o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 15 de maio de 2016

 A CRUZ DE FERRO


Em abril de 1945 em Stargard, Mecklenburg, um comerciante de papéis decidiu matar a tiros sua mulher, sua filha de quatorze anos e a si próprio. Através de clientes tinha ouvido falar do casamento e do suicídio de Hitler.
Oficial da reserva na Primeira Guerra, ainda tinha um revólver e dez balas de munição.
Quando sua mulher saiu da cozinha com o jantar ele estava de pé junto à mesa limpando a arma. Trazia a Cruz de Ferro na lapela, como em dias de festa.
O Führer tinha escolhido o suicídio e ele manteria a lealdade, explicou respondendo à sua pergunta. Se ela, sua mulher, estaria disposta a segui-lo também nisso. Com relação à filha, não tinha dúvidas de que ela preferia uma morte honrada pela mão do pai a uma vida indigna.
Chamou-a. Ela não o decepcionou.
Sem esperar pela resposta da mulher, ordenou às duas que vestissem seus casacos, já que ele, para evitar serem vistos, iria leva-las a um local apropriado, fora da cidade. Elas obedeceram. Carregou então o revólver, deixou que a filha o ajudasse a vestir o casaco, trancou a casa e jogou a chave pela abertura da caixa postal.
Chovia quando saíram da cidade pelas ruas escuras, o homem na frente, sem voltar-se para as mulheres, que o seguiam à distância. Ele ouvia os passos delas no asfalto.
Depois de deixar a estrada e tomar o atalho para o faial, virou-se sobre os ombros e pediu pressa. No vento noturno que soprava cada vez mais no descampado, os passos delas não fazia ruído sobre o chão molhado de chuva.
Gritou para que elas fossem na frente. Seguindo-as, não sabia: tinha medo que elas pudessem fugir, ou desejava fugir ele mesmo. Não demorou muito e elas estavam bem na frente. Assim que não podia mais vê-las, ficou claro que tinha muito medo de simplesmente fugir, e desejava muito que elas o fizessem. Parou e deu uma urinada. Carregava o revólver no bolso da calça, sentia-o frio pelo tecido fino. Andou mais depressa a fim de alcançar as mulheres; a arma batia a cada passo em sua perna. Diminuiu o passo. Mas, quando pôs a mão no bolso para jogar a arma fora, viu sua mulher e a filha. Estavam no meio do caminho à sua espera.
Queria fazê-lo no bosque, mas o perigo de os tiros serem ouvidos aqui não era maior.
Quando tomou o revólver na mão e o destravou a mulher enroscou-se, soluçante, em seu pescoço. Ela era pesada; teve que esforçar-se para desvencilhar-se dela. Dirigiu-se à filha, ela o olhava fixamente, apontou o revólver para suas têmporas e disparou de olhos fechados. Tinha esperança de que o tiro não saísse, mas ele o ouviu e viu a menina cambalear e cair.
A mulher tremia e gritava. Tinha de segurá-la. Somente do terceiro tiro ela silenciou.
Estava só.
Não havia ninguém que lhe ordenasse apontar a boca do revólver para as próprias têmporas. Os mortos não o viam, ninguém o via.
Guardou o revólver e curvou-se sobre sua filha. Em seguida começou a correr.
Voltou pelo caminho até a estrada e percorreu um trecho dela, mas não em direção à cidade, foi para oeste. Sentou-se então na beira da estrada, as costas apoiadas numa árvore, e com a respiração pesada pensou em sua situação. Achou que não era desesperadora.
Tinha apenas que continuar sempre para oeste e evitar os próximos vilarejos. Em algum lugar poderia submergir, numa cidade grande de preferência, com cognome, um fugitivo desconhecido, mediano e trabalhador.
Jogou o revólver no acostamento e levantou-se.
Ao caminhar ocorreu-lhe que tinha esquecido de jogar fora a Cruz de Ferro. Ele o fez. 





Heiner Müller
Tradução: Christine Roehrig e Marcos Renaux

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