o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

JEAN-JACQUES ROUSSEAU – PRECURSOR DE KAFKA, DE CÉLINE E DE PONGE [1962]

por Gilles Deleuze



            Arriscamo-nos de duas maneiras a ignorar um grande autor. Por exemplo, ao desconhecer sua lógica profunda ou o caráter sistemático de sua obra. (Falamos, então, de suas, “incoerências”, como se elas nos dessem um prazer superior). Ou, de outro modo, ao ignorar sua potência e seu gênio cômicos, de onde a obra retira geralmente o máximo de sua eficácia anticonformista. (Preferimos falar das angústias e do aspecto trágico). Na verdade, não se pode admirar Kafka sem rirmos ao lê-lo. Estas duas regras valem eminentemente para Rousseau.
            Em uma de suas teses mais célebres, Rousseau explica que o homem no estado de natureza é bom, ou pelo menos não é mau. Isso não é uma declaração generosa nem uma manifestação de otimismo; é um manifesto lógico extremamente preciso. Rousseau quer dizer: o homem, tal como se pode supô-lo em um estado de natureza, não pode ser mau, pois as condições objetivas que tornam possíveis a maldade e seu exercício não existem na própria natureza. O estado de natureza é um estado no qual o homem está em relação com as coisas, e não com outros homens (salvo de maneira fugaz). “Os homens, se quisermos, se agrediam ao se encontrarem, mas eles pouco se encontravam. Por toda parte reinava o estado de guerra, e toda a terra estava em paz” (DLa). O estado de natureza não é somente um estado de independência, mas de isolamento. Um dos temas constantes de Rousseau é que a necessidade não é um fator de aproximação: ela não reúne, ao contrário, isola. Por serem moderadas, nossas necessidades no estado de natureza entram necessariamente em uma espécie de equilíbrio com nossos poderes, adquirem uma espécie de auto-suficiência. Mesmo a sexualidade, no estado de natureza, apenas engendra aproximações fugazes ou nos deixa na solidão. (Rousseau tem muito a dizer, e diz muito sobre este ponto, que é como o reverso humorístico de uma teoria profunda.)
            Como os homens poderiam ser maus quando lhes faltam as condições para tanto? As condições que tornam a maldade possível confundem-se com um estado social determinado. Não há maldade desinteressada, embora seja isso o que dizem os próprios malvados e os imbecis. Toda maldade é lucro ou compensação. Não há maldade humana que não se inscreva em relações de opressão, conforme interesses sociais complexos. Rousseau é um desses autores que souberam analisar a relação opressiva e as estruturas sociais que ela supõe. Será preciso esperar Engels para que se relembre e renove este princípio de uma lógica extrema: que a violência e a opressão não formam um fato primeiro, mas supõem um estado civil, situações sociais, determinações econômicas. Se Robinson escravizou Sexta-Feira, não foi por gosto natural, não foi nem mesmo à força; foi com um pequeno capital e meios de produção, que ele salvou das águas, e para submeter Sexta-Feira a tarefas sociais que não se apagaram da memória de Robinson durante o naufrágio.
            A sociedade nos coloca constantemente em situações em que temos interesse em ser malvados. Por vaidade, adoraríamos crer que somos maus naturalmente. Mas, na verdade, é bem pior: nós nos tornamos maus sem saber, sem mesmo nos darmos conta disso. É difícil ser herdeiro de alguém sem desejar inconscientemente sua morte por este ou aquele motivo. “Em tais situações, apesar de nos conduzir um sincero amor pela virtude, mais cedo ou mais tarde, sem que se perceba, fraquejamos, e nos tornamos injustos e maus ao agir, sem deixarmos de ser justos e bons na alma” (DLb). Ora, parece que, por um estranho destino, a bela alma é constantemente empurrada para situações das quais ela não sai sem grande sofrimento. A bela alma usará de sua ternura e sua timidez para extrair das piores situações os elementos que, não obstante, lhe permitirão conservar sua virtude. “Desta oposição contínua entre minha situação e minhas inclinações, nascem pecados enormes, desgraças inauditas, e todas as virtudes, exceto a força, que podem honrar a adversidade” (DLc).  Achar-se em situações impossíveis é o destino da bela alma. Toda a verve de Rousseau vem de ser ele um extraordinário cômico de ocasião. Ora, As Confissões acabam como um livro trágico e alucinado, mas começam como um dos livros mais alegres da literatura. Mesmo os vícios preservam Rousseau da maldade para a qual eles o deveriam arrastar; e Rousseau se esmera na análise desses mecanismos ambivalentes e salutares.
            A bela alma não se contenta com o estado de natureza; ela sonha afetuosamente com as relações humanas. Ora, essas relações sempre se encarnam em situações delicadas. Sabe-se que o sonho apaixonado de Rousseau é reencontrar as figuras de uma Trindade perdida: seja a mulher amada que ama outro, que será como um pai ou irmão mais velho: sejam duas mulheres amadas, uma como uma mãe severa e que castiga, a outra como uma mãe terna que faz renascer. (Rousseau já persegue essa busca apaixonada de duas mães, ou de um duplo nascimento, em um de seus amores de infância.) Mas as situações reais onde esta fantasia se encarna são sempre ambíguas. Elas acabam mal: ou nós nos conduzimos mal ou nos excedemos, ou ambas as alternativas ao mesmo tempo. Rousseau não reconhece seu terno devaneio quando ele se encarna em Teresa e na mãe Teresa, antes mulher ávida e desagradável do que mãe severa. Nem quando Madame de Warens quer que ele desempenhe o papel de irmão mais velho com relação a um novo favorito.
            Rousseau explica com frequência e com alegria que ele tem as ideias lentas e os sentimentos rápidos. Mas as ideais, de formação lenta, emergem subitamente na vida, dão-lhe novas direções, inspiram-lhe estranhas invenções. Nos poetas e nos filósofos, nós devemos apreciar mesmo as manias, as bizarrices que testemunham combinações da ideia e do sentimento. Baseado nisso, Thomas de Quincey criou um método apropriado para nos levar a amar os grandes autores. Em um pequeno livro sobre Kant (“Os últimos dias de Emmanuel Kant”, que Schwob traduziu) (DLd). Quincey descreve o aparelho extremamente complexo que Kant inventou para lhe servir como suporte para meias. O mesmo se pode dizer do traje de armênio de Rousseau quando ele morava em Motiers e amarrava os sapatos nos degraus de entrada de sua casa enquanto conversava com as moças. Há aí verdadeiros modos de vida, são anedotas de “pensador”.
            Como evitar as situações em que nos interessa ser maldosos? Sem dúvida, uma alma forte pode, por um ato de vontade, agir sobre a própria situação e modificá-la. Por exemplo, pode-se renunciar a um direito de herança para não estar na situação de desejar a morte de um pai. Da mesma forma, em A Nova Heloísa, Júlia compromete-se a não se casar com Saint-Preux, mesmo que seu marido venha a morrer: assim “ela troca o interesse que ela tinha em sua perda pelo interesse em conservá-la” (Dle). Mas Rousseau, segundo seu próprio testemunho, não é uma alma forte. Ele ama a virtude mais do que é virtuoso. Salvo em matéria de herança, ele tem imaginação demais para renunciar por antecipação e por vontade. Ele precisa de mecanismos mais sutis para evitar as situações tentadoras ou para delas sair. Ele tudo arrisca, mesmo sua frágil saúde, para preservar suas aspirações virtuosas. Ele próprio explica como a doença de sua bexiga foi um fator essencial em sua grande reforma moral: por medo de não se aguentar em presença do rei, ele prefere renunciar à pensão. A doença o inspira como fonte de humor (Rousseau relata seus problemas de audição com uma verve semelhante à de Céline mais tarde). Mas o humor é o contrário da moral: melhor ser copista de música que pensionista do rei.
            Em Nova Heloísa, Rousseau elabora um método profundo, apto para conjurar o perigo das situações. Uma situação não nos tenta unicamente por ela mesma, mas devido a todo o peso de um passado que nela se encarna. É a procura do passado nas situações presentes, é a repetição do passado que nos inspira nossas paixões e nossas tentações mais violentas. É sempre no passado que amamos, e as paixões são doenças próprias à memória. Para curar Saint-Preux e para trazê-lo ou convertê-lo à virtude, M. de Wolmar emprega um método pelo qual ele conjura os prestígios do passado. Ele força Julie e Saint-Preux a se beijar no mesmo bosque que viu seus primeiros amores: “Julie não mais temia esse asilo, ela acabara se ser profanado” (DLf). É necessário fazer da virtude o interesse presente de Saint-Preux: “não é por Julie de Wolmar que ele está apaixonado, mas por Julie d’Etange; ele não me odeia absolutamente como o que se apossou da pessoa que ele ama, mas como o raptor daquela que ele amou... Ele a ama no tempo passado; eis a chave do enigma: corte-lhe a memória, ele não terá mais amor” (DLg). É na relação com os objetos, com os lugares, por exemplo um bosque, que conhecemos a fuga do tempo e que saberemos, enfim, querer no futuro, em lugar de nos apaixonarmos no passado. Isso é o que Rousseau chamava de “o materialismo do sábio” (DLh) ou cobrir o passado com o presente.
            Os dois polos da obra filosófica de Rousseau são o Emílio e o Contrato social. O mal, na sociedade contemporânea, é que nós não somos mais nem homem privado nem cidadão: o homem tornou-se “homo oeconomicus”, isto é, “burguês”, animado pelo dinheiro. As situações em que há interesse em sermos maus implicam sempre relações de opressão, nas quais o homem entra em relação com homem para obedecer ou comandar, senhor ou escravo. O Emílio é a reconstituição do homem privado, o Contrato social, a do cidadão. A primeira regra pedagógica de Rousseau é esta: nós chegaremos a nos constituir enquanto homens privados quando restaurarmos nossa relação natural com as coisas, com isso preservando-nos das relações artificiais demasiado humanas que, desde a infância, acarretam em nós uma perigosa tendência a comandar. (E é a mesma tendência que nos faz escravo e que nos faz tirano.) “Ao exercer o direito de serem obedecidas, as crianças saem do estado de natureza quase ao nascer” (Dli). A verdadeira correção pedagógica consiste em subordinar a relação dos homens à relação do homem com as coisas. O gosto das coisas é uma constante na obra de Rousseau (os exercícios de Francis Ponge têm algo de rousseauniano). Daí a famosa regra de Emílio, regra que requer apenas  vigor: jamais trazer as coisas para a criança, mas levar a criança até as coisas.
            O homem privado é aquele que, devido à sua relação com as coisas, conjurou a situação infantil que lhe confere o interesse em ser mau. Mas o cidadão é aquele que entra em relações com os homens, onde ele tem exatamente interesse em ser virtuoso. Instaurar uma situação objetiva e atual em que a justiça e o interesse se reconciliem, parece ser, segundo Rousseau, a tarefa efetivamente política. E a virtude retoma aqui seu sentido mais profundo, que remete à determinação pública do cidadão. O Contrato social é, com certeza, um dos grandes livros da filosofia política. Um aniversário de Rousseau é a ocasião certa de ler ou de reler o Contrato social. Nele, o cidadão aprende qual é a mistificação da separação dos poderes; como a República define-se pela existência de um único poder, o legislativo. A análise do conceito de lei, tal como aparecia em Rousseau, dominará por muito tempo a reflexão filosófica e a domina ainda.
. . .

Tradução de Hélio Rebello Cardoso Júnior


Toxic Boy , Jee Young Lee





Arts, nº 872, 6-12 junho, 1962, p. 3 (Por ocasião do  250º aniversário do nascimento de Rousseau). Em 1959-1960, Deleuze, assistente na Sorbonne, consagrou um ano de curso à filosofia política de Rousseau do qual existe um resumo datilografado editado pelo Centro de Documentação Universitária da Sorbonne.
(DLa) Essai sur l’origine des langues, IX, in Oeuvres complètes, vol. V, Paris, Gallimard, coll. “Bibliothèque de la Pléiade”, 1995, p. 396.
(DLb) Les Confessions, II, in Oeuvres complètes, vol. I, Paris, Gallimard, coll.“Bibliothèque de la Pléiade”, 1959, p. 56.
(DLc) Les Confessions, VII, ibid., p. 277.
(DLd) Texto reeditado em volume: T. de Quincey, Les derniers jours d’Emmanuel Kant, Toulouse, Ombres, 1985.
(DLe) La Nouvelle Heloïse, terceira parte, carta XX, in Oeuvres complètes, vol. II, Paris, Gallimard, col. “Bibliothèque de la Pléiade”, 1961, p. 1558 n.
(DLf) La Nouvelle Heloïse, quarta parte, carta XII, ibid., p. 496.
(DLg) La Nouvelle Heloïse, quarta parte, carta XIV, ibid., p. 509
(DLh)  Les Confessions, IX, ibid., p. 409.
(DLi) La Nouvelle Heloïse, quinta parte, carta III, ibid., p. 571.

domingo, 17 de julho de 2016

A Máquina de Escrever


Mãe, se eu morrer de um repentino mal,
vende meus bens a bem dos meus credores:
a fantasia de festivas cores
que usei no derradeiro Carnaval.

Vende esse rádio que ganhei de prêmio
por um concurso num jornal do povo,
e aquele terno novo, ou quase novo,
com poucas manchas de café boêmio.

Vende também meus óculos antigos
que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes
para enxergar os corações amigos.

Vende, além das gravatas, do chapéu,
meus sapatos rangentes. Sem ruído
é mais provável que eu alcance o Céu
e logre penetrar despercebido.

Vende meu dente de ouro. O Paraíso
requer apenas a expressão do olhar.
Já não precisarei do meu sorriso
para um outro sorriso me enganar.

Vende meus olhos a um brechó qualquer
que os guarde numa loja poeirenta,
reluzindo na sombra pardacenta,
refletindo um semblante de mulher.

Vende tudo, ao findar a minha sorte,
libertando minha alma pensativa
para ninguém chorar a minha morte
sem realmente desejar que eu viva.

Pode vender meu próprio leito e roupa
para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa
esta caduca máquina em que escrevo.

Mas poupa a minha amiga de horas mortas,
de teclas bambas, tique-taque incerto.
De ano em ano, manda-a ao conserto
e unta de azeite as suas peças tortas.

Vende todas as grandes pequenezas
que eram meu humílimo tesouro,
mas não! ainda que ofereçam ouro,
não venda o meu filtro de tristezas!

Quanta vez esta máquina afugenta
meus fantasmas da dúvida e do mal,
ela que é minha rude ferramenta,
o meu doce instrumento musical.

Bate rangendo, numa espécie de asma,
mas cada vez que bate é um grão de trigo.
Quando eu morrer, quem a levar consigo
há de levar consigo o meu fantasma.

Pois será para ela uma tortura
sentir nas bambas teclas solitárias
um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura.

Deixa-a morrer também quando eu morrer;
deixa-a calar numa quietude extrema,
à espera do meu último poema
que as palavras não dão para fazer.

Conserva-a, minha mãe, no velho lar,
conservando os meus íntimos instantes,
e, nas noites de lua, não te espantes
quando as teclas baterem devagar.





Giuseppe Ghiaroni
Petros Koublis

quinta-feira, 30 de junho de 2016

A GRANDE ESCAVAÇÃO EM KAFKA


(rosnar, escavar o chão, nitrir, convulsionar-se) para escapar ao ignóbil.
Gilles Deleuze

Instalei a construção e ela parece bem-sucedida.
Franz Kafka


Como entrar na obra de Kafka? Perguntam Deleuze/Guattari, já sem a perplexidade intrincada dos primeiros críticos. Levou tempo, mas agora sabe-se bem que Franz Kafka pode ser nomeado um grande escritor. Sem creditar nada na conta das injustiças casuais, nem dos acontecimentos isolados. Não há na sua escrita nenhum ensejo de compensação do cronista, nem mesmo nos seus diários. Em Kafka escrever deixou de ser pessoal. Se houve esse jogo na literatura, ele a partir dali demonstrou tratar-se de um jogo levado ao exagero. Mas não apenas um exagero literário. Erigir mais um edifício no estreito e concorrido centro da literatura, que progressivamente se esgueirava entre as cosmovisões vanguardistas e modernas. Ele nem chegou a cogitar. Seu projeto de escrita voltou-se para o desabrigado núcleo baldio, arrastado para fora dos muros das reconhecidas significações. E na sua última fase Kafka expõe e comenta a enorme escavação a que se lançou desde o início. Em “A Construção”, 1923, aquilo que pretendeu erigir vai muito rapidamente se afastando de parecer “bem-sucedido”. E há cada vez menos possibilidade de que o nosso mundo tenha sido criado por um criador que quer o nosso bem. Em geral, é um tempo de rupturas e transições, em que a aspiração maior parece ser a Passagem, a Travessia, mas Kafka torna “visível apenas um buraco”, cujas trilhas e direções não levam a parte alguma. Abaixo da superfície, não se está construindo os fundamentos de alguma coisa surpreendente. Quando muito, a estrutura de uma toca ou uma armadilha, o que não requer chefes responsáveis pela construção nem contratantes proeminentes. O canteiro de obras não atrai visitantes. Visível a todos está a intrigante questão, num grande letreiro: "e o que haverá no fim se já houver um fim?" O que dá ao empreendimento uma dimensão assustadora e dramática. Até há os que vem e farejam a entrada – procuram, gesticulam, investigam, com o “focinho lúbrico”. Era de se supor, e Kafka o pressentiu, como Proust, com Rilke, ou seja, a alinha de frente da literatura europeia até os anos 1920: que a caçada pelo “sujeito” continuaria feroz. Pouco importa se “Ele” está de volta a sua casa, naturalmente tragado pela terra. Há os que não perdem o faro pela memória nem pelas íntimas recordações. “Ele” desgarrou-se, mas não está a salvo. É ainda uma atração, um grande negócio. Há os que não observam que a passagem está interrompida. Que ali sequer há passagem, tão pouco saída. O buraco é uma espiral de deslizamento e caos, uma ruína. Infinita extensão de silêncio. Fosse o Castelo, não reconheceriam os muros. E mesmo no quarto de Gregor Samsa, sobre a cama, não perceberiam a máquina. Quanto que um inseto pode vir a ser uma draga ou um guindaste. Desatento de todos os pormenores que a escrita de Kafka suscita, o focinho pregado na escavação, o visitante supõe que o complexo, depois de terminado, se tornará lugar de concentração. O buraco pedrento. Tudo em Kafka está obstruído. Entonação, assobio, gesto. Corpo recolhido, comedido, enrodilhado. Ainda o cerco ao “sujeito”. Admira-se a logística e discute-se como o empregado medíocre de uma companhia de seguros mudou de ramo com considerável êxito. Todos ainda muito aturdidos pelos ventos frios da Montanha em Thomas Mann. Sob a Montanha o “sujeito” encalacrava-se em seu túnel. Kafka, ao contrário, não carregava o gênio como traje. A metamorfose não é a versatilidade de um corpo que se troca em outro.  É tanto mais o buraco e menos, bem menos a clareira. Um fosso bem-instalado: rasteja-se para chegar ao ponto indiscernível do emparedamento – para dentro e para fora o desastre.






Ney Ferraz Paiva
Imagem: Kafka por Ernesto Sábato  

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Mais uma vez homenageando o poeta Max Martins, neste mês em que se comemora o seu nascimento, resolvi editar e fazer essa postagem no issuu, com base em um projeto envolvendo o site Cultura Pará, do ano de 2014. Deixo o texto de apresentação e o link para a publicação.

Não deixando de informar que a Universidade Federal do Pará - UFPA, está gradativamente relançando a obra de Max Martins, livro à livro. Neste mês de junho foram lançados mais três livros. Atualmente tem para aquisição os seguintes livros: "O estranho"; "O risco subscrito"; Caminho de Marahu; "Para ter onde ir" e "Colmando a lacuna". www.facebook.com/ed.ufpa/?fref=ts

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APRESENTAÇÃO
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Em fevereiro de 2014, quando o site Cultura Pará comemorava seus 17 anos de atividades em prol da arte e da cultura, promovendo artistas paraenses de diversos segmentos e mantendo uma agenda artística por todos esses anos, resolvemos fazer um sorteio de livros, para que as pessoas compartilhassem poemas do poeta paraense Max Martins, que estariam publicados em sua página no facebook. Chamei para compor uma curadoria para a seleção de poemas, a escritora e poeta Élida Lima e Marcia Huber, amiga do poeta, tradutora e grande admiradora das artes literárias em geral, e que mora em Munique/ALE, desde os anos 1990. A ideia inicial seria selecionar 15 poemas, mas como se tratava da obra de Max, não tivemos condições de nos limitar a apenas 15, chegamos aos 35, achando que ainda seriam poucos pelos grandes poemas que ficaram de fora da seleção.

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Resolvi então, agora em junho de 2016, mês em que se comemora seus 90 anos de nascimento, publicar aqui no issuu estes poemas editados em formato de livro para mais uma vez homenagear o grande poeta Max Martins.
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Vasco Cavalcante, Belém, junho, 2016

segunda-feira, 27 de junho de 2016

 UM MUNDO SOLITÁRIO COMO FRANZ KAFKA



A 3 de junho de 1924, Franz Kafka morre no sanatório de Kierling, arredores de Viena. Aquele que morre este ano está livre do próximo, cito Shakespeare. Mas o mundo entrou de tal forma em Kafka que ainda não se libertou da sua cronologia. Kafka nasce em Praga a 3 de julho de 1883. Por volta dos vinte anos começa a descrever a atmosfera tenebrosa do século que principia. E a teia inconsútil que se põe a tecer ainda detém a todos.

Apaixonado por Espinoza, pelas teorias de Darwin, pelo pensamento de Nietzsche e pela arte de Van Gogh, o tipo de interlocução que Kafka estabelece em Descrição de uma luta (1904), com o ar talmúdico que o acompanhará daí por diante, leva particularmente em conta que a cada tentativa, a cada investida contra o inimigo, se rastreia o humano como uma presa. E o cão que a irá segurar parece disputar com outro cão o direito ao ataque. Todos estão à mercê. Arma-se o bote espectral, do qual ninguém escapa. O mal está sempre por acontecer.

Com efeito, nos oito contos que irão compor Contemplação, publicados na revista Hyperion (Munique, 1908), nota-se uma crescente variação em torno de um desviar e perecer. O animal ronda, avista-se seu rastro, tenta-se escapar, mas não há nada que se possa fazer. Hemingway e Faulkner retomarão Melville a partir dessa perspectiva. Joyce e Beckett tratarão, por sua vez, de chicotear o escuro vazio para arrancar daí um sentido selvagem para o humano – e dar um nó a mais na correia kafkiana.

Direções e deslocamentos tão diversos quanto contraditórios e incompatíveis surgem, se excluem, se ajustam e se interpenetram a partir das sinalizações de Kafka. Escrito em 1914 e publicado em 1925, O processo é a erupção de um acontecimento estético que marcará definitivamente a literatura de uma brutalidade de tal forma arcaica e vital, definindo como padrão artístico o declínio da verdade como forma de asseverar um fato.

Refutada a aparência da retórica idealista como modelo espiritual, uma vez confrontada pela perspectiva do desviar e perecer kafkiana, esta se torna a ocorrência que irá orientar a escrita desde então e perpassar até os dias que correm. Com efeito, O processo, O castelo ou O desaparecido vão condensar um tipo de escrita que, de imediato, o que dela escapa tomba no abismo temporal.

Com ela se abre (sem que Kafka tenha se ajustado a um modelo e objetivamente nada tenha a ver com isso) uma tendência de difusão mundial, progressiva e inexorável, apesar da rigidez das fronteiras, por causa das duas Grandes Guerras, de uma escrita que atravessa pelos desvãos das principais vanguardas artísticas europeias dos anos dez e vinte (incluído aí o cubismo tcheco) e, posteriormente, desgarrando-se do próprio modernismo – quando o que cada um vai propondo e o que de cada um resulta vai se amainando à exaustão.

Kafka, como Benjamin, não se resigna às maravilhas da modernidade  reproduzidas e generalizadas como se o modelo modernista estivesse isento de perecer. Em A Metamorfose, escrito em 1912 e publicado em 1915, o entrecho reproduz o apartamento localizado na Niklasstrasse, que Kafka compartilhava com os pais. Nesse cenário urbano, familiar e normalizado, o protagonista Gregor Samsa não desperta com uma flor em sua mão, vindo do Paraíso. Os nexos que trás consigo confirmam apenas o mundo tenebroso e hostil no qual está desperto.

Membro de uma família judia, instalada na Bohemia depois da Guerra dos Trinta Anos, Kafka remeterá seus envios ao mundo, a um só tempo desventurado e novo, a partir do antiquíssimo ventre da morte. E não tratará de fazer previsão às gerações futuras. Como o futuro, ele vagará invisível, inconveniente e intruso, mas não será apagado. Ainda que sua metamorfose resulte apenas na ruína, barbárie, devoração. Gregor Samsa não terá vindo de tão longe. E Kafka, por sua vez, tentando nos despistar de uma solidão da qual não pode se libertar, no Brasil e pelo mundo, troca de pele mais uma vez.





Ney Ferraz Paiva
Imagem: ney ferraz paiva, "kafka está desperto", colagem, 2016

quinta-feira, 23 de junho de 2016

• M A X • M A R T I N S • 

























Vasco Cavalcante

Poema publicado na antologia "Impossível não te ofertar - poemas para Max", produzida pela Fundação Cultural do Pará, lançada na Feira Pan-Amazônica do Livro, e que foi relançado no dia 20/06, dia do aniversário do poeta, na Casa da Linguagem.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

O OLHAR DE MAX E AS CINZAS



Seria de certa forma redundante dizer que a obra de Max Martins, pelo menos em um dado momento, influenciou a minha, já que não conheço poeta paraense de minha geração ou depois que não tenha sofrido, repito, em algum momento, esta influência. Então prefiro contar aqui uma historieta que envolve um poema meu e participação vital de Max Martins. Digo vital porque do resultado desta situação dependia a vida ou a morte de um livro. Pouco antes de lançar meu primeiro livro, este passou por uma prova de fogo. Estava carregando os originais para ir para gráfica, quando encontrei com Max, na Casa da Linguagem, da qual era o diretor na época. Ele pediu para ler um poema e dei-lhe, aleatoriamente, do maço que carregava, o poema Dezembro 92, dedicado ao meu irmão que falecera. Ele pegou, leu e ficou em silêncio por, aproximadamente, um minuto, para mim um longo e interminável minuto, durante o qual ele olhava, alternadamente, para mim e para o poema, para mim e para o poema, para mim e para o poema, e durante o que eu pensava: dependendo do que ele disser este livro vai para a gráfica ou vai para casa. Ao final deste instante de eternidade ele sentenciou, “este poema tem um ritmo extraordinário, estranho, singular, diferente”. Alívio. O livro, então, foi pra gráfica.




Dezembro, 92
A Aluizio Tadeu

Entre o labirinto de estrelas
e a merda sob elas
ouço
                 o baque surdo
a baqueta de osso, o tambor

O toque imbatível de Cronos

A mão sabotadora rubricando a cin
zas um Não, um Z, um Ω
nas pálpebras de meu irmão







Antônio Moura, Dez, 1996.
Ney Ferraz Paiva


PARA MAX MARTINS




etéreo
eterno
rio éter

pocket-poema
hibernal

poeter
adormec ido
gota a dor
nada . tudo
a mortecido
a marahu
(rio que te vestiu)

o baque
medra o casco e
segue miúda

a canoa carcomida
do arrozal        ao (uni ver) sal
do pó ao

pó-homem
po-women
power
Pound
Poeira

o caboclo aporta no estrangeiro
vai-se além do


NÃO
ES
TAR
A
QUI
:
lugarejo de encantaria


o mito é o não mais tocá-lo com as mãos
palavra apunh
alada
























Harley Dolzane
Rogerio Uchoa


segunda-feira, 20 de junho de 2016

ENCONTRADOS EM SÃO PAULO ORIGINAIS DE MAX MARTINS



Max Martins deve ter guardado alguns poemas datilografados de Caminho de Marahu durante uma bebedeira em 1982. Os poemas ficaram esquecidos todos esses anos numa pasta de couro. O artista que a usava deve ter pedido ao poeta para guardar os poemas um pouco antes daquele ponto ápice quando os bêbados descem de uma vez ao abismo. Pode ter sido no Bar do Parque, 3x4 ou num dos botecos da Condor, arredores da UFPA. Uma coisa é certa: estavam acompanhados da mulher mais bela da cidade. Ela permaneceria tomada pela poesia durante toda noite como pelas labaredas do inferno. Dias depois o artista viaja para a Alemanha. Trinta e cinco anos se passam, já de volta ao Brasil, radicado em São Paulo, num daqueles instantes em que todas as coisas emergem das sombras, ele se depara com a velha pasta de couro. Pra quê? Soube logo em seguida: os poemas ferviam ali dentro. Não a vida acabada, presa no passado, mas os modos de progressão e resistência da poesia. De toda forma, Max Martins acabaria incluindo esses poemas em Caminho de Marahu, publicado em 1983. E distinguiria extraordinariamente aquele tempo e aquela cidade a que estava ligado indelevelmente. Aquele sistema nervoso – e suas fuliginosas “palavras/ larvas de nada”.










Ney Ferraz Paiva

quarta-feira, 8 de junho de 2016

max e minha pessoa


● minha pessoa adora jaguares ●
● olhando a quebra do rio passando a mão ●
● sobre a cabeça de max enquanto ele mastiga ●

● cranios e mãos cruas de macaco ●
● max adora cranios e mãos cruas de macaco ●
● ele ri ele ronrona ele se deita e rola e ri ●

● como gosta de cranios e mãos cruas ●
● de macaco max o belo jaguar de minha ●
● pessoa passando a mão em sua cabeça furta ●

● cor sua imensa cabeça q mastiga cranios ●
● max agora dorme max agora sonha max deixa ●
● correr a baba da mais pura felicidade ●

● como se tivesse caçado na floresta ●
● max sabe q caçou sabe q esses cranios ●
● q todas essas mãos de macaco cruas ele caçou ●

● entre as arvores entre as pedras da floresta ●
● agora mesmo minha pessoa sabe q max bebe ●
● agua na lagoa entre as arvores da floresta ●

● sentindo o medo q ele provoca o silencio ●
● daqui a pouco ele saira da lagoa pra dormir ●
● cheio de cranios e mãos cruas de macaco ●

● se deitara sonhando q minha pessoa passa ●
● a mão em sua cabeça enquanto ele sonha ●
● com uma lagoa e cranios e mãos de macaco ●

● mas minha pessoa não se engana nem pode ●
● porq sabe q minha pessoa é apenas uma parte ●
● do sonho de max depois de comer cranios ●

● de comer mãos de macacos depois de beber ●
● agua na lagoa cheia do silencio feito por max ●
● como minha pessoa a lagoa e os macacos ●

*




Alberto Lins Caldas
Imagem: ney ferraz paiva, “max o belo jaguar”, colagem, 40 x 30cm, 2016

quinta-feira, 26 de maio de 2016

PARA TORCER O PESCOÇO DA PALAVRA





O poeta Max Martins, 69 anos, não acredita na linguagem cotidiana: ela não serve mais, pois está em agonia. Sua sina é um morrer contínuo, e só os poetas podem salvá-la deste destino. Para isso, o poeta deve mudar e renovar seu trabalho, buscando cada vez mais melhorar o seu "ofício".

Ele declarou isso numa entrevista concedida em 1994, e que até hoje permanecia inédita. Perguntado sobre se concordava com a posição que lhe colocavam, de "maior poeta vivo do Pará", preferiu deixar ao critério de cada leitor. Não lhe interessam honrarias, mas o prazer de se defrontar com seus desafios estéticos. E isso desde jovem, quando fez de suas próprias crises criativas um caminho em direção à renovação.

Se O Estranho (1952), seu primeiro livro, representou a ruptura com o parnasianismo dos primeiros poemas, ao adotar um verso livre e discursivo, Anti-Retrato (1960) já mostra o poeta a caminho do concretismo, na composição espacial das "palavras-pássaros" na página como geração de significados, o que seria desenvolvido mais profundamente nos livros posteriores. A partir daí, sua obra se consolida em dois temas centrais: o da reflexão do próprio ato de escrita e o do amor sensual. Este acompanhado de um movimento metafórico: a natureza é sexualizada em imagens densas, e o próprio sexo é "naturalizado" na maré de signos de sua poesia.

Nos últimos tempos, vê-se uma grande influência da tradição oriental, talvez fruto de uma busca da serenidade, advinda com o transcorrer de décadas de lida poética. Em seu último livro, Para Ter Onde Ir (1992), essa tendência chega ao ápice, com a utilização do I-Ching, tal como relatado pelo poeta na entrevista.

Atualmente, Max Martins é Diretor da Casa da Linguagem. Ele conta que isso gera uma situação engraçada, pois todo mundo sabe onde encontrá-lo, e o que mais ele recebe são aspirantes a poetas, lhe trazendo escritos na maioria bastante incipientes. Por mais que critique com rigor os trabalhos, o poeta sempre aconselha os que o procuram a persistirem lendo e buscando a "amizade poética universal".

Seriam apenas quinze minutos de entrevista. Max Martins estava em seu local de trabalho, e é um homem muito ocupado. Acabou virando uma conversa de quase uma hora, onde o entusiasmo pelos assuntos da poesia fez o entrevistado esquecer um pouco do relógio. Entre prosaicas interrupções para tratar de assuntos burocráticos, o poeta respondeu o que se perguntou e o que não se perguntou, de forma eloquente e até emocionada.
A seguir, os principais trechos do depoimento:


"PARA TER ONDE IR" (1992)

Os poemas deste livro nasceram de uma experiência nova. Veja, não existe hoje uma vanguarda mundial na poesia, portanto cabe a cada autor, individualmente, se renovar. Os artistas têm medo de se repetir. Têm que ter esse medo. Então, estes poemas nasceram de uma deliberação minha de jogar o I-Ching, o Livro das Mutações. A cada mês, eu fazia um lance, e a partir do hexagrama sorteado, fazia um poema. Esse poema não era sobre os comentários do hexagrama: eu não estava interessado em descrevê-lo. O que eu queria era apenas deixar que a magia do livro e de suas imagens me desse um clima para escrever. Era um jogo, pois o próprio I-Ching o é. Ele não é um livro de adivinhações, e sim algo que lida com a intuição do jogador. Para o próprio título do livro eu também fiz um lance.

Nesse processo houve várias coincidências. Para a capa do livro, o diagramador, que é o Age de Carvalho, poeta e artista gráfico, substituiu as letras "e" do título por hexagramas que se assemelhavam a essa letra, apenas pelo visual. Ora, o hexagrama que está colocado na palavra "ter" é o que significa "modéstia", o que é um contraste. E o que está na palavra "onde" é relativo a "viagem". Isso não foi intencional, pois ele não conhecia antecipadamente o significado dos hexagramas.

Outra coincidência foi quando eu joguei um lance para fazer um último poema, terminando o livro. E saiu justamente um hexagrama chamado "Após a Conclusão". O resultado foi tão emocionante para mim que eu não me preocupei em escrever com o clima daquele hexagrama: aproveitei simplesmente o seu próprio título, e usei nele versos, frases e palavras tiradas de antigos livros meus, como numa colagem.

A CABANA DE MARAHU

Quando falo em ter aonde ir, que é preciso ir, quero dizer que essa viagem não é exterior, é interior. Um lar, uma casa, é o lugar em que a gente fica, confortável. A minha cabana em Marahu é muito pequena, um pouco maior que esta sala. É toda cheia de enfeites nas paredes, fotos, poemas, e eu me sinto bem lá. Eu a preparei para isso, para um conforto interior e exterior. Mas não é o lugar de se ficar, é o de ter de onde se ir. Ir para essa viagem, que é interior, a partir da paz e do sossego que eu encontro. Eu digo que a minha cabana é o ventre da minha mãe.

SIMPLICIDADE E INSPIRAÇÃO

A simplicidade tem a ver com o clima do I-Ching, que é simples; mas isso é aparente, já que tudo ali é símbolo. A simplicidade nasce da própria complexidade do ser humano. Em arte, a simplicidade é apenas a da primeira olhada que se dá no texto, pois há na verdade um trabalho, uma complicação. Desde Baudelaire, Verlaine etc. essa simplicidade é intelectual, é cerebral. Não tem essa coisa de "inspiração", de espontaneísmo. A poesia é um ofício mesmo, implica uma técnica, uma intuição, uma influência de toda a tradição de arte poética.

NOVO LIVRO

Não está em vista no momento. Bem, eu tenho algumas coisas escritas, numa pasta. Nessas últimas férias, que passei em Marahu, eu a levei, para começar a organizar e rever textos para um novo livro. Eu tinha paz, tranquilidade e silêncio para fazer isso, mas fui com um poema na cabeça, e passei o tempo todo trabalhando nesse poema, nem abri a pasta. O Cejup (editora de Max) vem insistindo, pois há dois anos eu prometi esse novo livro, mas ele não pode sair ainda.

ORIENTALISMO

Muitas imagens recorrentes em minha poesia (o tigre, as pedras, o jardim, o lago, a água, o ar, etc.) vêm da influência do oriente. Eu li muito sobre o zen-budismo. Não tenho religião (e nem acho que o zen seja uma religião, mas sim uma filosofia de vida), mas em matéria de misticismo, em perguntar ao desconhecido, para a tranquilidade do ser humano, o zen foi o que mais me impressionou.

Eu sou tigre no horóscopo chinês, e tenho inclusive em minha cabana uma pintura coreana muito antiga, com a imagem desse animal, que eu acho de grande beleza, e que utilizei como tema várias vezes.

EROTISMO

Nessas imagens da natureza, fluindo e refluindo, há um erotismo, não apenas temático, mas na própria estrutura do poema. As palavras se amam, se beijam, se trocam, transam: as palavras fazem amor. Palavra com palavra, imagem com imagem. Como diz Roland Barthes, a gente escreve, afinal de contas, por um desejo. Pode ser a ânsia, o desejo de comunicar, de encontrar quem ouça, encontrar o outro. É esse o prazer do texto. Com as palavras, a visualidade da página, e também o som, pois o poema é antes de tudo dito, e não escrito; isso o poeta nunca deve esquecer.

PRAZER E ANGÚSTIA

Onde há prazer, há angústia. É o preço do prazer, o outro lado. Tudo é dual, tudo se relaciona. A dor não existe sozinha, mas sim porque existe o prazer. Quanto se deseja muito o prazer, vem em seguida a queda da cama. Existe um provérbio árabe que diz: quem dorme no chão, não cai da cama. Aí entra também o budismo: diminua o seu ego, para diminuir o desejo e o sofrimento. Quando a gente está triste, ou muito alegre, a gente canta. Poesia é o cantar, é o lirismo, é deixar o "eu" falar.

AUTOR E LEITOR

O poema só existe quando encontra o seu leitor, que pode às vezes ser mais poético que o autor do poema. O poema é um leque de sugestões várias, de coisas sutis, dúbias, incertas, misteriosas. Cada leitor tem o seu próprio prazer, colhe um significado diferente, diferente até do que o poeta, ao escrever, pretendia dizer. A poesia não é o que o autor quis dizer, é o que o próprio poema "quis dizer". Ele adquire uma autonomia. É aquilo de que o Umberto Eco fala, a obra aberta, que quanto mais se fecha, mais pode ser aberta.

Mais mistério se vê quanto mais se cogita sobre o mistério.

A partir do meu segundo livro Anti-Retrato (1960), os meus poemas têm como motivo principal o próprio poema, o que é uma tradição da modernidade.
Quando o poeta, através do poema, comove o leitor, chega ao seu coração, então alcançou-se o ideal, que é a universalidade da comunicação. Porque a linguagem comum, de todo dia, já não resolve. Eu desconfio das palavras, e prefiro, como defende o Octávio Paz, torcer o pescoço da palavra.

REGIONALISMO

O regionalismo está na minha obra. Eu não sei como, mas tem que estar. Eu nasci e vivo aqui, sou fruto desta cultura, desta paisagem, deste clima, então tem que estar aí. Mas é uma relação sutil. Eu já disse antes: não escrevo sobre a Amazônia, a Amazônia é que me escreve.

TRANSCENDÊNCIA

À primeira leitura, posso parecer um poeta formal, erudito ou frio. Mas não sou: a minha ânsia é unir, num fluir, vida e poesia. Todo poema é autobiográfico, porque você está falando de si. Ele reflete o seu ser, o que você recebeu como experiência, das coisas mínimas aos grandes momentos da vida. A vida se compõe de fragmentos unidos, fluindo, se amando, se misturando, tudo à procura de uma unidade, à procura de uma outra parte de si, do próprio "eu". Isso é místico. É o "religar".

Religião, religare. É a procura do resto, do outro, do outro no verso.

A compreensão disso acaba com o dualismo, preto/branco, dor/prazer, belo/ feio. Mas para isso é preciso uma transcendência. Eu a procuro nas palavras, nas imagens, nisto que está dentro de mim, no meu sangue. Então, embora os poemas não sejam biográficos em si, eles têm a minha vida. As frases são rios de sangue, e os versos, artérias que correm.

AUTODIDATISMO

Eu não estudei nada institucionalizado, não fiz Universidade, graças a Deus. No início porque não pude, não fui levado a isso. Se eu tivesse feito Universidade, talvez me tornasse um bom professor, mas talvez também não me tornasse poeta. Acho, numa visão pessoal, que a Universidade prejudicaria a minha criação como poeta. Minha poesia não está desligada do erudito, mas não é uma coisa acadêmica.

"A FALA ENTRE PARÊNTESIS" (1982)

Esse livro eu fiz com o Age de Carvalho. O trabalho de cada um, você só pode identificar pela caligrafia (ele folheia a edição original, que tem a reprodução do texto manuscrito). Ora era um que começava um poema, ou um poema-fragmento, ora era o outro. São quinze poemas, que representam as quinze pedras de um jardim zen-budista, um jardim de areia, o que é uma relação com a tradição poética oriental, pois é uma renga (poema feito em conjunto, tradicional no Japão medieval). Quando pensamos em fazer o último poema (que se tornou o primeiro), ele já estava pronto: nós tiramos versos dos outros quatorze, para que fosse uma caixa de ressonância.

É um livro bonito. Me agrada o aspecto visual do livro, gosto muito de pintura. Eu tenho um diário, que já escrevo há alguns anos, e que é fruto da minha necessidade de visualidade. É todo com colagens. Muitas vezes, eu escrevo nele a esmo, para depois tirar poemas.

PAPEL DO POETA

O poeta tem que ser humilde diante do mistério que se enfrenta ao manchar uma página. Tem que ter a vontade de que aquilo que ele está escrevendo seja a melhor coisa do mundo. Tem que ter respeito por si mesmo e pelo seu trabalho. É a obrigação dele, obrigação social.

O papel dele não é escrever sobre os problemas históricos ou sobre o momento político-ideológico, mas sim, fazer o seu ofício bem feito. Se ele faz bem o poema, ele está participando da evolução da língua de seu povo. Impedindo-a de morrer. A fala cotidiana é um morrer, ela perdura por muito tempo, se desgasta, e por isso tem que se renovar, e quem vai renovar é o poeta. Essa é a obrigação dele para com a sua comunidade.


Entrevista concedida a Marcus Pessoa e André Ichihara, Casa da Linguagem, Belém, 1992
Texto: Marcus Pessoa, André Ichihara e Andréa Ponte Souza
Imagem: ney ferraz paiva, "transfixar max", colagem, 40 x 30cm, 2016