MORTE NO EXÍLIO – A FUGA MALOGRADA DE WALTER BENJAMIN PARA A ESPANHA: "Vou fugir amanhã através dos Pirineus"
por Ingrid Scheurmann
Port-Bou, a pequena e idílica cidade portuária no sopé dos Pirineus, tem algo de transitório que é de todo impercebível, mas que o observador atento pode deduzir. Situada na divisa entre a Espanha e a França, a cidade foi marcada em toda a sua existência pela travessia da fronteira, seja por parte de contrabandistas, seja por parte de fugitivos, e é dominada pela estrada de ferro, que se entalha com vigor no vale estreito, mostrando do que vivem e como às vezes as pessoas aqui. Isto é, do comércio com a fronteira, com aqueles que queriam atravessar o lugar depressa, sem grande estardalhaço, pagando para tanto o preço exigido.
Só neste século a fronteira da Espanha foi atravessada ilegalmente com freqüência, tanto numa como na outra direção, por pessoas cuja existência se encontrava ameaçada: na época da guerra civil, pelos republicanos espanhóis numa direção; pelos intelectuais antagonistas do nazismo, em sentido contrário. Um tanto fechado e pouco tocado pelo torvelinho dos balneários próximos, o lugarejo exala o espírito do século XX e de suas catástrofes, porém revela pouco daquilo que sabe. Não há em parte alguma um memorial público, nenhuma apresentação do passado em museus, nenhum guia turístico obsequioso, praticamente ninguém que ainda se lembre bem da época da II Guerra Mundial, ou que esteja disposto a admiti-lo em público. Esta cidade carrega sua história sem revelá-la, e vive com a impressão dominante de que tudo passa, nada fica. Os ruídos contínuos inconfundíveis da estrada de ferro marcam o compasso.
É justamente neste lugar que a lembrança, em forma de um memorial em homenagem ao filósofo e crítico judeu Walter Benjamin, deve agora deter o tempo. Deve ser erigido um marco de pedra para um homem que, como todos os outros, também queria simplesmente passar; para quem Port-Bou era um nome ligado à salvação depois da fronteira, uma meta a ser atingida, uma estação na fuga para a América, imprescindível para continuar vivendo – nada mais que isso e, ao mesmo tempo, tudo isso.
Benjamin está ligado a Port-Bou somente através de sua morte. Com ela, por assim dizer, deteve o ritmo da cidade, exigiu mais atenção do que usualmente cabe ao passante e gravou seu nome na memória da comunidade mais longamente do que de costume acontece. E com isso a cidade integrou em sua própria história a história do filósofo alemão, cujos pensamentos compreensivelmente são mal conhecidos aqui. A respeito da fuga de Benjamin e de sua morte em Port-Bou, existem alguns relatos autênticos, inúmeras lendas e suposições. Muitos mistérios continuam existindo até hoje e opõem-se à avaliação e à ocupação científica. Um dos maiores pensadores e críticos do século XX está envolvido, em sua morte, com o lugarejo de trânsito e esconde-se de olhares curiosos demais, permitindo tão somente aproximações.
Sabendo-se que em 1940 Benjamin viveu pelo menos vinte horas em Port-Bou, que ele se encontra sepultado ali há cinquenta anos, mesmo assim a gente se sente decididamente desamparada na procura de provas autênticas. Sua sepultura não é mais identificável. O nicho nº 563, no qual esteve enterrado durante cinco anos, já pertence a uma outra família, não sendo mais o lugar apropriado para se recordar do alemão morto. O hotel, chamado Fonda Francia em 1940, também não fornece nada de palpável ao pesquisador. Rebatizado com o nome de Hotel Internacional, depois da mudança de proprietário, já faz tempo que não é mais hotel, havendo somente um pequeno restaurante de média categoria. E o proprietário atual não vê mais com bons olhos que se vá aos andares superiores para visitar o lugar onde Benjamin se suicidou – o que é compreensível. Pessoas que poderiam contar alguma coisa a respeito do filósofo, como o antigo proprietário do hotel, senhor Suñer, ou o médico que o examinou, doutor Vila, estão mortos há muito; outras, não se recordam. Restaram as lendas e os fãs de Benjamin, que de vez em quando passam por lá para conhecer o lugar e procurar sinais esclarecedores.
Durante muito tempo, o lugar não quis revelar o ponto obscuro que envolve sua história. Hoje, somente alguns poucos ainda se lembram dos acontecimentos das décadas de trinta e quarenta, mas a disposição para um trabalho de recordação aumentou. O memorial de Walter Benjamin, que a República Federal da Alemanha só passou a considerar nos anos oitenta, é visto agora também pela comunidade espanhola como sendo possível e desejável.
Diante da fascinação pela obra literária de Benjamin e pela independência de seu pensamento entre os extremos de rejeição que lhe eram possíveis, com o sionismo de um lado e o marxismo de outro, diante da fascinação também pelo vigor e pela legitimidade de seus pensamentos numa época que já se distanciou cinquenta anos de sua época, a questão relativa à sua fuga e à situação desesperadora no fim de sua vida surge exatamente neste lugar como uma constelação única, imprevisível, que lhe roubou toda e qualquer perspectiva. A tragédia de Benjamin: “Um dia antes, ele teria passado livremente, um dia mais tarde, teria sabido em Marselha que na ocasião não era possível passar a Espanha. A catástrofe só podia acontecer naquele dia.” (Hannah Arendt, Benjamin, Brecht, 1971)
Por mais correta que seja a conclusão de Hannah Arendt, ainda continua sem resposta a pergunta: quando foi exatamente esse dia? O livro espanhol de óbitos anota como data de morte de Benjamin 26 de setembro de 1940, às 22 horas, e as referências em inúmeras biografias baseiam-se nessas indicações. Esta interpretação, no entanto, não é de maneira alguma a única; frequentemente são apresentadas datas entre 25 e 27 de setembro como indicações supostamente seguras.
De onde vem essa falta de clareza? Pura e simplesmente falta de informação – na pior das hipóteses polêmica acadêmica ou o resultado de disparates – eis o que continua se ligando ao último dia de vida de Benjamin. Nem mesmo um livro de óbitos anotado cuidadosamente esclarece definitivamente a questão e, de mais a mais, ele precisa tolerar um ceticismo profundo, visto que o suicídio do filósofo foi anunciado como hemorragia cerebral e, assim, falsificado, sejam quais forem as ponderações que levaram a isso. Será que outras indicações também não são falsificações, feitas com motivos semelhantes?
Não coincide com a ata oficial, entre outras, a recordação de Lisa Fittko, a guia de Benjamin na travessia dos Pirineus, que na verdade não pode relatar nada a respeito de sua morte, mas que em compensação consegue se lembrar com grande precisão do transcurso e data da fuga. Segundo ela, Benjamin começou a fuga no dia 25 de setembro e chegou a Port-Bou no dia 26. (Lisa Fittko, Meu caminho através dos Pirineus, Memórias de 1940 e 1941, 1980) É bem provável que Benjamin tenha posto termo á sua vida na mesma noite. Mas como se explicam então as informações de sua companheira de viagem Henny Gurland, que ainda o encontrou vivo na manhã após a chegada à Espanha e a quem ele contou da overdose de morfina que tinha tomado? Ou a carta de Grete Freund, que estava hospedada no Hotel Internacional na mesma época e contou que ele morreu mais ou menos 24 horas depois de chegar lá? Ou as insinuações na literatura secundária, que às vezes fazem alusões vagas à data da morte – como que para negar uma última segurança? A fixação definidora da data de morte em 26 de setembro, que se tornou regra, com efeito compensa apenas aparentemente a falta de conhecimentos definitivos a respeito das circunstâncias exatas.
A morte de Benjamin na Espanha foi antecedida de uma fuga dramática, foi antecedida de anos de exílio na França. Ele emigrou já em 1933 da Alemanha nazista para Paris, que era para ele a capital recôndita da Europa, refúgio para gerações de emigrantes vindos de todos os países. Foi em Paris que ele passou pelo rigor do exílio, interrompido apenas por curtas temporadas em San Remo, visitando Dora, sua ex-mulher, ou na Dinamarca, visitando o literato Bertold Brecht, de quem era amigo. Permanentemente ameaçado e afetado em sua força criadora por uma miséria financeira latente, separado das editoras alemães que lhe eram benévolas e incapaz de se estabelecer em sua profissão em Paris, ele dependia por completo da ajuda e do subsídio financeiro do Instituto de Pesquisa Social, então estabelecido em Nova York – uma dependência que se mostrou martirizante para o espírito independente.
Já em fins de 1939, em consequência do pacto entre Hitler e Stalin, a guerra passou a definir também os intelectuais alemães fugidos do nazismo como inimigos do país em que tinham buscado abrigo. Para Benjamin, assim como para muitos outros alemães, isso significou internamento, campo de concentração.
Após viver amontoado com milhares de homens em condições sub-humanas no estádio de Colombes, num subúrbio de Paris, ele passou por uma segunda fase de internamento no campo de concentração Vernuche, perto de Nevers, às marges do Loire. Graças à ajuda de amigos franceses, conseguiu voltar para Paris logo depois de alguns meses. Lá lhe restou, contudo, pouco tempo para seus estudos na Biblioteca Nacional.
Depois da ocupação de paris pelas forças armadas alemãs e depois do armistício com o novo governo de Pétain (14 a 22 de junho de 1940), todos os fugitivos ficaram ameaçados de ser entregues á Gestapo. Permanecer na Europa significava para a maioria deles perigo de vida. Começou então uma indescritível fuga em massa de Paris. Mesmo para Benjamin, que se sentia intimamente ligado à cultura européia e que nunca tinha pensado seriamente em emigrar para os Estados Unidos, a transferência para a América passou a representar a única esperança.
Fugindo em direção ao sul, ele parou primeiramente durante quase dois meses em Londres, um dos principais pontos de passagem dos inúmeros fugitivos. Em agosto, após receber o ansiado visto americano, dirigiu-se para Marselha, para deixar a França partindo de lá. Depois que uma primeira tentativa de fuga malogrou – o disfarce de marinheiro não protegeu grandemente o intelectual –, em meados de setembro começou a última etapa de sua fuga.
“Vou fugir amanhã através dos Pirineus”, foi a última coisa que comunicou em Marselha ao escritor Hans Sahl, que estivera internado com ele em Nevers. Depois disso, começou a viagem em direção da fronteira espanhola, juntamente com Henny Gurland e Joseph, o filho desta com de dezesseis anos, a quem tinha conhecido casualmente. Seu objetivo lá era encontrar-se com Lisa Fittko, emigrante de Berlim como ele próprio e casada com o combatente da resistência Hans Fittko, que Benjamin tinha conhecido em Nevers. Hans havia prometido que sua mulher, que era prática e experiente, ajudaria Benjamin, intelectual pouco ativo. Relações travadas por um curto espaço de tempo no exílio intervinham profundamente nas vidas respectivas, quando a ameaça era comparável e a solidariedade proporcionalmente grande.
“Minha senhora... desculpe o incômodo. Espero não estar importunando... seu esposo... me explicou como encontrá-la. Ele disse que a senhora me levaria para a Espanha, atravessando a fronteira.”
Cortês e distinto, cuidadosamente atento para manter a forma correta mesmo nessa situação de perigo de vida, é assim que Lisa Fittko quarenta anos mais tarde se lembra de como Walter Benjamin chegou de surpresa à porta de sua casa em Port-Vendres, na manhã de 25 de setembro de 1940, pedindo-lhe ajuda na travessia da serra que o separava da liberdade.
imagem: Gleen Ligon
(continua num próximo post)