A barca neobarroca
O silêncio eterno
desses espaços infinitos me apavora.
Pascal,
Pensamentos
Ao
Capitão do Fim
A
poesia de Paulo Plínio Abreu goza ainda do enclausuramento a que foi lançada.
Seu estilo desnorteante promoveu, nas raras e esparsas vezes em que seu texto
veio a público, a segmentação endurecida de suas margens. Pelas idiossincrasias
sintático-semânticas, o desenvolvimento circular dos temas, as ambiguidades
crescentes dos versos: clareza e ilegibilidade, amplitude e
aniquilamento, limiar e travessia. Longe de seu destinatário, a obra sobreviveu por conta de sua
própria fantasmagoria. O nome Paulo Plínio Abreu suprimiu, com o tempo, o
título incerto do único livro que o poeta organizou sem nunca o publicar. Morto aos 38 anos, seu
nome perseverou e impôs uma obra contra toda e qualquer redução e apagamento. Através desse
nome o imaginário latente do poeta se manifesta ainda hoje. É certo dizer, portanto,
que Paulo Plínio Abreu é uma escritura.
Um
nome que, se pronunciado, evoca as exigências literárias mais radicais. Nos
longínquos anos 1930, Paulo Plínio Abreu se movimentou em busca dos lugares
para onde a maioria dos outros não se dirigiam. Uma esfera mais alta de
escritura que se quis desmembrar de um corpo estético sem vigor, o naturalismo
representacional, há muito impossibilitado de gerar influências,
transformações, metamorfoses. O poeta entende esse processo de eliminação e o
ultrapassa. Porém, mais do que inovação, sua poesia é reinvenção. Ela se
revigora do barroco explosivo que incendeia. E vai estabelecer uma hermenêutica
que se fundamenta numa filosofia particular de ruptura e rebelião, assumindo
proporções a um tempo apocalípticas [“Inevitavelmente os cães uivarão dentro da
noite/e o vento sacudirá as árvores frias do jardim”] e de esplendor [“Eu subi
do fundo do mar como um líquen liberto/para ouvir a sua voz que era imensa”].
Pelo mar revolto e infatigável de uma retórica que se expressa em busca da
vastidão, sem dispensar os detalhes e as minúcias, as imagens inversas se
sucedem. Espaços fechados e escondidos se desvelam, como um sistema que se
reconstitui.
Um
ambiente que se abre a toda passagem e a toda circulação. Que se une e se
desmembra. Que é parte e é todo. A “força de um pensar antigo” que o autor
propõe e promove, desencadeando um choque na aparente unidade entre mito,
símbolo e alegoria. Uma engrenagem, por assim dizer, neobarroca, de uma barca
“quase ave” [anjo, mas também livro] que se lança de um porto poético remoto
[“De um tempo imemorial eu acompanho as tuas viagens”] para se integrar ao
fraseado moderno de Mallarmé, Rilke, Fernando Pessoa, e mesmo ao surrealismo, e
daí se propagar – pra frente e pra trás –, traçar rotas, conexões. Chegar
mesmo, pela sua vidência, aos transcursos de Nietzsche e Walter Benjamin. Mas
tal máquina de desejo acabará por operar, através da “noite/carne/vento/ilhas”,
apenas um inevitável encontro com a morte – esse “país estranho” onde
misteriosamente se conjugam imagens inconciliáveis como
“desolação/naufrágio/amor”. Supondo talvez, por último, um sempre esperado
triunfo. A descida vertical que sugere o “retorno” e a “pausa” de Sísifo, que
tanto interessou a Camus. Aqui, num mergulho submarinho, mas de igual modo sem
fim. Este o triunfo da linguagem, de sua forma transformada e reescrita. Pelo
que pressente, oculta e revela. A palavra “anjo à porta de Tobias”. Dentro ou
fora da cidade, próximo ou a caminho pela planície ou pelas águas, a mesma
viagem sem saída, em que num certo ponto nunca anunciado o poeta/anjo se
percebe acorrentado, deslocado, caído. Desterritorializado desde sempre, sem
ter como reagir. Sua travessia é “um corredor” longo e fechado. A vitória,
vacilante e desproposital. A morte não oferece linha de fuga.
Há
apenas um percurso possível para quem escreve – o mapa da escrita. Assim Paulo
Plínio Abreu se lançou além da pequena enseada, da pequena e isolada província,
da pequena língua. Seu mapa é o mistério maior. O convite fatal. O eclipse. São
estas as alusões que se multiplicam e deixam para trás uma “Tróia incendiada”,
num texto que se desfaz e refaz pelo jogo da leitura e desleitura. Mas como
pode se dar isto hoje? A única edição da poesia de Paulo Plínio Abreu, feita em
1978, precariamente editada e distribuída, não se conhece mais. Vive seu
inferno pré-informática, as desgraças [ou seriam as bênçãos?] do inacessível num mundo sem
os meios digitais. O covil dos inéditos. Dos leitores que tendem a ler somente o que todo mundo lê. Essa retrospectiva
edição feita por uma não-editora, mas preparada por alguém que conheceu o poeta
e foi seu raro e atento leitor, o professor Francisco Paulo Mendes, urge que se
reedite por uma editora comercial, para que possa circular em todo o Brasil. Que se gaste com ela uma pequena parte dos milhões da Secretaria de
Cultura do Pará e do seu marketing institucional. Nesta edição já tão sem vida no mundo das letras,
os “poemas esparsos” em nada divergem ou se excluem dos 21 poemas iniciais,
selecionados pelo autor para compor o livro que parcialmente organizava.
Convivem com a mesma veemência, apresentam as intercambiáveis modulações de uma
mesma escrita, fazendo supor que se constituem originalmente e que se engolfam
no mesmo enredo subterrâneo da composição de um livro que parece não ter como
perder sua aura. Esse trabalho e esse esforço de reprodução da obra de Paulo
Plínio Abreu se estendem até nós, como uma rede invisível lançada em torno de
distintas e inesperadas formas de linguagem e das novas tecnologias. Tal edição
terá que resolver este e outros impasses. Limpar o mofo e as traças que abalam
a saúde desta obra. Tanto mais pelas opiniões e críticas desacertadas, pelas
elucubrações e invectivas superficiais e equivocadas. Pela obsedante clausura.
Ney Ferraz Paiva
imagem: Cesar Calvo
http://poesiaspauloplinioabreu.blogspot.com/
O livro foi reeditado (vale dizer, reimpresso) pela Editora da Universidade do Pará (Edufpa) em 2009, mas o mofo e as traças continuam impregnando o "novo" livro. Meu texto antecede a esse fato.
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