À GUISA DE RETIRO
En una noche oscura,
con ansias en amores inflamada,
[...]
En la noche dichosa
en secreto, que nadie me veía,
ni yo miraba cosa,
sin otra luz y guía,
sino la que en el corazón ardía.
São João de la Cruz
Canciones del alma
Retirei-me por um dia da vida. Passei-o na cama com histórias policiais. Pode parecer brinquedo tal retiro. Mas na verdade é lindo e transparente. Retiro-me do mundo, não mostrando a ninguém minhas feridas. Não mostro as minhas nem a Deus. Respondo aos ataques do mundo fazendo corpo mole. É num desses de corpo mole que morrerei sozinha como um homem nu.
Mas um dia mostrarei a Deus a minha face. E esta será tão terrível que Ele se assustará. Minha face lhe dirá: olhe, olhe o que você fez de mim ao me fazer humana. Más será a cara de um cadáver sem susto, já sem perigo de morrer, nada mais tendo a temer. Quando eu perder meu corpo triste ficarei de espírito livre e solto nos ventos das montanhas. Sem nada o que fazer por toda a eternidade. Pousando numa árvore de tronco escuro, ora pousando numa das rochas da terra. As grandes perguntas me aterrorizam. Não ouso fazê-las. Mas eu vou ser alguma coisa depois de morta? E pra quê?
Estou escrevendo na cama, deixei de lado por um instante o livro que lia. Sinto-me sozinha em pleno centro civilizado do mundo. Em baixo do meu edifício estão britando a rua num ruído incessante e infernal. E no meio disso estou eu em silêncio, repousando do último ataque que a vida me deu e que foi quase fatal. Só de quem se ama tanto é que pode partir a grande flechada que nos atinge em pleno rosto espantado. Não me queixo: só que me retiro de cena e faço corpo mole. Mexi-me demais no mundo das paixões e agora recolho-me para lamber minhas feridas ainda quentes de sangue. Não, não estou fazendo confidências. nunca a úmida confidência. E sim o seco depoimento de uma mulher sem ilusões. Pouco me resta, pouco tenho a perder. Estou livre. É uma liberdade grave e muda. Também com certa tristeza que existe na liberdade. Mas sinto que coisas me prendem ao mundo e espero morrer sem que essas coisas me sejam tiradas. Não quero viver muito por medo de dar tempo de me cortarem em pedaços.
Com estilo sem estilo dos bons contistas de história policial, aprendo a relatar, aprendo a denunciar. Eu denuncio a pureza do mundo. Denuncio as trevas em que vivemos, trevas de ambições e desejos que se reviram como cobras empilhadas. Desço fundo no meu retiro espiritual. E por estranho que pareça será do fundo de meu abismo que renascerei com um rosto calmo, quem sabe se até mesmo com a leve força de um sorriso.
Minha cama é dura , as histórias são duras, minha luta é dura, as histórias que vivi são duras. Aceito o desafio. Mas estou no momento sem muita força. Eu quereria poder escrever sobre pedras e não sobre homens. Quero a seca engenharia dos guindastes. Quero este ruído dos britadores que riem alto na luta.
Li hoje histórias de homens que não podem mais resistir – e eu hei de resistir? A tentação do pior é grande e, para não sucumbir a ela, apago-me, apago a chama de minha vida pequena. Reduzo-me a quase zero. Só me resta o ritmo respiratório leve.
E é este ritmo respiratório, que, bem sei, me levará a me levantar desta cama e de novo desejar. Desejar o quê?
Desejar apenas que esse ritmo respiratório tão leve perdure um pouco mais. Para eu poder beijar uma criança. Tudo tem que ser bem de leve para eu não me assustar e não assustar os que amo. Pedem-me pouco, pedem-me quase nada. O terrível é que eu tenho muito para dar e tenho que engolir esse muito e ainda por cima dizer como delicadeza: obrigada por receberem de mim um pouquinho de mim.
Acho que tenho dito. Resta-me me levantar dessa falsa cama de enfermo e começar ainda desajeitadamente a lutar. Tudo isso que eu escrevi, agora, é pra mim mesmo, não é para ninguém mais. Sou dura na queda. Adeus.
Clarice Lispector, texto não datado. Fonte: Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa. Publicado como pós escrito no livro de ensaio “Línguas de Fogo”, Claire Varin, São Paulo: Limiar, 2002.
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