o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

segunda-feira, 27 de junho de 2016

 UM MUNDO SOLITÁRIO COMO FRANZ KAFKA



A 3 de junho de 1924, Franz Kafka morre no sanatório de Kierling, arredores de Viena. Aquele que morre este ano está livre do próximo, cito Shakespeare. Mas o mundo entrou de tal forma em Kafka que ainda não se libertou da sua cronologia. Kafka nasce em Praga a 3 de julho de 1883. Por volta dos vinte anos começa a descrever a atmosfera tenebrosa do século que principia. E a teia inconsútil que se põe a tecer ainda detém a todos.

Apaixonado por Espinoza, pelas teorias de Darwin, pelo pensamento de Nietzsche e pela arte de Van Gogh, o tipo de interlocução que Kafka estabelece em Descrição de uma luta (1904), com o ar talmúdico que o acompanhará daí por diante, leva particularmente em conta que a cada tentativa, a cada investida contra o inimigo, se rastreia o humano como uma presa. E o cão que a irá segurar parece disputar com outro cão o direito ao ataque. Todos estão à mercê. Arma-se o bote espectral, do qual ninguém escapa. O mal está sempre por acontecer.

Com efeito, nos oito contos que irão compor Contemplação, publicados na revista Hyperion (Munique, 1908), nota-se uma crescente variação em torno de um desviar e perecer. O animal ronda, avista-se seu rastro, tenta-se escapar, mas não há nada que se possa fazer. Hemingway e Faulkner retomarão Melville a partir dessa perspectiva. Joyce e Beckett tratarão, por sua vez, de chicotear o escuro vazio para arrancar daí um sentido selvagem para o humano – e dar um nó a mais na correia kafkiana.

Direções e deslocamentos tão diversos quanto contraditórios e incompatíveis surgem, se excluem, se ajustam e se interpenetram a partir das sinalizações de Kafka. Escrito em 1914 e publicado em 1925, O processo é a erupção de um acontecimento estético que marcará definitivamente a literatura de uma brutalidade de tal forma arcaica e vital, definindo como padrão artístico o declínio da verdade como forma de asseverar um fato.

Refutada a aparência da retórica idealista como modelo espiritual, uma vez confrontada pela perspectiva do desviar e perecer kafkiana, esta se torna a ocorrência que irá orientar a escrita desde então e perpassar até os dias que correm. Com efeito, O processo, O castelo ou O desaparecido vão condensar um tipo de escrita que, de imediato, o que dela escapa tomba no abismo temporal.

Com ela se abre (sem que Kafka tenha se ajustado a um modelo e objetivamente nada tenha a ver com isso) uma tendência de difusão mundial, progressiva e inexorável, apesar da rigidez das fronteiras, por causa das duas Grandes Guerras, de uma escrita que atravessa pelos desvãos das principais vanguardas artísticas europeias dos anos dez e vinte (incluído aí o cubismo tcheco) e, posteriormente, desgarrando-se do próprio modernismo – quando o que cada um vai propondo e o que de cada um resulta vai se amainando à exaustão.

Kafka, como Benjamin, não se resigna às maravilhas da modernidade  reproduzidas e generalizadas como se o modelo modernista estivesse isento de perecer. Em A Metamorfose, escrito em 1912 e publicado em 1915, o entrecho reproduz o apartamento localizado na Niklasstrasse, que Kafka compartilhava com os pais. Nesse cenário urbano, familiar e normalizado, o protagonista Gregor Samsa não desperta com uma flor em sua mão, vindo do Paraíso. Os nexos que trás consigo confirmam apenas o mundo tenebroso e hostil no qual está desperto.

Membro de uma família judia, instalada na Bohemia depois da Guerra dos Trinta Anos, Kafka remeterá seus envios ao mundo, a um só tempo desventurado e novo, a partir do antiquíssimo ventre da morte. E não tratará de fazer previsão às gerações futuras. Como o futuro, ele vagará invisível, inconveniente e intruso, mas não será apagado. Ainda que sua metamorfose resulte apenas na ruína, barbárie, devoração. Gregor Samsa não terá vindo de tão longe. E Kafka, por sua vez, tentando nos despistar de uma solidão da qual não pode se libertar, no Brasil e pelo mundo, troca de pele mais uma vez.





Ney Ferraz Paiva
Imagem: ney ferraz paiva, "kafka está desperto", colagem, 2016

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