o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 26 de maio de 2016

PARA TORCER O PESCOÇO DA PALAVRA





O poeta Max Martins, 69 anos, não acredita na linguagem cotidiana: ela não serve mais, pois está em agonia. Sua sina é um morrer contínuo, e só os poetas podem salvá-la deste destino. Para isso, o poeta deve mudar e renovar seu trabalho, buscando cada vez mais melhorar o seu "ofício".

Ele declarou isso numa entrevista concedida em 1994, e que até hoje permanecia inédita. Perguntado sobre se concordava com a posição que lhe colocavam, de "maior poeta vivo do Pará", preferiu deixar ao critério de cada leitor. Não lhe interessam honrarias, mas o prazer de se defrontar com seus desafios estéticos. E isso desde jovem, quando fez de suas próprias crises criativas um caminho em direção à renovação.

Se O Estranho (1952), seu primeiro livro, representou a ruptura com o parnasianismo dos primeiros poemas, ao adotar um verso livre e discursivo, Anti-Retrato (1960) já mostra o poeta a caminho do concretismo, na composição espacial das "palavras-pássaros" na página como geração de significados, o que seria desenvolvido mais profundamente nos livros posteriores. A partir daí, sua obra se consolida em dois temas centrais: o da reflexão do próprio ato de escrita e o do amor sensual. Este acompanhado de um movimento metafórico: a natureza é sexualizada em imagens densas, e o próprio sexo é "naturalizado" na maré de signos de sua poesia.

Nos últimos tempos, vê-se uma grande influência da tradição oriental, talvez fruto de uma busca da serenidade, advinda com o transcorrer de décadas de lida poética. Em seu último livro, Para Ter Onde Ir (1992), essa tendência chega ao ápice, com a utilização do I-Ching, tal como relatado pelo poeta na entrevista.

Atualmente, Max Martins é Diretor da Casa da Linguagem. Ele conta que isso gera uma situação engraçada, pois todo mundo sabe onde encontrá-lo, e o que mais ele recebe são aspirantes a poetas, lhe trazendo escritos na maioria bastante incipientes. Por mais que critique com rigor os trabalhos, o poeta sempre aconselha os que o procuram a persistirem lendo e buscando a "amizade poética universal".

Seriam apenas quinze minutos de entrevista. Max Martins estava em seu local de trabalho, e é um homem muito ocupado. Acabou virando uma conversa de quase uma hora, onde o entusiasmo pelos assuntos da poesia fez o entrevistado esquecer um pouco do relógio. Entre prosaicas interrupções para tratar de assuntos burocráticos, o poeta respondeu o que se perguntou e o que não se perguntou, de forma eloquente e até emocionada.
A seguir, os principais trechos do depoimento:


"PARA TER ONDE IR" (1992)

Os poemas deste livro nasceram de uma experiência nova. Veja, não existe hoje uma vanguarda mundial na poesia, portanto cabe a cada autor, individualmente, se renovar. Os artistas têm medo de se repetir. Têm que ter esse medo. Então, estes poemas nasceram de uma deliberação minha de jogar o I-Ching, o Livro das Mutações. A cada mês, eu fazia um lance, e a partir do hexagrama sorteado, fazia um poema. Esse poema não era sobre os comentários do hexagrama: eu não estava interessado em descrevê-lo. O que eu queria era apenas deixar que a magia do livro e de suas imagens me desse um clima para escrever. Era um jogo, pois o próprio I-Ching o é. Ele não é um livro de adivinhações, e sim algo que lida com a intuição do jogador. Para o próprio título do livro eu também fiz um lance.

Nesse processo houve várias coincidências. Para a capa do livro, o diagramador, que é o Age de Carvalho, poeta e artista gráfico, substituiu as letras "e" do título por hexagramas que se assemelhavam a essa letra, apenas pelo visual. Ora, o hexagrama que está colocado na palavra "ter" é o que significa "modéstia", o que é um contraste. E o que está na palavra "onde" é relativo a "viagem". Isso não foi intencional, pois ele não conhecia antecipadamente o significado dos hexagramas.

Outra coincidência foi quando eu joguei um lance para fazer um último poema, terminando o livro. E saiu justamente um hexagrama chamado "Após a Conclusão". O resultado foi tão emocionante para mim que eu não me preocupei em escrever com o clima daquele hexagrama: aproveitei simplesmente o seu próprio título, e usei nele versos, frases e palavras tiradas de antigos livros meus, como numa colagem.

A CABANA DE MARAHU

Quando falo em ter aonde ir, que é preciso ir, quero dizer que essa viagem não é exterior, é interior. Um lar, uma casa, é o lugar em que a gente fica, confortável. A minha cabana em Marahu é muito pequena, um pouco maior que esta sala. É toda cheia de enfeites nas paredes, fotos, poemas, e eu me sinto bem lá. Eu a preparei para isso, para um conforto interior e exterior. Mas não é o lugar de se ficar, é o de ter de onde se ir. Ir para essa viagem, que é interior, a partir da paz e do sossego que eu encontro. Eu digo que a minha cabana é o ventre da minha mãe.

SIMPLICIDADE E INSPIRAÇÃO

A simplicidade tem a ver com o clima do I-Ching, que é simples; mas isso é aparente, já que tudo ali é símbolo. A simplicidade nasce da própria complexidade do ser humano. Em arte, a simplicidade é apenas a da primeira olhada que se dá no texto, pois há na verdade um trabalho, uma complicação. Desde Baudelaire, Verlaine etc. essa simplicidade é intelectual, é cerebral. Não tem essa coisa de "inspiração", de espontaneísmo. A poesia é um ofício mesmo, implica uma técnica, uma intuição, uma influência de toda a tradição de arte poética.

NOVO LIVRO

Não está em vista no momento. Bem, eu tenho algumas coisas escritas, numa pasta. Nessas últimas férias, que passei em Marahu, eu a levei, para começar a organizar e rever textos para um novo livro. Eu tinha paz, tranquilidade e silêncio para fazer isso, mas fui com um poema na cabeça, e passei o tempo todo trabalhando nesse poema, nem abri a pasta. O Cejup (editora de Max) vem insistindo, pois há dois anos eu prometi esse novo livro, mas ele não pode sair ainda.

ORIENTALISMO

Muitas imagens recorrentes em minha poesia (o tigre, as pedras, o jardim, o lago, a água, o ar, etc.) vêm da influência do oriente. Eu li muito sobre o zen-budismo. Não tenho religião (e nem acho que o zen seja uma religião, mas sim uma filosofia de vida), mas em matéria de misticismo, em perguntar ao desconhecido, para a tranquilidade do ser humano, o zen foi o que mais me impressionou.

Eu sou tigre no horóscopo chinês, e tenho inclusive em minha cabana uma pintura coreana muito antiga, com a imagem desse animal, que eu acho de grande beleza, e que utilizei como tema várias vezes.

EROTISMO

Nessas imagens da natureza, fluindo e refluindo, há um erotismo, não apenas temático, mas na própria estrutura do poema. As palavras se amam, se beijam, se trocam, transam: as palavras fazem amor. Palavra com palavra, imagem com imagem. Como diz Roland Barthes, a gente escreve, afinal de contas, por um desejo. Pode ser a ânsia, o desejo de comunicar, de encontrar quem ouça, encontrar o outro. É esse o prazer do texto. Com as palavras, a visualidade da página, e também o som, pois o poema é antes de tudo dito, e não escrito; isso o poeta nunca deve esquecer.

PRAZER E ANGÚSTIA

Onde há prazer, há angústia. É o preço do prazer, o outro lado. Tudo é dual, tudo se relaciona. A dor não existe sozinha, mas sim porque existe o prazer. Quanto se deseja muito o prazer, vem em seguida a queda da cama. Existe um provérbio árabe que diz: quem dorme no chão, não cai da cama. Aí entra também o budismo: diminua o seu ego, para diminuir o desejo e o sofrimento. Quando a gente está triste, ou muito alegre, a gente canta. Poesia é o cantar, é o lirismo, é deixar o "eu" falar.

AUTOR E LEITOR

O poema só existe quando encontra o seu leitor, que pode às vezes ser mais poético que o autor do poema. O poema é um leque de sugestões várias, de coisas sutis, dúbias, incertas, misteriosas. Cada leitor tem o seu próprio prazer, colhe um significado diferente, diferente até do que o poeta, ao escrever, pretendia dizer. A poesia não é o que o autor quis dizer, é o que o próprio poema "quis dizer". Ele adquire uma autonomia. É aquilo de que o Umberto Eco fala, a obra aberta, que quanto mais se fecha, mais pode ser aberta.

Mais mistério se vê quanto mais se cogita sobre o mistério.

A partir do meu segundo livro Anti-Retrato (1960), os meus poemas têm como motivo principal o próprio poema, o que é uma tradição da modernidade.
Quando o poeta, através do poema, comove o leitor, chega ao seu coração, então alcançou-se o ideal, que é a universalidade da comunicação. Porque a linguagem comum, de todo dia, já não resolve. Eu desconfio das palavras, e prefiro, como defende o Octávio Paz, torcer o pescoço da palavra.

REGIONALISMO

O regionalismo está na minha obra. Eu não sei como, mas tem que estar. Eu nasci e vivo aqui, sou fruto desta cultura, desta paisagem, deste clima, então tem que estar aí. Mas é uma relação sutil. Eu já disse antes: não escrevo sobre a Amazônia, a Amazônia é que me escreve.

TRANSCENDÊNCIA

À primeira leitura, posso parecer um poeta formal, erudito ou frio. Mas não sou: a minha ânsia é unir, num fluir, vida e poesia. Todo poema é autobiográfico, porque você está falando de si. Ele reflete o seu ser, o que você recebeu como experiência, das coisas mínimas aos grandes momentos da vida. A vida se compõe de fragmentos unidos, fluindo, se amando, se misturando, tudo à procura de uma unidade, à procura de uma outra parte de si, do próprio "eu". Isso é místico. É o "religar".

Religião, religare. É a procura do resto, do outro, do outro no verso.

A compreensão disso acaba com o dualismo, preto/branco, dor/prazer, belo/ feio. Mas para isso é preciso uma transcendência. Eu a procuro nas palavras, nas imagens, nisto que está dentro de mim, no meu sangue. Então, embora os poemas não sejam biográficos em si, eles têm a minha vida. As frases são rios de sangue, e os versos, artérias que correm.

AUTODIDATISMO

Eu não estudei nada institucionalizado, não fiz Universidade, graças a Deus. No início porque não pude, não fui levado a isso. Se eu tivesse feito Universidade, talvez me tornasse um bom professor, mas talvez também não me tornasse poeta. Acho, numa visão pessoal, que a Universidade prejudicaria a minha criação como poeta. Minha poesia não está desligada do erudito, mas não é uma coisa acadêmica.

"A FALA ENTRE PARÊNTESIS" (1982)

Esse livro eu fiz com o Age de Carvalho. O trabalho de cada um, você só pode identificar pela caligrafia (ele folheia a edição original, que tem a reprodução do texto manuscrito). Ora era um que começava um poema, ou um poema-fragmento, ora era o outro. São quinze poemas, que representam as quinze pedras de um jardim zen-budista, um jardim de areia, o que é uma relação com a tradição poética oriental, pois é uma renga (poema feito em conjunto, tradicional no Japão medieval). Quando pensamos em fazer o último poema (que se tornou o primeiro), ele já estava pronto: nós tiramos versos dos outros quatorze, para que fosse uma caixa de ressonância.

É um livro bonito. Me agrada o aspecto visual do livro, gosto muito de pintura. Eu tenho um diário, que já escrevo há alguns anos, e que é fruto da minha necessidade de visualidade. É todo com colagens. Muitas vezes, eu escrevo nele a esmo, para depois tirar poemas.

PAPEL DO POETA

O poeta tem que ser humilde diante do mistério que se enfrenta ao manchar uma página. Tem que ter a vontade de que aquilo que ele está escrevendo seja a melhor coisa do mundo. Tem que ter respeito por si mesmo e pelo seu trabalho. É a obrigação dele, obrigação social.

O papel dele não é escrever sobre os problemas históricos ou sobre o momento político-ideológico, mas sim, fazer o seu ofício bem feito. Se ele faz bem o poema, ele está participando da evolução da língua de seu povo. Impedindo-a de morrer. A fala cotidiana é um morrer, ela perdura por muito tempo, se desgasta, e por isso tem que se renovar, e quem vai renovar é o poeta. Essa é a obrigação dele para com a sua comunidade.


Entrevista concedida a Marcus Pessoa e André Ichihara, Casa da Linguagem, Belém, 1992
Texto: Marcus Pessoa, André Ichihara e Andréa Ponte Souza
Imagem: ney ferraz paiva, "transfixar max", colagem, 40 x 30cm, 2016

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