trocada para determinar o que se deve “saber” e aí ocupar espaços e permanecer de uma vez. “Sabe-se o mínimo. Não não se sabe nada”. Beckett logo a dizer em seus letreiros. Pensar não para fazer cartografias morais nem culturais; pacificar o corpo e o espírito dos incautos. Talvez um tanto do que se possa da fantasia de esgarçar as moléstias a que não se quer mais tocar ou que quase todos consideram saradas e bloqueadas. Enfermidades e dores – nada a ver com mapas, posses, territórios. Um lugar nenhum: O obscuro vazio. E quem sabe daí resulte não um tratado patológico, mas algum esboço de ideia desmunido das receitas de arte, texto e imagem codificadas como técnica e renegociadas como entretenimento e ornamentação no macro-sistema comunicativo. Esboço-vômito, esboço-sangue, esboço-pus. Muito mais do que ensaios, uma série de narrativas mal contadas da contemporaneidade; enviesadas, descentradas das regras, fatos e normas de poder: abertas e laceradas como pensamento que arfa incansavelmente, entregue à ficção de sua própria voz.
Ney Ferraz Paiva
Recife, dezembro 2010
"Também essa rasura, a palavra, a palavra escrita, o livro. Trata-se, antes: da (não abordada) arte de escrever; não porque as outras artes apareçam submetidas a ela, mas por ser, antes de tudo, em sua escrita que André Queiroz investe. Por isso, o “sobre” do subtítulo vem em itálico, porque, se diversos filmes, livros de literatura e filósofos, sendo tematizados, recebem tratamento, é ao modo de pontos de partida desde os quais André fala. Deles? Sim e não. Não e sim. Escreve, então, sobre eles, mas, sobretudo, a partir deles, com eles, como também a despeito deles. A cada vez que, escrevendo sobre as obras das quais fala, vai em direção a elas, André escreve também se distanciando delas. Escrevendo sobre elas, os textos se escrevem igualmente por sobre elas"... da orelha do livro por Alberto Pucheu.
ResponderExcluir"Depois de quase dez anos, um outro livro a partir do cinema, da inflexão filosófica, dos riscos à literatura. De algum modo, traço esta ponte móvel que liga desde Tela atravessada (2001) a este Palavra, imagem. Bem recordo que a escrita daquele era-me como que uma escrita desprendida dos supostos rigores acadêmicos, e eu a tecia durante a feitura de um outro livro, O Presente, o intolerável – Foucault e a história do presente (2004). Forma que eu tinha de aliviar-me as tensões. A escritura, sempre a escritura. Eu via os filmes e buscava dizer algo a partir deles – a despeito deles, contra eles, em direção a eles. Em dois anos, havia ali lá um livro. Idos de 2001. Agora, aqui, um outro livro"... (André Queiroz)
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