o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sábado, 30 de abril de 2011



ESCOLA


A notícia veio de supetão: iam meter-me na escola. Já me haviam falado nisso, em horas de zanga, mas nunca me convencera de que realizassem a ameaça. A escola, segundo informações dignas de crédito, era um lugar para onde se enviavam as crianças rebeldes. Eu me comportava direito: encolhido e morno, deslizava como sombra. As minhas brincadeiras eram silenciosas. E nem me afoitava a incomodar as pessoas grandes com perguntas. Em consequência, possuía ideias absurdas, apanhadas em ditos ouvidos  na cozinha, na loja, perto dos tabuleiros de gamão. A escola era horrível - e eu não podia negá-la, como negara o inferno. Considerei a resolução de meus pais uma injustiça. Procurei na consciência, desesperado, ato que determinasse a prisão, o exílio entre paredes escuras. Certamente haveria uma tábua para desconjuntar-me os dedos, um homem furioso a bradar-me noções esquivas. Lembrei-me do professor público, austero e cabeludo, arrepiei-me calculando o vigor daqueles braços. Não me defendi, não mostrei as razões que me fervilhavam na cabeça, a mágoa que me inchava o coração. \inútil qualquer resistência.

Trouxeram-me roupa nova de fustão branco. Tentaram calçar-me os borzeguins amarelos: os pés tinham crescido e não houve  meio de reduzi-los. Machucaram-me, comprimiram-me os ossos. As meias rasgavam-se, os borzeguins estavam secos, minguados. Não senti esfoladuras e advertências. As barbas do professor eram imponentes, os músculos deviam ser tremendos. A roupa de fustão branco, engomada pela Rosenda, juntava-se a um gorro de palha. Os fragmentos da carta de ABC, pulverizados, atirados ao quintal, dançavam-me diante dos olhos. "A preguiça é a chave da pobreza. Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém. D, t, d, t." Quem era Terteão? Um homem desconhecido. Iria o professor mandar-me explicar Terteão e a chave? Enorme tristeza por não perceber nenhuma simpatia em redor. Arranjavam impiedosos o sacrifício - e eu me deixava arrastar, mole e resignado, rês infeliz antevendo o matadouro...

Dias depois, vi chegar um rapazinho seguro por dois homens. Resistia, debatia-se, mordia, agarrava-se à porta e urrava, feroz. Entrou aos arrancos, e se conseguia soltar-se, tentava ganhar a calçada. Foi difícil subjugar o bicho brabo, sentá-lo, imobilizá-lo. O garoto caiu num choro largo. Examinei-o com espanto, desprezo, inveja. Não me seria possível espernear, berrar daquele jeito, exibir força, escoicear, utilizar os dentes, cuspir nas pessoas, espumante e selvagem. Tinham-me domado. Na civilização e na fraqueza, ia para onde me impeliam, muito dócil, muito leve, como os pedaços da carta de ABC, triturados, soltos no ar.


Graciliano Ramos, Infância
imagem: Janet & George

3 comentários:

  1. Que bom descobrir esse seu espaço! O Nave do nada que tenho comigo já passou na mão de todos os amigos. Abraços!

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  2. Que bom redescobrir seu hospício moinho dos ventos, redescobrir Graciliano, que excerto garimpaste! -
    E seus textos, Ney... admiro, a construção de cada frase sua lá nos comments do FB, ainda que informalmente, transbordam de excelência literária. Abraços. Igor

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  3. gratos, fred / igor por se arriscarem aqui neste hospício - nosso & de todos que não resistem & enlouquecem - como um bebê prematuro nem sempre saudável... abraços

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