o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

segunda-feira, 25 de abril de 2011

A barca neobarroca



O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora.
Pascal, Pensamentos

Ao Capitão do Fim

A poesia de Paulo Plínio Abreu goza ainda do enclausuramento a que foi lançada. Seu estilo desnorteante promoveu, nas raras e esparsas vezes em que seu texto veio a público, a segmentação endurecida de suas margens. Pelas idiossincrasias sintático-semânticas, o desenvolvimento circular dos temas, as ambiguidades crescentes dos versos: clareza e ilegibilidade, amplitude e aniquilamento, limiar e travessia. Longe de seu destinatário, a obra sobreviveu por conta de sua própria fantasmagoria. O nome Paulo Plínio Abreu suprimiu, com o tempo, o título incerto do único livro que o poeta organizou sem nunca o publicar. Morto aos 38 anos, seu nome perseverou e impôs uma obra contra toda e qualquer redução e apagamento. Através desse nome o imaginário latente do poeta se manifesta ainda hoje. É certo dizer, portanto, que Paulo Plínio Abreu é uma escritura. 

Um nome que, se pronunciado, evoca as exigências literárias mais radicais. Nos longínquos anos 1930, Paulo Plínio Abreu se movimentou em busca dos lugares para onde a maioria dos outros não se dirigiam. Uma esfera mais alta de escritura que se quis desmembrar de um corpo estético sem vigor, o naturalismo representacional, há muito impossibilitado de gerar influências, transformações, metamorfoses. O poeta entende esse processo de eliminação e o ultrapassa. Porém, mais do que inovação, sua poesia é reinvenção. Ela se revigora do barroco explosivo que incendeia. E vai estabelecer uma hermenêutica que se fundamenta numa filosofia particular de ruptura e rebelião, assumindo proporções a um tempo apocalípticas [“Inevitavelmente os cães uivarão dentro da noite/e o vento sacudirá as árvores frias do jardim”] e de esplendor [“Eu subi do fundo do mar como um líquen liberto/para ouvir a sua voz que era imensa”]. Pelo mar revolto e infatigável de uma retórica que se expressa em busca da vastidão, sem dispensar os detalhes e as minúcias, as imagens inversas se sucedem. Espaços fechados e escondidos se desvelam, como um sistema que se reconstitui. 

Um ambiente que se abre a toda passagem e a toda circulação. Que se une e se desmembra. Que é parte e é todo. A “força de um pensar antigo” que o autor propõe e promove, desencadeando um choque na aparente unidade entre mito, símbolo e alegoria. Uma engrenagem, por assim dizer, neobarroca, de uma barca “quase ave” [anjo, mas também livro] que se lança de um porto poético remoto [“De um tempo imemorial eu acompanho as tuas viagens”] para se integrar ao fraseado moderno de Mallarmé, Rilke, Fernando Pessoa, e mesmo ao surrealismo, e daí se propagar – pra frente e pra trás –, traçar rotas, conexões. Chegar mesmo, pela sua vidência, aos transcursos de Nietzsche e Walter Benjamin. Mas tal máquina de desejo acabará por operar, através da “noite/carne/vento/ilhas”, apenas um inevitável encontro com a morte – esse “país estranho” onde misteriosamente se conjugam imagens inconciliáveis como “desolação/naufrágio/amor”. Supondo talvez, por último, um sempre esperado triunfo. A descida vertical que sugere o “retorno” e a “pausa” de Sísifo, que tanto interessou a Camus. Aqui, num mergulho submarinho, mas de igual modo sem fim. Este o triunfo da linguagem, de sua forma transformada e reescrita. Pelo que pressente, oculta e revela. A palavra “anjo à porta de Tobias”. Dentro ou fora da cidade, próximo ou a caminho pela planície ou pelas águas, a mesma viagem sem saída, em que num certo ponto nunca anunciado o poeta/anjo se percebe acorrentado, deslocado, caído. Desterritorializado desde sempre, sem ter como reagir. Sua travessia é “um corredor” longo e fechado. A vitória, vacilante e desproposital. A morte não oferece linha de fuga. 

Há apenas um percurso possível para quem escreve – o mapa da escrita. Assim Paulo Plínio Abreu se lançou além da pequena enseada, da pequena e isolada província, da pequena língua. Seu mapa é o mistério maior. O convite fatal. O eclipse. São estas as alusões que se multiplicam e deixam para trás uma “Tróia incendiada”, num texto que se desfaz e refaz pelo jogo da leitura e desleitura. Mas como pode se dar isto hoje? A única edição da poesia de Paulo Plínio Abreu, feita em 1978, precariamente editada e distribuída, não se conhece mais. Vive seu inferno pré-informática, as desgraças [ou seriam as bênçãos?] do inacessível num mundo sem os meios digitais. O covil dos inéditos. Dos leitores que tendem a ler somente o que todo mundo lê. Essa retrospectiva edição feita por uma não-editora, mas preparada por alguém que conheceu o poeta e foi seu raro e atento leitor, o professor Francisco Paulo Mendes, urge que se reedite por uma editora comercial, para que possa circular em todo o Brasil. Que se gaste com ela uma pequena parte dos milhões da Secretaria de Cultura do Pará e do seu marketing institucional. Nesta edição já tão sem vida no mundo das letras, os “poemas esparsos” em nada divergem ou se excluem dos 21 poemas iniciais, selecionados pelo autor para compor o livro que parcialmente organizava. Convivem com a mesma veemência, apresentam as intercambiáveis modulações de uma mesma escrita, fazendo supor que se constituem originalmente e que se engolfam no mesmo enredo subterrâneo da composição de um livro que parece não ter como perder sua aura. Esse trabalho e esse esforço de reprodução da obra de Paulo Plínio Abreu se estendem até nós, como uma rede invisível lançada em torno de distintas e inesperadas formas de linguagem e das novas tecnologias. Tal edição terá que resolver este e outros impasses. Limpar o mofo e as traças que abalam a saúde desta obra. Tanto mais pelas opiniões e críticas desacertadas, pelas elucubrações e invectivas superficiais e equivocadas. Pela obsedante clausura. 


Ney Ferraz Paiva
imagem: Cesar Calvo
http://poesiaspauloplinioabreu.blogspot.com/

Um comentário:

  1. O livro foi reeditado (vale dizer, reimpresso) pela Editora da Universidade do Pará (Edufpa) em 2009, mas o mofo e as traças continuam impregnando o "novo" livro. Meu texto antecede a esse fato.

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