o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 13 de junho de 2010

Escrevo para me percorrer, Henri Michaux




Há doenças que, quando curadas, deixam o homem sem mais nada, Henri Michaux.
Tinha mais do que cinco sentidos, disse-o num dos seus poemas. “O da falta”, era um deles. Ou “seria antes uma grande floresta, daquelas que já não existem na Europa há muito tempo”?
Percorreu os territórios sensoriais e geográficos contra os incêndios que deflagram nas “florestas” mais íntimas e oclusas do ser.
Foi queimador de ópio na Ásia; foi “queimador” de charque e ayohasca na Amazônia; da morfina parisiense ou da mescalina no Cairo (experiências de pouca monta), mais do que tudo, foi um queimador de paisagens interiores. Fogos vitais a que supra-viveu; outros, nocivos e pouco fátuos, levaram-lhe partes da vida (Marie Louise Ferdière, sua mulher, Alfredo Gangotena, poeta-companheiro de viagem, Susana Soca, amiga íntima, todos morreram queimados).
Vida poética também inspirada pelo vazio (Michaux dixit), pela força furibunda do vazio. Vazio e fogo, o rastilho existencial deste homem de coração débil, “pequeno buraco no peito” do qual sobrava sempre a lavra da poesia (da sua poética), medonhamente inextinguível.
Ferida aberta que devora, tritura, aniquila aniquila, tritura, devora. É impossível a fixação dos seus textos: fugidios, escapáveis, metamorfoses furtivas, degenerativos, “meidosens”… Michaux foi sensacionista pessoano sem fronteiras e limites de heteronímia. “Tão-pouco quero reproduzir seja o que for do que já está no mundo”.
Assim jogou tudo – vida-morte, lucidez-loucura – com a sua própria pele; ajustou contas consigo e com o mundo através das suas artérias. “Escrevo para me percorrer. Pintar, compor, escrever: percorrer-me. Reside nisto a aventura de estar vivo”.


Henri Michaux 
Imagem: Helena Almeida

Henri Michaux (mudado para português por Herberto Helder)

sábado, 12 de junho de 2010

Náusea Ou é a Morte Que Se Aproxima?

















Rende-te, coração.
Lutamos tempo demais,
Que se acabe a minha vida,
Não fomos cobardes,
Fizemos o que pudemos.
Oh! Alma minha,
Ou ficas ou vais,
Tens de te decidir,
Não me apalpes assim os órgãos,
Ora com atenção, ora com desvario,
Ou vais ou ficas,
Tens que te decidir.


Eu, por mim, não posso mais.
Senhores da Morte
Nem vos aplaudi, nem blasfemei contra vós.
Tende piedade de mim, viajante de tantas viagens sem
bagagem,
Sem amo, sem riqueza, sem glória,
Sois de certeza poderosos e ainda por cima engraçados,
Tende piedade deste homem transtornado que antes de
saltar a barreira já vos grita o seu nome,


Apanhem-no no ar,
E, se for possível, que se adapte aos vossos
temperamentos e costumes,
Se vos aprouver ajudá-lo, ajudai-o, peço-vos.

henri michaux “equador”
trad. de ernesto sampaio fenda 1999
imagem: Helena Almeida

quinta-feira, 10 de junho de 2010


Quando soube da notícia da morte de Wilson Bueno, lembrei de ter separado dos meus arquivos duas ou três matérias a seu respeito – eu tinha conversado com o escritor André Queiroz em torno de alguns autores, dentre eles João Gilberto Noll, alguma coisa sobre ter lido e ter gostado de “Harmada”, e durante a conversa, mesmo sem ter mencionado, me veio a lembrança de Bueno, certamente porque seu nome está ligado aos grandes nomes da literatura recente, aqui e alhures. Pensando agora, talvez eu não tenha mencionado o Bueno ao André porque em algum instante de sua obra eu entendesse tratar-se de uma gênese, de um nascimento – de uma narrativa que não se atém ao gênero e se dispersa em tantas direções até o limite indizível e possível. E terá sido este o Wilson Bueno – ferido por uma facada, morto, desaparecido numa noite angulosa de Curitiba? Terá sido? Com uma facada no pescoço? Como se morre assim para além de toda ficção? Onde é que você se coça e... morre...? onde? como? Teria podido ser de outro modo? Há algo que os mortos escondem de nós.
Quase
















Um pouco mais de sol - eu era brasa.
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carneiro
imagem: Andreas

terça-feira, 8 de junho de 2010


Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.
Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro -
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer "potins" - muito entretida.












Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -
Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.
Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos - mesmo ao predilecto -
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto.
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...
Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar...
 
Mário de Sá-Carneiro
Imagem: Madame Yevonde

segunda-feira, 31 de maio de 2010

luz, tautologia derradeira








ao Luiz Cláudio no dia de seus anos

parei as ondas dos meus sonhos
para o teu corpo carregar
ao meio dia te quero
procuro sobre as águas
em cima das árvores
respiras o que respiro, segues no meu sangue,
por ti mudei, cabelo, corpo
e trago outro sorriso
pensando que o tempo possa voltar
traz-me um pouco do sereno
que a noite reserva a poucos
e que guardas no teu coração
coloco vestidos noturnos
apago os vestígios, suspendo
um verbo caído
que serenamente inventei
na sazonalidade líquida
de cada inverno
segues, às vezes não me reconheço em ti,
outras nem tanto
mãos que transportam desequilibradamente
a geografia e olhos
que esqueceram ouro em praias longínquas.


Juliete Oliveira
 

mau olhado


vendedor de livros usados
fotógrafo de bebê porta-a-porta
humilde abnegação
poderosa capacidade de cultura
pra enganar o olho


ney ferraz paiva

sexta-feira, 28 de maio de 2010

declive do tempo


o medo de não ter medo pode ser a moradia segura do escuro
quando os pecados do mundo desfilam diante de ti
em silencioso espetáculo
teu coração inabitável, trilha em mata fechada
sem perspectiva suplicamos a direção
caminhamos, pisando em metáforas monstruosas como orquídeas
a tua língua desenha a geografia do fim
dizes: viveu tua mais bela tragédia
no círculo da patética inutilidade do martírio
errei estive em tantas portas.



Juliete Oliveira

quarta-feira, 26 de maio de 2010

OS ESTUDANTES BRASILEIROS E A LITERATURA UNIVERSAL
A primeira entrevista de Clarice Lispector


Série de reportagens com universitários, no final de outubro de 1941, opinando sobre literatura. A ilustração é de uma garota bonita, com bolsa embaixo do braço, cercada por cinco rapazes e a legenda “Futuros advogados falam sobre literatura”. Lá no final da primeira matéria vem o seguinte trecho:

“Na Faculdade de Direito subimos ao primeiro pavimento do edifício da Rua Moncorvo Filho. Descemos novamente e vemos chegar uma jovem a quem abordamos. Chama-se Clarice Lispector e tem traços da raça eslava. É terceiro-anista e acede prontamente em responder às perguntas do repórter. “Leio de preferência livros, diz Clarice. Quanto à literatura nacional, em minha opinião, temos ótimos escritores, capazes de rivalizar com qualquer outro de qualquer literatura. Sobre a moderna literatura nacional, conheço alguma coisa; mais talvez do que a antiga”.

Pode destacar algum vulto?

Vários, como Graciliano Ramos, que me parece o maior, Rachel de Queiroz, Augusto Frederico Schmidt etc.

Na literatura moderna nacional existe algum escritor que em sua opinião possa se nivelar a Machado de Assis ou Euclydes da Cunha?

Não se pode tomar para comparação um Machado de Assis, tão pessoal na sua obra. Mas em intensidade literária, dentro do seu próprio gênero, há escritores atuais que podem até superá-lo. Aliás, em minha opinião, seria mais fácil superá-lo do que igualá-lo. Machado tinha muita personalidade. Como romancista, ele não é seguro, não obedece a normas; por isso me parece fácil superá-lo, mais que igualá-lo. Euclydes da Cunha não me agrada…

Qual o livro nacional ou estrangeiro que lhe tenha deixado mais impressão?

Esta é uma pergunta difícil… Porque eu sempre passo épocas em que tal ou qual livro me impressiona. Depois o esqueço e outro toma o seu lugar. Às vezes o que me agrada num livro é o “tom”, o plano em que o autor se move. E se em outro livro o autor muda o “tom”, eu perco o interesse. É um estado d’alma.

Acha que a Guerra possa influir sobre a literatura?

Pode. Talvez um certo ceticismo se apodere da literatura do pós-Guerra. Também os motivos humanos ocuparão seu lugar. Mas ao certo não se pode prever.

Qual a sua opinião sobre a “coleção das moças”?

Corresponde a uma necessidade da idade. Há uma fase na vida da moça em que tal literatura é indispensável. Mas apesar de eu já ter sofrido essa necessidade, hoje tenho pena das moças que leem exclusivamente esta literatura.

E sobre literatura infantil?

Monteiro Lobato é sozinho uma literatura neste gênero. Suas obras compõem o que há de melhor a este respeito no Brasil. Além disso, temos Marques Rebelo. Ainda não se pode, todavia, confiar em uma literatura infantil no Brasil.

E sobre a poesia?

Eu nunca procurei a poesia. Gostei sempre mais da prosa. Admiro particularmente Augusto Frederico Schmidt.

Qual o maior poeta nacional em sua opinião?

Eu diria Castro Alves porque sei que é o melhor. Mas não tenho apreciação por condoreiros. Se a pergunta se refere aos que gosto, posso falar de Augusto Frederico Schmidt, com o seu Cântico de Adolescente que muito me impressionou há anos atrás.

Quais os melhores livros da literatura universal, na sua opinião?

Humilhados e ofendidos, Crime e castigo, de Dostoievski, Sem olhos em Gaza, do Huxley, Mediterrâneo, de Panait Istrati e as obras de Anatole France em geral. Mas isto é só do que já li.

Depois a própria Clarice se encarrega de nos apresentar a um colega. Augusto Baêna, quarto-anista e presidente do Centro Cândido Figueiredo da Faculdade de Direito.

(Na foto da reportagem, Clarice aparece com saia xadrez bem miudinho, blusa gola role reta de manga comprida, bolsa tipo carteira embaixo do braço e cabelos em quase coque.)


Diretrizes 71, 30 de outubro de 1941


quarta-feira, 19 de maio de 2010

aspecto do cinema português
lançamento hoje 19 de maio as 21 h
organização: andré queiroz
local: centro cultural justiça federal
av. rio branco, 241 centro rio de janeiro

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Contusão



A mancha invade o lugar, púrpura suja.

O resto do corpo está todo pronto,
Cor de pérola.

No vão da rocha
O mar traga obsessivamente
O vazio-oco - o cerco de todo o mar.

Do tamanho de uma mosca,
A marca do azar
Escorre muro abaixo.

O coração se fecha,
O mar reflui,
Espelhos encobertos.



Sylvia Plath
Trad. Ney Paiva
Imagem: Stephan Opitz