o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 22 de junho de 2011

SEM MÉDIA SEM MÍDIA SEM MEDO


Todos os homens deveriam ser objetadores de consciência.Murilo Mendes



Escrevo em torno do que me fascina, e isto não é o mesmo que dizer que apascento cordeiros e que reservo a eles meus elogios. O que sei é que a crítica deve constituir-se sempre em um evento repentino e decisivo. Sacrifica os cordeiros ainda no estágio vago e inicial da descoberta e da primeira leitura. Se forem encorpados artificialmente a ponto de não se ter um desenvolvimento preciso de pensamento e escrita. Ou seja: se o livro entra em colapso sob seu próprio peso. E o que dizer dos livros de ensaios, que são por si sós algum exercício de crítica ou de teoria, e frequentemente volumosos? Parte considerável deles pertence a rebanhos agonizantes. Em algum momento desaparecem sem deixar rastros. Bons livros de ensaios são acontecimentos raros. Escritos com sangue, fúria e sem mansidão, geralmente escapam à observação dos fatos relativamente próximos (mas não aos afetos). “Meus olhos têm telescópios espiando a rua”, nos diz João Cabral de Melo Neto, um misto de ensaísta e poeta que, ao proceder como astrônomo ou astronauta, pões em movimento uma obra em permanente expansão. André Queiroz segue, neste livro, uma dicção consistente de pensamento e inventividade, não só de recheada semântica: desde “Tela atravessada – ensaios sobre cinema e filosofia” (2001) continuamente estabelece conexões entre palavra e imagem, agora mais variadas, expandidas, de elementos combinados que não se neutralizam, e sim desencadeiam outras reações de fusão, linguagens, ciclos e dobras. Ao mesmo tempo em que o livro libera, absorve energia. Ou se pode dizer: transmuta-se entre os muito cultos/muito astutos ensaios de estrutura semelhante à de narrativas. Deles o leitor poderá extrair enredos (cinematográficos e/ou literários) extremamente fragmentados, cortantes, espiralados, de um núcleo de escrita mesclado à filosofia (pelo que observa-investiga-indaga-conceitua os gêneros relacionados), cercado por esferas de singularidade e multiplicidade, e cujo invólucro externo das formas de expressão se compõe principalmente pela força dos contrastes - ritmos de perplexidade - sentidos de estupor. Com efeito, o livro não faz lembrar um estojo de enfermagem a serviço do desastre das ações humanas – senão um equipamento de combate, de incursões ofensivas e deflagrações, de uma escrita em plena linha de conflito. É assim mesmo, André Queiroz tende a individualizar-se até o caminho fatal do que não seja apenas o discurso que restitui nitidamente a cena do seu fracasso. Prossegue por onde ainda os ecos de uma visada desmedida, estonteante, febril. De um Beckett e um Foucault a um Raduan Nassar e a um Bergman... até um José Lins do Rego. O procedimento de montagem escapa às coletâneas didáticas, à figuração do jornalismo de assuntos culturais em que repercutem palavras que afagam ouvidos e beijam bocas; antes, aqui, o corpo se arrasta inteiro e mais o que a ele se enxerta e amplia das entranhas frementes das coisas, suas cavidades e rupturas, aos apelos da dúvida de quem não enceta uma comunicação trocada para determinar o que se deve “saber” e aí ocupar espaços e permanecer de uma vez. “Sabe-se o mínimo. Não não se sabe nada”. Beckett logo a dizer em seus letreiros. Pensar não para fazer cartografias morais nem culturais; pacificar o corpo e o espírito dos incautos. Talvez um tanto do que se possa da fantasia de esgarçar as moléstias a que não se quer mais tocar ou que quase todos consideram saradas e bloqueadas. Enfermidades e dores – nada a ver com mapas, posses, territórios. Um lugar nenhum: O obscuro vazio. E quem sabe daí resulte não um tratado patológico, mas algum esboço de ideia desmunido das receitas de arte, texto e imagem codificadas como técnica e renegociadas como entretenimento e ornamentação no macro-sistema comunicativo. Esboço-vômito, esboço-sangue, esboço-pus. Muito mais do que ensaios, uma série de narrativas mal contadas da contemporaneidade; enviesadas, descentradas das regras, fatos e normas de poder: abertas e laceradas como pensamento que arfa incansavelmente, entregue à ficção de sua própria voz.


Ney Ferraz Paiva
Recife, dezembro 2010

2 comentários:

  1. ‎"Também essa rasura, a palavra, a palavra escrita, o livro. Trata-se, antes: da (não abordada) arte de escrever; não porque as outras artes apareçam submetidas a ela, mas por ser, antes de tudo, em sua escrita que André Queiroz investe. Por isso, o “sobre” do subtítulo vem em itálico, porque, se diversos filmes, livros de literatura e filósofos, sendo tematizados, recebem tratamento, é ao modo de pontos de partida desde os quais André fala. Deles? Sim e não. Não e sim. Escreve, então, sobre eles, mas, sobretudo, a partir deles, com eles, como também a despeito deles. A cada vez que, escrevendo sobre as obras das quais fala, vai em direção a elas, André escreve também se distanciando delas. Escrevendo sobre elas, os textos se escrevem igualmente por sobre elas"... da orelha do livro por Alberto Pucheu.

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  2. ‎"Depois de quase dez anos, um outro livro a partir do cinema, da inflexão filosófica, dos riscos à literatura. De algum modo, traço esta ponte móvel que liga desde Tela atravessada (2001) a este Palavra, imagem. Bem recordo que a escrita daquele era-me como que uma escrita desprendida dos supostos rigores acadêmicos, e eu a tecia durante a feitura de um outro livro, O Presente, o intolerável – Foucault e a história do presente (2004). Forma que eu tinha de aliviar-me as tensões. A escritura, sempre a escritura. Eu via os filmes e buscava dizer algo a partir deles – a despeito deles, contra eles, em direção a eles. Em dois anos, havia ali lá um livro. Idos de 2001. Agora, aqui, um outro livro"... (André Queiroz)

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