O “TEATRO ÍNTIMO DO EU” POR FERNANDO PESSOA
É raro um país e uma língua adquirirem quatro grandes poetas em um dia. Foi precisamente o que ocorreu em Lisboa a 8 de março de 1914.
Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu naquela capital provinciana e algo lúgubre a 13 de junho de 1888. O Exército, o serviço público e a música figuravam no passado da família. Já em Janeiro de 1894, após a morte do pai e do irmão caçula, Pessoa começou a inventar “heterônimos” – “personas” imaginárias para povoar um “teatro íntimo do eu”. O garoto de seis anos trocava cartas com um correspondente fictício. Sua mãe casou-se novamente, e a família mudou-se para Durban, África do Sul. No Natal veio à luz um certo Alexander Search, invenção para quem Pessoa criou uma biografia, traçou o horóscopo e em cujo nome calmamente translúcido escreveu poesia e prosa em língua inglesa. Seguir-se-iam outros 72 personagens em busca de um autor. De início, eles tendiam a escrever na esteira de Shelley e Keats, de \calyle, Tennyson e Browning.
Em 1905, o jovem empresário de “eus” retornou a Lisboa. Logo abandonou a universidade e tornou-se autodidata. No restante de sua vida, Pessoa escolheu uma renda módica, em empregos de meio período. Serviu como correspondente de comércio estrangeiro, traduzindo e compondo cartas em inglês e francês. De vez em quando, traduzia uma antologia literária. Essa existência marginal e autônoma vincula Pessoa a outros mestres da modernidade urbana, como James Joyce, Italo Svevo (Trieste e Lisboa partilham uma vívida fantasmagoria) e, de certo modo, Franz Kafka.
Até 1909, a poesia imputada a Alexander Search permanece em inglês, á exceção de seis sonetos portugueses. O anos de 1912 marcou uma reviravolta. Pessoa envolveu-se nos incontáveis círculos, conventículos e publicações efêmeras e de cunho lítero-estético-político-moral que cresceram da crescente crise social portuguesa (77 mil habitantes emigraram só naquele ano). A vida íntima de Pessoa – a alternância entre o mundo dos cafés lisboetas e o isolamento radical – encontrou expressão num secreto “Livro do Desassossego” e no primeiro rascunho de um longo poema inglês. A fissão em incandescência quadripartida teve lugar naquele dia de março de 1914. Até hoje ele permanece um dos fenômenos mais notáveis da literatura. Ao rememorar o fato (numa carta de 1935) Pessoa fala de um “êxtase cuja a natureza não conseguirei definir (...) aparecera em mim o meu mestre”.
Alberto Caeiro escreveu 30 e tantos poemas a toque de caixa. A estes se seguiram , “imediatamente e totalmente”, seis poemas de Fernando Pessoa ele só. Mas Caeiro não saltara à existência sozinho. Viera acompanhado de dois discípulos principais. Um era Ricardo Reis; o outro: “De repente, em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem. Criei, então uma ‘coterie’ inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa”.
Pseudônimos, “noms de plume”, anonimato e toda forma de máscara retórica são tão velhos quantos a literatura. Os motivos são muitos. Eles se estendem desde a escrita política clandestina à pornografia, desde o ofuscamento brincalhão a sérios distúrbios de personalidade. O “companheiro secreto” (íntimo de Conrad), o “duplo” prestativo ou ameaçador, é um motivo recorrente – veja-se Dostoiévski, Robert Louis Stevenson e Borges. Assim também é o tema – antigo como a rapsódia homérica – da poesia “tomada sob ditado”, sob assalto literal e imediato das Musas, ou seja, das vozes divinas ou dos finados.
Nesse sentido de “inspiração”, de “ser escrito em vez de escrever”, as técnicas de escrita automática antecedem em muito o surrealismo. Muitos dos grandes escritores voltaram-se abertamente contra si próprios, contra a sua obra ou seu estilo anteriores, a ponto de buscar sua destruição. A multiplicidade, o ego convertido em legião, pode ser festiva, como em Whitman, ou sombriamente auto-irônica, como em Kierkegaard.
Há disfarces e paródias que a erudição mais minuciosa jamais penetrou. Simenon era incapaz de recordar quantos romances criara ou sob quais antigos e múltiplos pseudônimos. Em idade avançada, o pintor De Chirico prorrompia em museus e galerias de arte declarando falsos e os prestigiosos quadros que havia muito lhe eram atribuídos. Agiu assim porque passou a antipatizá-los ou porque não podia mais identificar sua própria mão? Como proclamou Rimbaud, em sua renovação da modernidade, “Eu é um outro”.
George Steiner
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