o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 11 de maio de 2011



Ernesto Sabato: o delirante morreu enterra-se o estrangeiro


Ney Ferraz Paiva


Está sentado num dos últimos cafés de ar verdadeiramente portenho, com uma camisa azul escura que reforça o seu ar de monge e de anarquista ao mesmo tempo. Sabato é o último dos moicanos da retidão que não nega encarar os dilemas. Ele os vê com os olhos ziguezagueantes atrás dos óculos, num rosto que mescla traços de Chestov e Kierkegaard. E diz: ‘Se o homem é mortal em qualquer parte do mundo, aqui é muito mais mortal’. Tira os óculos e sorri meio de lado, acentuando as linhas do rosto sofrido. Vê-se, então, que é um homem só. O último dos moicanos.Franco Mogni, entrevista Sabato, Revista Che, anos 1970.
Arisco é o destinoesta é a lição de etimologia que se pode arrancar à obra de Ernesto Sabato e a ele mesmoescapar tanto na vida quanto na escrita. Ele que duelou com Borges e sobreviveu, jamais como adulador, a fazer concessões nem fingimentos, ainda que ferido mortalmente por um diálogo de alta voltagem entre rivais. Ele que sempre recambiou a escrita aos lugares de túneis e sombras entre homens feridos, quase sempre abatidos. Mais do que queimar livros há quem mande trucidar homens. Livros valem menos do que sentenças de morte. O grande-cão da morte ronda a América Latina. O Anjo Exterminador e seus incontáveis discípulos cegos. A escrita de Sabato não foi menor que o contexto adverso a que ele resistiu e devemos continuar resistindo. Escrita que incitou um contato intensivo com a população oprimida da Argentina. Com a juventude e as mães dos desaparecidos políticos. Mas escrever é menor que tudo isso, Sabato compreendia, e por isso soube manter-se também como um homem à parte, um outsiderdistante, talvez, ou tímido, com um problema visual a bloqueá-lo cada vez mais num ambiente retrospectivo, silencioso, mas que não paralisou a sua escrita nas reminiscências e autoexílios da emoção em um tempo turvo. Sabato o protagonizou. Ora nas ruas, ora pintando, ora escrevendo. Fez a Argentina falar ao mundo. Uma Argentina eminentemente política. Se nunca ninguém viu o Estado, é talvez porque de fato ele não exista, no entanto, as ditaduras latino-americanas não foram regimes de idealismo transcendental, o que inclusive certos espíritos altivos que caem de quatro pelo poder chegam a considerar. Às ditaduras se juntaram o capitalismo, o tribunal, a igreja, a imprensa. Todo ardil dos farsantes. Sucessivos governos dos Estados Unidos, não menos totalitários e espúrios, sobretudo porque tratavam de executar ações que visavam impor “padrões mais elevados de Estado” como forma de desmobilizar os males do marxismo pela América Latina e alhures. E todos esses vestígios de realismo não poderiam ser simplesmente descartados como se Sabato abrisse mão de apenas um entre tantos temas artísticosum estilo, uma inspiração fugazantes, Sabato teve que captar o momento expressivo da escrita e não sucumbir. O que não é pouco, é certo. Por essa época os escritores latino-americanos foram lançados a essa escolha, mas nem todos perceberam claramente do que se tratava. Foi através de Sabato que, pela primeira vez, muitos se deram conta. Sabato ousou dizer o que se passava à frente; e imaginou o tempo que se viviaisso de fato, não é pouco. E atentou chamar-se constantemente de homem cético. O ceticismo é um efeito que a literatura recolhe de suas entranhas e que se desdobra em vastas operações de escala entre ritmo e sentido. O ceticismo da escrita sem metáforas. De conceito, julgamento e conclusão. Talvez, por isso mesmo, se possa aproximar Sabato de um certo Walter Benjamin. Ambos aliados num mesmo risco de singularidade a que nem todo grande escritor adere. Talvez ao longo do vasto percurso da indiferença muitos fracassem. Mas como não deixar o sofrimento atravessar o vale estreito entre a vida e a escrita? Seguir sem enfrentar os efeitos de desvalorização do homem? Não cumular nenhum recalque? Sabato teve por todas essas razões (e mais algumas) uma trajetória difícil, de embates e combates imprescindíveis para continuar vivendo, gravados em suas feições. E que hoje se faça outro comércio de fronteira entre os governos latino-americanos, os Estados Unidos e a Europa, como se os dois íltimos estivessem em seu próprio território, impondo o que venha a ser o desalentado valor dos termos “democracia”, “liberdade”, “legalidade”, repisando instantaneamente alguns sinais de paródia, algumas variações de rótulos, abertas combinações de incerteza e medo, consignados os erros, evidenciados os equívocos e anunciado o terror, com os quais talvez não se quisesse mais ver negociadas e desistimuladas as possibilidades de variação, diversidade e revezamento da justiça. Sabato e todos os seus leitores talvez tenham, numa certa medida, subestimado que a história é reativa. Que estão impugnados os finais felizes. Que não se pode pretender deter o tempo em seu túneis e tumbas. Mesmo se nessa operação um dos maiores escritores e críticos do século XX esteja envolvido. E que tenha morrido num lugarejo de Buenos Aires, aos 99 anos. Um delirante e extenso ritual de “carpe diem”.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       




Ernesto Sabato faleceu em 30 de abril de 2011, em Santos Lugares, Argentina. Autor dos memoráveis e atualíssimos O Túnel (1948) Sobre Heróis e Tumbas (1961). Como Borges, Sabato não ganhou o prêmio Nobel.



6 comentários:

  1. lindo, belo, encantador, e político, sobretudo isto, político. mais um belíssimo texto deste Ney Ferraz Paiva

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  2. Ney, ainda um ponto. lembro-me do ano passado, em Buenos Aires, os livros do Sábato em preços populares, e eu a comprá-los, e eu a lê-los, e de imediato, a lembrança dos bons amigos, e os livros do Sábato que eu os comprei para os bons amigos. Depois, outros livros dele já ao Brasil. Imenso escritor o Sábato. Fica-se mais sozinho. andréq

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  3. Sábato carregou a vida como bem evidenciou Manuel de Barros em Gramática Expositiva do Chão: "retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada". Considerando que a utopia seja uma importante corrente subterrânea do pensamento moderno, é, portanto , através das visões de um mundo, de um lugar, de um estado melhor que o homem faz esforços positivos. E o escritor de "sobre heróis e tumbas", atravessou o século passado carregando sob os ombros o peso de ser cidadão latino americano, argentino e capaz de perceber o mundo a sua volta e todos os males que povoam esse mundo, seguiu a utopia de tonar o mundo um tantinho melhor: “Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
    leituras não era a beleza das frases, mas a doença" M. B.
    delas
    Belíssimo texto!

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  4. andré, foi exatamente o que senti quando a notícia me sacudiu, sábato está morto. fica-se um bocado mais só e o mundo infinitamente mais estreito e hostil.

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  5. Ney, prazer enorme (re)ler este post.
    Fico com mais um nome a desbravar.
    E seu registro a ele como "prefácio" às leituras que me forem possíveis do autor.

    Lendo você, eu cresço, naquela forma interior de alimentar o que só a gente valoriza. Gosto de "aprender" daqui.

    O abraço.

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  6. katy, grato pela generosidade, pela atenção que você dispensa ao que vou escrevendo. ai das palavras que não suspeitam de nada. as suas suspeitam - e estão à espreita. grande abraço

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