o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 29 de junho de 2011

ALTAZOR 




1.
Sou um homem inteiro
O homem ferido por todos
Por uma flecha perdida do caos
Humano terreno desmesurado
E sem receio desmesuradamente o declaro
Desmesurado porque não sou um burguês nem de raça debilitada
Sou talvez bárbaro
Desmesurado obsessivo
Bárbaro isento de rotinas e de caminhos determinados
Não aceito vossas cômodas cadeiras nomeadas
Sou o anjo selvagem que caiu uma manhã
Nas vossas plantações de preceitos
Poeta
Antipoeta
Culto
Anticulto
Animal metafísico carregado de angústias
Animal espontâneo justo sangrando com seus problemas
Solitário como um paradoxo
Fatal paradoxo
Flor de contradições dançando um fox-trot
Sobre o sepulcro de Deus
Sobre o bem e o mal
Sou um peito que grita e um cérebro que sangra
Sou um tremor de terra
Os sismógrafos assinalam minha passagem pelo mundo
Rangem as rodas da terra
Vou às cavaleiras de minha morte
Vou colado à minha morte como um pássaro ao céu
Como uma flecha na árvore que cresce
Como o nome na carta que envio
Vou colado à minha morte
Vou pela vida colado à minha morte
Apoiado no bastão de meu esqueleto
Matai a terrível dúvida
E a espantosa lucidez
Homem de olhos abertos na noite
Até ao fim dos séculos
Enigma-asco dos contagiosos instintos
Como os sinos da exaltação
Passarinheiro de luzes mortas que passam com pés de espectro
Com os pés indulgentes do arroio
Que as nuvens arrastam e mudam de rumo

Na roleta do céu joga-se nosso destino
Ali onde morrem as horas
O grave cortejo das horas que massacram o mundo
Joga-se nossa alma
E a sorte que voa todas as manhãs
Sobre as nuvens com os olhos cheios de lágrimas
Abre a ferida das últimas crenças sangrando
Quando a espingarda desgostosa do humano refúgio
Desaloja os pássaros do céu
Contempla-te ali fraterno animal sem nome
Junto ao bebedouro de teus próprios limites
Sob a benigna aurora
Que fustiga o tecido das marés
Olha ao longe a fileira de homens
Saindo da fábrica com os mesmos anseios
Mordidos pela mesma eternidade
Pelo mesmo furacão de vagabundos fascínios
Cada um traz sua informe palavra
E os pés atados à sua própria estrela
As máquinas avançam na noite do diamante fatal
Avança o deserto com suas ondas sem vida
Passam as montanhas passam os camelos
Além passa a fileira de homens entre fogos-fátuos
A caminho da pálpebra tumular

2.
O sol nasce em meu olho direito e põe-se em meu olho esquerdo
Na minha infância uma infância ardente como um álcool
Sentava-me nos caminhos da noite
A escutar a eloquência das estrelas
E a oratória da árvore
Agora a indiferença neva na tarde da minha alma
Abram-se em espigas as estrelas
Quebre-se a lua em mil espelhos
Torne a árvore ao ninho de sua amêndoa
Apenas quero saber porquê
Porquê
Porquê
Sou protesto e rasgo o infinito com minhas garras
E grito e gemo com miseráveis gritos oceânicos
O eco de minha voz faz ressoar o caos

Sou desmesurado cósmico
As pedras as plantas as montanhas
Saúdam-me as abelhas os ratos
Os leões e as águias
Os astros os crepúsculos as auroras
Os rios e as florestas perguntam-me
Então como tem passado?
E enquanto os astros e as ondas tiverem algo para dizer
Será pela minha boca que falarão aos homens
Trazei-me uma hora para desfrutar a vida
Trazei-me um amor pescado pela orelha
E deixai-o aqui a morrer perante meus olhos
Que eu role pelo mundo a toda a brida
Que eu corra pelo universo a toda a estrela
Que me afunde ou me levante
Lançado sem piedade entre planetas e catástrofes
Senhor Deus se tu existes é a mim que o deves

3.
Há palavras que têm sombra de árvore
Outras que têm fluido de astros
Há vocábulos que têm fogo de raios
E que incendeiam o espaço onde caem
Outras que se descarregam como vagões sobre a alma
Altazor desconfia das palavras
Desconfia da cerimoniosa astúcia
E da poesia
Armadilhas
                   Armadilhas de luz e luxuosas cascatas
Armadilhas de pérola e de lâmpada aquática
Caminha como cegos com seus olhos de pedra
Pressentindo o abismo em cada passo

4.
Basta senhora harpa das belas imagens
Dos furtivos como iluminados
Outra coisa outra coisa buscamos
Sabemos pousar um beijo como um olhar
Plantar olhares com árvores
Engaiolar árvores como pássaros
Rasgar pássaros como heliotrópios
Tocar um heliotrópio como uma música
Esvaziar uma música como um saco
Degolar um saco como um pinguim
Cultivar pinguins como vinhedos
Ordenhar um vinhedo como uma vaca
Desarvorar vacas como veleiros
Pentear um veleiro como um cometa
Desembarcar cometas como turistas
Enfeitiçar turistas como serpentes
Colher serpentes como amêndoas
Descascar uma amêndoa como um atleta
Abater atletas como ciprestes
Acender ciprestes como faróis
Aninhar faróis como cotovias
Exalar cotovias como suspiros
Bordar suspiros como sedas
Derramar sedas como rios
Tremular um rio como uma bandeira
Depenar uma bandeira como um galo
Apagar um galo como um incêndio
Vagar em incêndios como em oceanos
Ceifar oceanos como searas
Repicar searas como sinos
Esquartejar sinos como cordeiros
Desenhar cordeiros como sorrisos
Engarrafar sorrisos como licores
Engastar licores como jóias
Eletrizar jóias como crepúsculos
Tripular crepúsculos como navios
Descalçar um navio como um rei
Pendurar reis como auroras
Crucificar auroras como profetas

5.
Noite de antiquíssimos terrores noturnos
Aonde a nevada gruta nutrida de milagres?
Aonde a delirante miragem
Dos olhos de arco-íris e da nebulosa?
Abre-se o sepulcro e ao fundo vê-se o mar
A respiração detém-se e a suspensa turbação
Intumesce as têmporas e nas veias se derrama
Abre os olhos maiores que o espaço que neles cabe
E um grito cicatriza no mórbido vazio
Abre-se o sepulcro e ao fundo vê-se um rebanho perdido na montanha
A pastora com sua capa de vento à ilharga da noite
Conta as pegadas de Deus no espaço
E canta-se a si mesma
Abre-se o sepulcro e ao fundo vê-se um desfile de timbales de gelo
Que brilham sob os raios da tempestade
E passam em silêncio à deriva
Solene cortejo de timbales
Com acesos archotes dentro do corpo
Abre-se o sepulcro e ao fundo vêem-se o outono e o inverno
Um céu de ametista desce vagarosamente
Abre-se o sepulcro e ao fundo vê-se uma enorme ferida
Que se dilata nas profundezas da terra
Com um rumor de verão e primaveras
Abre-se o sepulcro e ao fundo vê-se uma floresta de fadas que se fecundam
Cada árvore termina num pássaro extasiado
E tudo se detém dentro da fechada elipse de seus cantos
Por esses lados deve encontrar-se o ninho das lágrimas
Que rolam pelo céu e atravessam o zodíaco
De signo em signo
Abre-se o sepulcro e ao fundo vê-se a efervescente nebulosa que se apaga e se acende
Um aerólito passa vertiginosamente
Dançam lanternas no vasto cadafalso
Onde as sangrentas cabeças dos astros
Deixam uma auréola que eternamente cresce
Abre-se o sepulcro e sai um soluço de plantas
Há mastros destroçados e redemoinhos de naufrágios
Tangem os sinos de todas as estrelas
Ruge o furacão perseguido através do infinito
Sobre os rios derramados
Abre-se o sepulcro e salta um ramo de flores carregadas de cilícios
Cresce a impenetrável fogueira e um odor de paixão invade o orbe
O sol procura o último recanto onde ocultar-se
E nasce a mágica floresta
Abre-se o sepulcro e no fundo vê-se o mar
Sobe um canto de milhares de barcos que partem
Enquanto um cardume de peixes
Se petrifica lentamente


Vicente Huidobro
Tradução de Luís Pignateli
Imagem: Rafael Pérez Barradas

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