o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

segunda-feira, 13 de junho de 2011


O “TEATRO ÍNTIMO DO EU” POR FERNANDO PESSOA



É raro um país e uma língua adquirirem quatro grandes poetas em um dia. Foi precisamente o que ocorreu em Lisboa a 8 de março de 1914.


Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu naquela capital provinciana e algo lúgubre a 13 de junho de 1888. O Exército, o serviço público e a música figuravam no passado da família. Já em Janeiro de 1894, após a morte do pai e do irmão caçula, Pessoa começou a inventar “heterônimos” – “personas” imaginárias para povoar um “teatro íntimo do eu”. O garoto de seis anos trocava cartas com um correspondente fictício. Sua mãe casou-se novamente, e a família mudou-se para Durban, África do Sul. No Natal veio à luz um certo Alexander Search, invenção para quem Pessoa criou uma biografia, traçou o horóscopo e em cujo nome calmamente translúcido escreveu poesia e prosa em língua inglesa. Seguir-se-iam outros 72 personagens em busca de um autor. De início, eles tendiam a escrever na esteira de Shelley e Keats, de \calyle, Tennyson e Browning.


Em 1905, o jovem empresário de “eus” retornou a Lisboa. Logo abandonou a universidade e tornou-se autodidata. No restante de sua vida, Pessoa escolheu uma renda módica, em empregos de meio período. Serviu como correspondente de comércio estrangeiro, traduzindo e compondo cartas em inglês e francês. De vez em quando, traduzia uma antologia literária. Essa existência marginal e autônoma vincula Pessoa a outros mestres da modernidade urbana, como James Joyce, Italo Svevo (Trieste e Lisboa partilham uma vívida fantasmagoria) e, de certo modo, Franz Kafka.


Até 1909, a poesia imputada a Alexander Search permanece em inglês, á exceção de seis sonetos portugueses. O anos de 1912 marcou uma reviravolta. Pessoa envolveu-se nos incontáveis círculos, conventículos e publicações efêmeras e de cunho lítero-estético-político-moral que cresceram da crescente crise social portuguesa (77 mil habitantes emigraram só naquele ano). A vida íntima de Pessoa – a alternância entre o mundo dos cafés lisboetas e o isolamento radical – encontrou expressão num secreto “Livro do Desassossego” e no primeiro rascunho de um longo poema inglês. A fissão em incandescência quadripartida teve lugar naquele dia de março de 1914. Até hoje ele permanece um dos fenômenos mais notáveis da literatura. Ao rememorar o fato (numa carta de 1935) Pessoa fala de um “êxtase cuja a natureza não conseguirei definir (...) aparecera em mim o meu mestre”.


Alberto Caeiro escreveu 30 e tantos poemas a toque de caixa. A estes se seguiram , “imediatamente e totalmente”, seis poemas de Fernando Pessoa ele só. Mas Caeiro não saltara à existência sozinho. Viera acompanhado de dois discípulos principais. Um era Ricardo Reis; o outro: “De repente, em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem. Criei, então uma ‘coterie’ inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa”.


Pseudônimos, “noms de plume”, anonimato e toda forma de máscara retórica são tão velhos quantos a literatura. Os motivos são muitos. Eles se estendem desde a escrita política clandestina à pornografia, desde o ofuscamento brincalhão a sérios distúrbios de personalidade. O “companheiro secreto” (íntimo de Conrad), o “duplo” prestativo ou ameaçador, é um motivo recorrente – veja-se Dostoiévski, Robert Louis Stevenson e Borges. Assim também é o tema – antigo como a rapsódia homérica – da poesia “tomada sob ditado”, sob assalto literal e imediato das Musas, ou seja, das vozes divinas ou dos finados.


Nesse sentido de “inspiração”, de “ser escrito em vez de escrever”, as técnicas de escrita automática antecedem em muito o surrealismo. Muitos dos grandes escritores voltaram-se abertamente contra si próprios, contra a sua obra ou seu estilo anteriores, a ponto de buscar sua destruição. A multiplicidade, o ego convertido em legião, pode ser festiva, como em Whitman, ou sombriamente auto-irônica, como em Kierkegaard.


Há disfarces e paródias que a erudição mais minuciosa jamais penetrou. Simenon era incapaz de recordar quantos romances criara ou sob quais antigos e múltiplos pseudônimos. Em idade avançada, o pintor De Chirico prorrompia em museus e galerias de arte declarando falsos e os prestigiosos quadros que havia muito lhe eram atribuídos. Agiu assim porque passou a antipatizá-los ou porque não podia mais identificar sua própria mão? Como proclamou Rimbaud, em sua renovação da modernidade, “Eu é um outro”.



George Steiner

     
O Livro do Desassossego por Bernardo Soares, (semi-)heterônimo de Fernando Pessoa, pode ser descarregado clicando no seguinte endereço: 



O narrador principal (mas não exclusivo) das centenas de fragmentos que compõem este livro é o "semi-heterônimo" Bernardo Soares. Ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, ele escreve sem encadeamento narrativo claro, sem fatos propriamente ditos e sem uma noção de tempo definida. Ainda assim, foi nesta obra que Fernando Pessoa mais se aproximou do gênero romance. Os temas não deixam de ser adequados a um diário íntimo: a elucidação de estados psíquicos, a descrição das coisas, através dos efeitos que elas exercem sobre a mente, reflexões e devaneios sobre a paixão, a moral, o conhecimento. "Dono do mundo em mim, como de terras que não posso trazer comigo", escreve o narrador. Seu tom é sempre o de uma intimidade que não encontrará nunca o ponto de repouso.

 «Assim como lavamos o corpo devemos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa – não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.»

sexta-feira, 10 de junho de 2011



MORTE NO EXÍLIO – A FUGA MALOGRADA DE WALTER BENJAMIN PARA A ESPANHA: "Vou fugir amanhã através dos Pirineus"

por Ingrid Scheurmann


Port-Bou, a pequena e idílica cidade portuária no sopé dos Pirineus, tem algo de transitório que é de todo impercebível, mas que o observador atento pode deduzir. Situada na divisa entre a Espanha e a França, a cidade foi marcada em toda a sua existência pela travessia da fronteira, seja por parte de contrabandistas, seja por parte de fugitivos, e é dominada pela estrada de ferro, que se entalha com vigor no vale estreito, mostrando do que vivem e como às vezes as pessoas aqui. Isto é, do comércio com a fronteira, com aqueles que queriam atravessar o lugar depressa, sem grande estardalhaço, pagando para tanto o preço exigido.
Só neste século a fronteira da Espanha foi atravessada ilegalmente com freqüência, tanto numa como na outra direção, por pessoas cuja existência se encontrava ameaçada: na época da guerra civil, pelos republicanos espanhóis numa direção; pelos intelectuais antagonistas do nazismo, em sentido contrário. Um tanto fechado e pouco tocado pelo torvelinho dos balneários próximos, o lugarejo exala o espírito do século XX e de suas catástrofes, porém revela pouco daquilo que sabe. Não há em parte alguma um memorial público, nenhuma apresentação do passado em museus, nenhum guia turístico obsequioso, praticamente ninguém que ainda se lembre bem da época da II Guerra Mundial, ou que esteja disposto a admiti-lo em público. Esta cidade carrega sua história sem revelá-la, e vive com a impressão dominante de que tudo passa, nada fica. Os ruídos contínuos inconfundíveis da estrada de ferro marcam o compasso.
É justamente neste lugar que a lembrança, em forma de um memorial em homenagem ao filósofo e crítico judeu Walter Benjamin, deve agora deter o tempo. Deve ser erigido um marco de pedra para um homem que, como todos os outros, também queria simplesmente passar; para quem Port-Bou era um nome ligado à salvação depois da fronteira, uma meta a ser atingida, uma estação na fuga para a América, imprescindível para continuar vivendo – nada mais que isso e, ao mesmo tempo, tudo isso.
Benjamin está ligado a Port-Bou somente através de sua morte. Com ela, por assim dizer, deteve o ritmo da cidade, exigiu mais atenção do que usualmente cabe ao passante e gravou seu nome na memória da comunidade mais longamente do que de costume acontece. E com isso a cidade integrou em sua própria história a história do filósofo alemão, cujos pensamentos compreensivelmente são mal conhecidos aqui. A respeito da fuga de Benjamin e de sua morte em Port-Bou, existem alguns relatos autênticos, inúmeras lendas e suposições. Muitos mistérios continuam existindo até hoje e opõem-se à avaliação e à ocupação científica. Um dos maiores pensadores e críticos do século XX está envolvido, em sua morte, com o lugarejo de trânsito e esconde-se de olhares curiosos demais, permitindo tão somente aproximações.
Sabendo-se que em 1940 Benjamin viveu pelo menos vinte horas em Port-Bou, que ele se encontra sepultado ali há cinquenta anos, mesmo assim a gente se sente decididamente desamparada na procura de provas autênticas. Sua sepultura não é mais identificável. O nicho nº 563, no qual esteve enterrado durante cinco anos, já pertence a uma outra família, não sendo mais o lugar apropriado para se recordar do alemão morto. O hotel, chamado Fonda Francia em 1940, também não fornece nada de palpável ao pesquisador. Rebatizado com o nome de Hotel Internacional, depois da mudança de proprietário, já faz tempo que não é mais hotel, havendo somente um pequeno restaurante de média categoria. E o proprietário atual não vê mais com bons olhos que se vá aos andares superiores para visitar o lugar onde Benjamin se suicidou – o que é compreensível. Pessoas que poderiam contar alguma coisa a respeito do filósofo, como o antigo proprietário do hotel, senhor Suñer, ou o médico que o examinou, doutor Vila, estão mortos há muito; outras, não se recordam. Restaram as lendas e os fãs de Benjamin, que de vez em quando passam por lá para conhecer o lugar e procurar sinais esclarecedores.
Durante muito tempo, o lugar não quis revelar o ponto obscuro que envolve sua história. Hoje, somente alguns poucos ainda se lembram dos acontecimentos das décadas de trinta e quarenta, mas a disposição para um trabalho de recordação aumentou. O memorial de Walter Benjamin, que a República Federal da Alemanha só passou a considerar nos anos oitenta, é visto agora também pela comunidade espanhola como sendo possível e desejável.
Diante da fascinação pela obra literária de Benjamin e pela independência de seu pensamento entre os extremos de rejeição que lhe eram possíveis, com o sionismo de um lado e o marxismo de outro, diante da fascinação também pelo vigor e pela legitimidade de seus pensamentos numa época que já se distanciou cinquenta anos de sua época, a questão relativa à sua fuga e à situação desesperadora no fim de sua vida surge exatamente neste lugar como uma constelação única, imprevisível, que lhe roubou toda e qualquer perspectiva. A tragédia de Benjamin: “Um dia antes, ele teria passado livremente, um dia mais tarde, teria sabido em Marselha que na ocasião não era possível passar a Espanha. A catástrofe só podia acontecer naquele dia.” (Hannah Arendt, Benjamin, Brecht, 1971)
Por mais correta que seja a conclusão de Hannah Arendt, ainda continua sem resposta a pergunta: quando foi exatamente esse dia? O livro espanhol de óbitos anota como data de morte de Benjamin 26 de setembro de 1940, às 22 horas, e as referências em inúmeras biografias baseiam-se nessas indicações. Esta interpretação, no entanto, não é de maneira alguma a única; frequentemente são apresentadas datas entre 25 e 27 de setembro como indicações supostamente seguras.
De onde vem essa falta de clareza? Pura e simplesmente falta de informação – na pior das hipóteses polêmica acadêmica ou o resultado de disparates – eis o que continua se ligando ao último dia de vida de Benjamin. Nem mesmo um livro de óbitos anotado cuidadosamente esclarece definitivamente a questão e, de mais a mais, ele precisa tolerar um ceticismo profundo, visto que o suicídio do filósofo foi anunciado como hemorragia cerebral e, assim, falsificado, sejam quais forem as ponderações que levaram a isso. Será que outras indicações também não são falsificações, feitas com motivos semelhantes?
Não coincide com a ata oficial, entre outras, a recordação de Lisa Fittko, a guia de Benjamin na travessia dos Pirineus, que na verdade não pode relatar nada a respeito de sua morte, mas que em compensação consegue se lembrar com grande precisão do transcurso e data da fuga. Segundo ela, Benjamin começou a fuga no dia 25 de setembro e chegou a Port-Bou no dia 26. (Lisa Fittko, Meu caminho através dos Pirineus, Memórias de 1940 e 1941, 1980) É bem provável que Benjamin tenha posto termo á sua vida na mesma noite. Mas como se explicam então as informações de sua companheira de viagem Henny Gurland, que ainda o encontrou vivo na manhã após a chegada à Espanha e a quem ele contou da overdose de morfina que tinha tomado? Ou a carta de Grete Freund, que estava hospedada no Hotel Internacional na mesma época e contou que ele morreu mais ou menos 24 horas depois de chegar lá? Ou as insinuações na literatura secundária, que às vezes fazem alusões vagas à data da morte – como que para negar uma última segurança? A fixação definidora da data de morte em 26 de setembro, que se tornou regra, com efeito compensa apenas aparentemente a falta de conhecimentos definitivos a respeito das circunstâncias exatas.
A morte de Benjamin na Espanha foi antecedida de uma fuga dramática, foi antecedida de anos de exílio na França. Ele emigrou já em 1933 da Alemanha nazista para Paris, que era para ele a capital recôndita da Europa, refúgio para gerações de emigrantes vindos de todos os países. Foi em Paris que ele passou pelo rigor do exílio, interrompido apenas por curtas temporadas em San Remo, visitando Dora, sua ex-mulher, ou na Dinamarca, visitando o literato Bertold Brecht, de quem era amigo. Permanentemente ameaçado e afetado em sua força criadora por uma miséria financeira latente, separado das editoras alemães que lhe eram benévolas e incapaz de se estabelecer em sua profissão em Paris, ele dependia por completo da ajuda e do subsídio financeiro do Instituto de Pesquisa Social, então estabelecido em Nova York – uma dependência que se mostrou martirizante para o espírito independente.
Já em fins de 1939, em consequência do pacto entre Hitler e Stalin, a guerra passou a definir também os intelectuais alemães fugidos do nazismo como inimigos do país em que tinham buscado abrigo. Para Benjamin, assim como para muitos outros alemães, isso significou internamento, campo de concentração.
Após viver amontoado com milhares de homens em condições sub-humanas no estádio de Colombes, num subúrbio de Paris, ele passou por uma segunda fase de internamento no campo de concentração Vernuche, perto de Nevers, às marges do Loire. Graças à ajuda de amigos franceses, conseguiu voltar para Paris logo depois de alguns meses. Lá lhe restou, contudo, pouco tempo para seus estudos na Biblioteca Nacional.
Depois da ocupação de paris pelas forças armadas alemãs e depois do armistício com o novo governo de Pétain (14 a 22 de junho de 1940), todos os fugitivos ficaram ameaçados de ser entregues á Gestapo. Permanecer na Europa significava para a maioria deles perigo de vida. Começou então uma indescritível fuga em massa de Paris. Mesmo para Benjamin, que se sentia intimamente ligado à cultura européia e que nunca tinha pensado seriamente em emigrar para os Estados Unidos, a transferência para a América passou a representar a única esperança.
Fugindo em direção ao sul, ele parou primeiramente durante quase dois meses em Londres, um dos principais pontos de passagem dos inúmeros fugitivos. Em agosto, após receber o ansiado visto americano, dirigiu-se para Marselha, para deixar a França partindo de lá. Depois que uma primeira tentativa de fuga malogrou – o disfarce de marinheiro não protegeu grandemente o intelectual –, em meados de setembro começou a última etapa de sua fuga.
“Vou fugir amanhã através dos Pirineus”, foi a última coisa que comunicou em Marselha ao escritor Hans Sahl, que estivera internado com ele em Nevers. Depois disso, começou a viagem em direção da fronteira espanhola, juntamente com Henny Gurland e Joseph, o filho desta com de dezesseis anos, a quem tinha conhecido casualmente. Seu objetivo lá era encontrar-se com Lisa Fittko, emigrante de Berlim como ele próprio e casada com o combatente da resistência Hans Fittko, que Benjamin tinha conhecido em Nevers. Hans havia prometido que sua mulher, que era prática e experiente, ajudaria Benjamin, intelectual pouco ativo. Relações travadas por um curto espaço de tempo no exílio intervinham profundamente nas vidas respectivas, quando a ameaça era comparável e a solidariedade proporcionalmente grande.
“Minha senhora... desculpe o incômodo. Espero não estar importunando... seu esposo... me explicou como encontrá-la. Ele disse que a senhora me levaria para a Espanha, atravessando a fronteira.”
Cortês e distinto, cuidadosamente atento para manter a forma correta mesmo nessa situação de perigo de vida, é assim que Lisa Fittko quarenta anos mais tarde se lembra de como Walter Benjamin chegou de surpresa à porta de sua casa em Port-Vendres, na manhã de 25 de setembro de 1940, pedindo-lhe ajuda na travessia da serra que o separava da liberdade.


imagem: Gleen Ligon
(continua num próximo post)

quarta-feira, 8 de junho de 2011


À GUISA DE RETIRO


En una noche oscura,
con ansias en amores inflamada,
[...]
En la noche dichosa
en secreto, que nadie me veía,
ni yo miraba cosa,
sin otra luz y guía,
sino la que en el corazón ardía.

São João de la Cruz
Canciones del alma


Retirei-me por um dia da vida. Passei-o na cama com histórias policiais. Pode parecer brinquedo tal retiro. Mas na verdade é lindo e transparente. Retiro-me do mundo, não mostrando a ninguém minhas feridas. Não mostro as minhas nem a Deus. Respondo aos ataques do mundo fazendo corpo mole. É num desses de corpo mole que morrerei sozinha como um homem nu.


Mas um dia mostrarei a Deus a minha face. E esta será tão terrível que Ele se assustará. Minha face lhe dirá: olhe, olhe o que você fez de mim ao me fazer humana. Más será a cara de um cadáver sem susto, já sem perigo de morrer, nada mais tendo a temer. Quando eu perder meu corpo triste ficarei de espírito livre e solto nos ventos das montanhas. Sem nada o que fazer por toda a eternidade. Pousando numa árvore de tronco escuro, ora pousando numa das rochas da terra. As grandes perguntas me aterrorizam. Não ouso fazê-las. Mas eu vou ser alguma coisa depois de morta? E pra quê?


Estou escrevendo na cama, deixei de lado por um instante o livro que lia. Sinto-me sozinha em pleno centro civilizado do mundo. Em baixo do meu edifício estão britando a rua num ruído incessante e infernal. E no meio disso estou eu em silêncio, repousando do último ataque que a vida me deu e que foi quase fatal. Só de quem se ama tanto é que pode partir a grande flechada que nos atinge em pleno rosto espantado. Não me queixo: só que me retiro de cena e faço corpo mole. Mexi-me demais no mundo das paixões e agora recolho-me para lamber minhas feridas ainda quentes de sangue. Não, não estou fazendo confidências. nunca a úmida confidência. E sim o seco depoimento de uma mulher sem ilusões. Pouco me resta, pouco tenho a perder. Estou livre. É uma liberdade grave e muda. Também com certa tristeza que existe na liberdade. Mas sinto que coisas me prendem ao mundo e espero morrer sem que essas coisas me sejam tiradas. Não quero viver muito por medo de dar tempo de me cortarem em pedaços.


Com estilo sem estilo dos bons contistas de história policial, aprendo a relatar, aprendo a denunciar. Eu denuncio a pureza do mundo. Denuncio as trevas em que vivemos, trevas de ambições e desejos que se reviram como cobras empilhadas. Desço fundo no meu retiro espiritual. E por estranho que pareça será do fundo de meu abismo que renascerei com um rosto calmo, quem sabe se até mesmo com a leve força de um sorriso.


Minha cama é dura , as histórias são duras, minha luta é dura, as histórias que vivi são duras. Aceito o desafio. Mas estou no momento sem muita força. Eu quereria poder escrever sobre pedras e não sobre homens. Quero a seca engenharia dos guindastes. Quero este ruído dos britadores que riem alto na luta.


Li hoje histórias de homens que não podem mais resistir – e eu hei de resistir? A tentação do pior é grande e, para não sucumbir a ela, apago-me, apago a chama de minha vida pequena. Reduzo-me a quase zero. Só me resta o ritmo respiratório leve.


E é este ritmo respiratório, que, bem sei, me levará a me levantar desta cama e de novo desejar. Desejar o quê?


Desejar apenas que esse ritmo respiratório tão leve perdure um pouco mais. Para eu poder beijar uma criança. Tudo tem que ser bem de leve para eu não me assustar e não assustar os que amo. Pedem-me pouco, pedem-me quase nada. O terrível é que eu tenho muito para dar e tenho que engolir esse muito e ainda por cima dizer como delicadeza: obrigada por receberem de mim um pouquinho de mim.


Acho que tenho dito. Resta-me me levantar dessa falsa cama de enfermo e começar ainda desajeitadamente a lutar. Tudo isso que eu escrevi, agora, é pra mim mesmo, não é para ninguém mais. Sou dura na queda. Adeus.



Clarice Lispector, texto não datado. Fonte: Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa. Publicado como pós escrito no livro de ensaio “Línguas de Fogo”, Claire Varin, São Paulo: Limiar, 2002.

sexta-feira, 3 de junho de 2011




 
"Está acabado"
Samuel Beckett, Fim de partida
Imagem: Louise Bourgeois, Célula (Arco da Histeria)


As tecedoras


Eu as conheço, as horríveis, as tecedoras envoltas em penugem
em cores que crescem das mãos, do fio
até o coágulo trêmulo movendo-se na rede de dedos ávidos.
Filhas da sesta, lesmas pálidas escondidas do sol,
nas bacias deixadas nos pátios crescem seu veneno e sua paciência,
nas varandas ao anoitecer, nas calçadas dos bairros,
nos espaço sujo de buzinas e lamentos do rádio,
em cada vazio onde o tempo for um pulôver.
Tecem estupidez, lágrimas e desmemória,
tecem, dia e noite tecem a roupa de baixo,
tecem a bolsa onde se afoga o coração,
tecem sinos encarnados e luvas roxas para nossos joelhos.
Tece, mulher verde, mulher úmida, tece, tece,
Amontoa em tua saia matérias putrescíveis
de onde brotaram teus filhos,
Essa lenta maneira de vida, esse óleo de escritórios e universidades,
Essa paixão de domingo à tarde na arquibancada.
Sei que tecem de noite, em horas secretas, levantam-se do sonho
e tecem em silêncio, nas trevas; já fiquei em hotéis
em que cada quarto às escuras era uma tecedora, manga de camisa
cinza ou branca saindo de baixo da porta; e tecem nos bancos,
atrás dos vidros embaçados, tecem nas latrinas e
nos frios leitos matrimoniais tecem de costas para os roncos,
e nossa voz é o novelo para teu tecer, aranha amor, e esse cansaço
nos cobre, agasalha a alma com ponto de cruz
ponto de cadeia Santa Clara,
a morte é um tecido sem cor e os estás tecendo para nós.
Lá vêm, lá vêm! Monstros de nome flácido, tecedoras,
Dedicadas donas de casas nacionais, escriturárias, louras
manteúdas, pálidas noviças. Os marinheiros tecem,
os doentes cercados de biombos tecem para a insônia,
do arranha-céu descem enormes franjas de tecido, a cidade
está embrulhada em lãs que parecem vômitos verdes e roxos.
Já estão aqui, já se levantam sem falar,
somente as mãos onde agulhas brilhantes vão e vêm,
e têm mãos na cara, em cada seio têm mãos, são
centopéias são centomãos tecendo num silêncio insuportável
de tangos e discursos.



JULIO CORTÁZAR. Último round. Tomo I. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p.206-9.
imagem: Louise Bourgeois, “Spider Home”, 2002.


segunda-feira, 23 de maio de 2011






assinado o abaixo assinado


fazer-se um signatário, ali uma política possível, ou não? Fazer que se lembra da função um tanto deixada de lado a do intelectual - aquele que se expressa sobre questões que assaltam o espaço público e os rumores do tempo histórico-mundial. Está-se a pensar em Zola, Sartre, Camus, Semprum, Merleau-Ponty, Escobar, Marcuse, Duras, Glauber Rocha, e tantos, tantos. Nomes, são nomes à história - nomes, outros nomes - mas nomes não nos seriam intensidades, formas-modos da à história ali quem sabe ela a encontrar uma parede que a resgatasse do seu livre curso à reatividade, o famoso devir reativo da história que parece sempre e sempre dar as margens de que se nos volte, de que se nos retorne o pior, o que haja de pior (visão de horror de Zaratustra), os fascismos todos tomados desde a algibeira até que se nos forje o rosto sisudo da conformidade? Nomes, nomes, mas por vezes não seria o que a emperra a este devir reativo, o que o faz estancar de sua monótona cadeia da existência - como que na grita de um Kafka, quem sabe um outro do mundo?! Ou nas recusas de um Barthleby, ele já o engastado do tanto o que se lhe exigem, e então não mais? Quisera o tempo da crise lançar as discussões ao tanto delas. Quisera o tempo às crises nos lançarem para bem mais além dos seus efeitos de superfície - onde nos deliciamos tantas vezes com as marolas, as línguas de areia e seus castelos, os nomes escritos rápidos rapidíssimos até que as ondas. Quisera o tempo às crises deflagrar violentas insubordinações - será se se lembra os dias em que se esteve a pensar isto, creio que não faz tanto tempo assim? A leitura dos textos de ainda há pouco nos aproxima o imediato daquelas horas, daquelas urgências. Penso no Foucault a dizer do movimento de um só homem a dizer 'não obedeço mais' face a um poder que o amesquinha. Penso na voltade de transcender (não uma transcendência, um transcendental) às agruras do 'estar aí' do personagem Jorge de Vergílio Ferreira em seu romance Nítido Nulo. É que ele estava à morte, condenado que estava, e o tempo que lhe restava era a totalidade do tempo de sua vida como sendo a de um tempo que resta. E então, o que fazer? Pergunta magnífica, e urgente. Pergunta ela toda depositada ao tanto do intolerável. Está-se à crise, não? Sempre então a recordar o Negri a dizer da crise a condição ontológica à criação. Se trata de repensarmos a ingerência ubíqua, a condição transcendental das agências - sua hipertrofia, os desmandos não como algo um algo do agora - por conta desta ou daquela exigência, mas a condição na que se nos plantou o 'exigir' contínuo que se calca no quê? No suposto ideário da qualidade? Mas onde a qualidade - será que apenas ali, e por estes meios? Será que apenas 'no quando' ao conforme aos supostos meios que se nos planta em injunções descabidas a laminar o que, tantas e tantas vezes, é o que temos de melhor - mais pontente e intenso? Da laminação do capital na fabricação do normatizado - falas que ecoam a um Guattari dos 70', e mesmo o dos 80'. Das regrinhas ao mediano, medíocre - um Foucault à cabeceira. Do assalariamento como o que avilta o trabalhar do trabalho, lembranças a um velho Marx, e das fabulosas leituras de um Carlos Henrique Escobar. Da crítica radical e aos martelos ao apequenamento em que se está ao depósito quando se está apenas e tão somente a cumprir as funções de funcionário público, o intelectual às migalhas uma vez as razões de estado a dizer a ele todo os dias o seu dia que se repete (o beijo na boca corrido que já são às horas... o abraço contido que já é o tempo, o rasgo na arte de que ele pode porque se trata do 'sério'), um Nietzsche aí a dizer de si que ele nada que seria capaz não fosse uma aposentadoria a Basiléia? São tantas as letras que se nos retornam em auxílio, tantas as palavras, a escritura que nos arranja um lugar ao sol quando parece que é do inverno que não se dobra os ares gris do tempo. Mas o presente não nos é amarra, não nos é o que nos acerca ao seu dentro enfarpado, os carretéis de arame no entorno dos hectares, os grileiros ali a ver se se evita o levante, o capitão do mato a arfar o peito como quem toma a si o sonho dos senhores, e estes os senhores a gozar o gozo perfeito dos que não se misturam ao mundo. Parece-me o presente é o que estamos em vias do não mais. Deleuze, Foucault. Seria o caso solicitar aos bons e aos amigos que perdoassem se eu os uso, ou se eu os cito. É que deu-se-me o hábito ao tanto do que estive a fazer. Ensinar em espaço público. Desde há tanto. E mais do que isto, o estar a ler, a tomar o tempo os modos do inútil - o homem parado, estancado diante de um corpo de letras agarrado a um suporte, um livro ali. O homem que lê, esta inutilidade. Mas é que se deu o hábito. Bourdieu andou dizendo o quanto é que custa a que um hábito ele se nos descole. Joga-se, outro modo, com isto aos mercados do simbólico, e então segue-se citando a ver se se consegue algum crédito ao dizer do que se diz. Mesmo que não fosse necessário o citar estando já tudo ali sob a planura da escrita - que é rasgo e corrupção. Tempos de crise. Espera-se espero junto que os olhos ganhem a dimensão do mundo e que não se esteja apenas e tão somente a pleitear por um 'ok' que nos faça retomar o prumo das coisas, do estado de coisas, e que se nos faça crer que tudo é belo e bom, que o azul é toda hora, e que a metafísica é uma boa casa ao que não a têm. Espera-se espero e no meu chamado busco quem sabe arrancar-me a solidão dos que não creem. Mas se se escreve é por um qualquer motivo que não o do silenciar. Silêncio que tantas vezes (nem sempre), mas silêncio que tantas vezes é o dos vencedores, o do coro afônico dos contentes, o dos ganhadores que acertam em cheio o milhar do que avilta aos muitos. Silêncio que é um modo aos fascismos. Lembro-me de um personagem de Primo Levi em seu maravilhoso "É isto o homem?", se trata do personagem Elias Lindzin. Dele - Primo Levi conta que era como um cavalo em força, sua tração era inaudita entre os corpos extenuados do Lager. Elias era aquele que carregava sem grandes esforços três, quatro sacos de cimento, tijolos aos montes sobre o peito de aço, enquanto os outros lutavam com a sua fragilíssima condição: levantar um saco, levar aqui e ali o desconjuntado das pernas braços e o quê fazer. Elias se ria dos outros, os desafiava, os desdenhava. Elias era aquele que, vez ou outra, se recolhia aos cantos onde ninguém podia ir, e de lá voltava com os bolsos cheios, e a pança satisfeita. Não demorou para que Elias - que era quem melhor trabalhava - deixasse de trabalhar. Não demorou. Tornou-se fiscal do trabalho dos outros - espécie de consultor dos SS, fazedor de delação, um ótimo candidato às batatas de que um Machado de Assis disse estar reservada aos vencedores. Encerro este longo email com as palavras de Primo Levi sobre Elias Lindzin: "A questão é séria, mas vamos parar por aqui. Nossas histórias são histórias do Campo de Concentração; já se escreveu muito quanto ao homem fora do Campo. Desejaríamos acrescentar só uma coisa. Elias, até onde nos foi possível julgar e até onde a frase possa ter um significado, era, provavelmente, um homem feliz".


André Queiroz
imagem: gravura ney ferraz paiva

sexta-feira, 20 de maio de 2011


A RESPEITO DO SUICÍDIO DO FUGITIVO W. B.


Disseram-me que você levantou a mão contra si próprio,
Antecipando-se ao magarefe.
Oito anos exilado, observando a ascensão do inimigo,
Por último levado a uma fronteira intransponível,
Consta que você transpôs uma transponível.
Reinos desmoronam-se. Os chefes dos bandos
Comportam-se como estadistas. Os povos
já não se veem mais, debaixo dos armamentos.
Assim, o futuro encontra-se nas trevas, e as boa forças
São fracas. Você viu tudo isto.
Quando destruiu o corpo atormentável.


Bertolt Brecht
imagem: ney ferraz paiva

terça-feira, 17 de maio de 2011



ALEGRIA BREVE, de Vergílio Ferreira


Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordando-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olhar para aquele pátio depois que ficou só. E pensava: “verei dali a janela do meu quarto”. Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quanto estamos? É Inverno, Dezembro, talvez, ou Janeiro. Tiro a neve com uma pá, traço o retângulo e cavo. Dois cães assomam à porta do quintal, chupados de ódio e de fome. Ainda há cães pela aldeia? Babam-se e uivam sinistramente. Tomo uma pedra, disparo-a contra um, desaparecem ambos a ganir. E de novo o silêncio cresce a toda a volta, desde a montanha que fico a olhar até me doerem os olhos. Olho-a sempre, interrogo-a. Quando estou cansado de cavar, enxugo o suor e olho-a ainda. Um diálogo ficou suspenso entre nós ambos, desde quando? – desde a infância talvez, ou talvez desde mais longe. Um diálogo interrompido como tudo o que aconteceu e que é necessário liquidar, saldar de uma vez. Estou só, horrorosamente só, ó Deus, e como sofro. Toda a solidão do mundo entrou dentro de mim. E no entanto, este orgulho triste, inchado – sou o Homem! Do desastre universal, ergo-me enorme e tremendo. Eu. Dois picos solitários levantam-se-me adiante, lá longe, trêmulos no silêncio. Entre eles e a aldeia há um vazio escavado na montanha, donde sobem as sombras e a neblina. Pela manhã a neve infiltra-se pelos desfiladeiros, e toda a serra e a aldeia flutuam. Então é como se o tempo se esvaziasse e a vida surgisse fora da vida. Mas agora o ar é puro, transparente, como um sino na manhã. Só as sombras se erguem desde o fundo. Com a neve acumulada tomam um tom violáceo. Mas é um tom nítido como o espectro solar. Os dois picos, de arestas limpas, vibram imperceptivelmente no céu úmido e já escuro.

Trago o corpo de minha mulher embrulhado num lençol. É estranho como pesa. Dir-se-ia que a terra o exige com violência. Gostaria de a olhar pela última vez, e no entanto não é fácil. O lençol branco confunde-se com a neve. Assim é como se o corpo se confundisse também. A toda a borda da cova, a neve ficou suja da terra acumulada. Será a fundura bastante? Metro e meio, talvez. De comprimento, está bem. Encosto-me ao cabo da enxada e é estranho que não reconheça em mim um sentimento distinto. Cansaço, decerto, e o orgulho e o medo. Será tudo o mesmo? E a resignação, talvez, ou mesmo a plenitude. Estás velho, como o não sabes? estás velho. Talvez seja assim a velhice: um esgotamento longo de tudo. E no centro, breve, uma verdade final. Como um objecto precioso que se tira da terra e se limpa – qual a tua verdade final? Mas estou tão cansado. Agora não. Olho a aldeia abandonada, perdida na montanha, ouço o silêncio. E sinto-me aí disperso, irisado em espaço, íntegro e puro. E nu. Mas quando vou a erguer o corpo, não resisto: subtilmente afasto as dobras do lençol. Então Águeda aparece-me à última luz da tarde de Inverno. Magra, sisuda, indignada com a vida. Pus-lhe o terço nas mãos, um pouco talvez para a reconciliar consigo, para ter um sono mais fácil. Mas a face agreste de boca cerzida, as mãos quase enclavinhadas fixaram para sempre a imagem de um desespero.

– Dorme.

Cubro-a de novo, suspendo-a a custo. Afinal a cova ficou curta: os joelhos soerguem-se-lhe um pouco. Uma das dobras do lençol deslizou e tenho de me debruçar para a compor. Baixo-me, tremente, uma onda de suor vem bater-me em todo o corpo – que é que me assusta? Onde é que? É tudo tão grande. A noite cresce no céu, é necessário acabar tudo de pressa. Sobre nós, os ramos nus da figueira começam a apagar-se na sombra. A terra cai na cova com um rumor fofo. Vou à loja buscar estacas para fazer uma cercadura. Um dia ponho-lhe uma lápida, talvez, ou alinho à volta lascas de pedra com se faz nos canteiros. Possivelmente cairá neve de noite e apagará aquelas manchas de terra. Mas é preferível cobri-la já com neve limpa do quintal. Com a pá vou apanhando pequenos blocos brancos que espalho sobre a sepultura. Depois aliso a superfície para que tudo fique perfeito. Entro enfim em casa e estiro-me num sofá, voltado para a janela de postadas abertas. Para lá do grande vazio, os dois morros sobem pelo céu com uma alvura pálida. Ligeiramente parece-me que se movem quando os fito intensamente.


Editora Portugália, Lisboa, 1965
imagem: ney ferraz paiva

quarta-feira, 11 de maio de 2011



Ernesto Sabato: o delirante morreu enterra-se o estrangeiro


Ney Ferraz Paiva


Está sentado num dos últimos cafés de ar verdadeiramente portenho, com uma camisa azul escura que reforça o seu ar de monge e de anarquista ao mesmo tempo. Sabato é o último dos moicanos da retidão que não nega encarar os dilemas. Ele os vê com os olhos ziguezagueantes atrás dos óculos, num rosto que mescla traços de Chestov e Kierkegaard. E diz: ‘Se o homem é mortal em qualquer parte do mundo, aqui é muito mais mortal’. Tira os óculos e sorri meio de lado, acentuando as linhas do rosto sofrido. Vê-se, então, que é um homem só. O último dos moicanos.Franco Mogni, entrevista Sabato, Revista Che, anos 1970.
Arisco é o destinoesta é a lição de etimologia que se pode arrancar à obra de Ernesto Sabato e a ele mesmoescapar tanto na vida quanto na escrita. Ele que duelou com Borges e sobreviveu, jamais como adulador, a fazer concessões nem fingimentos, ainda que ferido mortalmente por um diálogo de alta voltagem entre rivais. Ele que sempre recambiou a escrita aos lugares de túneis e sombras entre homens feridos, quase sempre abatidos. Mais do que queimar livros há quem mande trucidar homens. Livros valem menos do que sentenças de morte. O grande-cão da morte ronda a América Latina. O Anjo Exterminador e seus incontáveis discípulos cegos. A escrita de Sabato não foi menor que o contexto adverso a que ele resistiu e devemos continuar resistindo. Escrita que incitou um contato intensivo com a população oprimida da Argentina. Com a juventude e as mães dos desaparecidos políticos. Mas escrever é menor que tudo isso, Sabato compreendia, e por isso soube manter-se também como um homem à parte, um outsiderdistante, talvez, ou tímido, com um problema visual a bloqueá-lo cada vez mais num ambiente retrospectivo, silencioso, mas que não paralisou a sua escrita nas reminiscências e autoexílios da emoção em um tempo turvo. Sabato o protagonizou. Ora nas ruas, ora pintando, ora escrevendo. Fez a Argentina falar ao mundo. Uma Argentina eminentemente política. Se nunca ninguém viu o Estado, é talvez porque de fato ele não exista, no entanto, as ditaduras latino-americanas não foram regimes de idealismo transcendental, o que inclusive certos espíritos altivos que caem de quatro pelo poder chegam a considerar. Às ditaduras se juntaram o capitalismo, o tribunal, a igreja, a imprensa. Todo ardil dos farsantes. Sucessivos governos dos Estados Unidos, não menos totalitários e espúrios, sobretudo porque tratavam de executar ações que visavam impor “padrões mais elevados de Estado” como forma de desmobilizar os males do marxismo pela América Latina e alhures. E todos esses vestígios de realismo não poderiam ser simplesmente descartados como se Sabato abrisse mão de apenas um entre tantos temas artísticosum estilo, uma inspiração fugazantes, Sabato teve que captar o momento expressivo da escrita e não sucumbir. O que não é pouco, é certo. Por essa época os escritores latino-americanos foram lançados a essa escolha, mas nem todos perceberam claramente do que se tratava. Foi através de Sabato que, pela primeira vez, muitos se deram conta. Sabato ousou dizer o que se passava à frente; e imaginou o tempo que se viviaisso de fato, não é pouco. E atentou chamar-se constantemente de homem cético. O ceticismo é um efeito que a literatura recolhe de suas entranhas e que se desdobra em vastas operações de escala entre ritmo e sentido. O ceticismo da escrita sem metáforas. De conceito, julgamento e conclusão. Talvez, por isso mesmo, se possa aproximar Sabato de um certo Walter Benjamin. Ambos aliados num mesmo risco de singularidade a que nem todo grande escritor adere. Talvez ao longo do vasto percurso da indiferença muitos fracassem. Mas como não deixar o sofrimento atravessar o vale estreito entre a vida e a escrita? Seguir sem enfrentar os efeitos de desvalorização do homem? Não cumular nenhum recalque? Sabato teve por todas essas razões (e mais algumas) uma trajetória difícil, de embates e combates imprescindíveis para continuar vivendo, gravados em suas feições. E que hoje se faça outro comércio de fronteira entre os governos latino-americanos, os Estados Unidos e a Europa, como se os dois íltimos estivessem em seu próprio território, impondo o que venha a ser o desalentado valor dos termos “democracia”, “liberdade”, “legalidade”, repisando instantaneamente alguns sinais de paródia, algumas variações de rótulos, abertas combinações de incerteza e medo, consignados os erros, evidenciados os equívocos e anunciado o terror, com os quais talvez não se quisesse mais ver negociadas e desistimuladas as possibilidades de variação, diversidade e revezamento da justiça. Sabato e todos os seus leitores talvez tenham, numa certa medida, subestimado que a história é reativa. Que estão impugnados os finais felizes. Que não se pode pretender deter o tempo em seu túneis e tumbas. Mesmo se nessa operação um dos maiores escritores e críticos do século XX esteja envolvido. E que tenha morrido num lugarejo de Buenos Aires, aos 99 anos. Um delirante e extenso ritual de “carpe diem”.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       




Ernesto Sabato faleceu em 30 de abril de 2011, em Santos Lugares, Argentina. Autor dos memoráveis e atualíssimos O Túnel (1948) Sobre Heróis e Tumbas (1961). Como Borges, Sabato não ganhou o prêmio Nobel.



sábado, 30 de abril de 2011



ESCOLA


A notícia veio de supetão: iam meter-me na escola. Já me haviam falado nisso, em horas de zanga, mas nunca me convencera de que realizassem a ameaça. A escola, segundo informações dignas de crédito, era um lugar para onde se enviavam as crianças rebeldes. Eu me comportava direito: encolhido e morno, deslizava como sombra. As minhas brincadeiras eram silenciosas. E nem me afoitava a incomodar as pessoas grandes com perguntas. Em consequência, possuía ideias absurdas, apanhadas em ditos ouvidos  na cozinha, na loja, perto dos tabuleiros de gamão. A escola era horrível - e eu não podia negá-la, como negara o inferno. Considerei a resolução de meus pais uma injustiça. Procurei na consciência, desesperado, ato que determinasse a prisão, o exílio entre paredes escuras. Certamente haveria uma tábua para desconjuntar-me os dedos, um homem furioso a bradar-me noções esquivas. Lembrei-me do professor público, austero e cabeludo, arrepiei-me calculando o vigor daqueles braços. Não me defendi, não mostrei as razões que me fervilhavam na cabeça, a mágoa que me inchava o coração. \inútil qualquer resistência.

Trouxeram-me roupa nova de fustão branco. Tentaram calçar-me os borzeguins amarelos: os pés tinham crescido e não houve  meio de reduzi-los. Machucaram-me, comprimiram-me os ossos. As meias rasgavam-se, os borzeguins estavam secos, minguados. Não senti esfoladuras e advertências. As barbas do professor eram imponentes, os músculos deviam ser tremendos. A roupa de fustão branco, engomada pela Rosenda, juntava-se a um gorro de palha. Os fragmentos da carta de ABC, pulverizados, atirados ao quintal, dançavam-me diante dos olhos. "A preguiça é a chave da pobreza. Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém. D, t, d, t." Quem era Terteão? Um homem desconhecido. Iria o professor mandar-me explicar Terteão e a chave? Enorme tristeza por não perceber nenhuma simpatia em redor. Arranjavam impiedosos o sacrifício - e eu me deixava arrastar, mole e resignado, rês infeliz antevendo o matadouro...

Dias depois, vi chegar um rapazinho seguro por dois homens. Resistia, debatia-se, mordia, agarrava-se à porta e urrava, feroz. Entrou aos arrancos, e se conseguia soltar-se, tentava ganhar a calçada. Foi difícil subjugar o bicho brabo, sentá-lo, imobilizá-lo. O garoto caiu num choro largo. Examinei-o com espanto, desprezo, inveja. Não me seria possível espernear, berrar daquele jeito, exibir força, escoicear, utilizar os dentes, cuspir nas pessoas, espumante e selvagem. Tinham-me domado. Na civilização e na fraqueza, ia para onde me impeliam, muito dócil, muito leve, como os pedaços da carta de ABC, triturados, soltos no ar.


Graciliano Ramos, Infância
imagem: Janet & George