A MERETRIZ IMAGINÁRIA
Robert Stock |
Por Ney Ferraz Paiva
A Meretriz Imaginária, como se nomeou esta pequena antologia, é um
conjunto significativo de seis poemas de Robert Stock, traduzido por Mário
Faustino, na década de 1950, e destinava-se a ser publicado na Revista NORTE,
dirigida por Benedito Nunes, Haroldo Maranhão e Max Martins. A revista, que
circulou
entre 1951 e 1952, com sua
Rosa dos ventos (desenhada por Peter Hilbert) estampada na capa, pretendia servir de guia para o que de mais
inventivo se produzia na literatura feita em Belém do Pará e em toda a região
Norte do Brasil, mas fechou as portas na 3ª edição. Depois, as traduções perfizeram
trilhas paralelas, sobretudo depois da morte de Mário Faustino em novembro de
1962. E chegaram até mim em 2000, pelas mãos do poeta Max Martins. Umas "folhas de ofício datilografadas" pelo próprio Mário Faustino, constando de ligeiros mas preciosos comentários de Max Martins. Cópias que infelizmente se extraviaram. Seguiram o desvio.
O espaço literário é por excelência o
ambiente em que as coisas desaparecem para reaparecer outra vez com maior força
e potência. A presença lendária do poeta norte-americano Robert Stock em Belém
revela uma paisagem incrível que estava sendo conquistada, como um espaço novo
de criação e pensamento, sem nenhum controle convencional. Nele, tratava-se de
se fazer as conjunções estéticas de um sistema aberto, mantido por diálogos e
conversações. Aí a escrita, mais do que assegurar o lugar, o abrigo doméstico
onde se pode circular com desenvoltura e proteção, aproximando o escritor e
todo artista de um cão se enovelando nas pernas do dono – promove outra vez a
variação, o revezamento, a dispersão. Amar, fazer, destruir.
Robert Stock promoveu na Amazônia um
ambiente de cultura de potência sempre transformada e renovada e por fazer.
Aprendeu, ensinou, conviveu e compartilhou um saber que permite ao homem chegar
a um lugar, algum que seja, e daí se retirar a outro, sempre fazendo,
refazendo, multiplicando o saber nômade. Seguindo o lema “A man must build a
house” (um homem deve construir uma casa). Robert Stock deixou ali essa casa.
Uma arquitetura da diferença. A escrita, na verdade, sem-casa,
sem-arquitetura nenhuma, que atinge um ponto de indiscernibilidade –
de paisagem rasgada, lacerada, inconclusa. A linguagem estrangeira e da
ruptura. Em permanente reinvenção. E que sempre volta.
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ALGUNS POEMAS/Robert Stock
Por Mário Faustino
Desde o impulso ordenador que Ezra Pound
lhes deu no princípio deste século, são os poetas nascidos em terras de
América os que contribuem com o maior contingente desse exército de grandes
artistas que fazem da poesia contemporânea em língua inglesa a mais importante
do Ocidente: o próprio Ezra e mais Eliot, Hart Crane, William Carlos Williams,
Wallace Stevens, E. E. Cummings, Marianne Moore, John Peale Bishop, Kenneth
Patchen e tantos outros, velhos e moços, têm escrito muito do que de melhor se
há feito em verso em nosso século. Talvez provenha desse fato não só dos
poderosos motivos que fornecem meio e raça jovens, estudantes, imprevisíveis
dos Estados Unidos, como, ainda mais, da atitude honesta, artesanal, científica
mesmo, com que os americanos se aproximam do ato poético: desenvolver a
eficácia da língua antes de tudo, e renová-la, torná-la sempre mais e mais cantabile,
deixando para um plano indispensável mas imediatamente secundário as questões
de posição pessoal, de mensagem e profecia, de escolha entre a torre de marfim
e o matadouro...
Um desses poetas, considerado entre
seus pares, embora inédito em livro, como um dos primeiros valores da geração
de trinta anos da poesia norte-americana, habitou entre nós durante mais de
dois anos: esse grande Robert Stock, o publicano Bob de nossas rodas de Central
Café e de El Marrocos... Esse Bob que é o especimen típico da fauna variegada
de Greenwich Village, o heroico bairro boêmio que forma inexpugnável recife de
caridade, liberdade e anarquia no farisaico oceano da América de hoje. Pobre
quase no sentido da lei, vivendo, num dos subúrbios mais miseráveis de Belém,
com a família de cinco pessoas, apenas de seus esquálidos recursos de professor
– por sinal incomparável – de inglês, vestindo como um asceta e parecendo em
tudo com um deles (por fora; por dentro era dos que acreditam ser preciso
perder-se primeiro para depois achar-se...), conseguiu ele emprestar a alguns
de nós, aos que queriam aprender, um pouco de sua maravilhosa experiência, de
sua unidade de espírito, de seu dar-se inteiramente à oração contínua da poesia
e, também, algo de sua extensa cultura, de seu equilíbrio crítico, de sua justa
escala de valores, de seu exato senso poético.
Bob já partiu, de volta a Nova York. Deixou-nos entretanto, além de sua
indelével lembrança, a sua grande poesia, tão revolucionária, tão coalhada de
experimentações existenciais e de laboratório, ao mesmo tempo, que acumulando
em si mesma todas as conquistas seculares de uma língua incomparável, de
Chaucer a Landor, dos cancioneiros e tradutores isabelinos a Browning, de
Jonson a Emily Dickinson, de Donne a Hopkins, de Blake a Dylan Thomas, reunida
num livro a ser em breve publicado em Nova York e cujo título bem exprime seu
escopo e seu destino: “Some Signs Visible Before Judgement”, “Alguns Sinais
Visíveis Antes do Juízo”. Os mais relevantes poemas desse livro (“The Wandering”,
“The Dance”, “Jeremiad” etc.) são além de dificílimos de traduzir, longos
demais – alguns de mais de dez folhas de ofício datilografadas – para uma
revista como “NORTE”. Preferimos, assim, destacar uns poucos exemplos de sua
lírica menor, aqueles, dentre todos, mais fáceis de traduzir sem ensombrar em
demasia a glória lúcida do original.
Desde o impulso ordenador que Ezra Pound
lhes deu no princípio deste século, são os poetas nascidos em terras de
América os que contribuem com o maior contingente desse exército de grandes
artistas que fazem da poesia contemporânea em língua inglesa a mais importante
do Ocidente: o próprio Ezra e mais Eliot, Hart Crane, William Carlos Williams,
Wallace Stevens, E. E. Cummings, Marianne Moore, John Peale Bishop, Kenneth
Patchen e tantos outros, velhos e moços, têm escrito muito do que de melhor se
há feito em verso em nosso século. Talvez provenha desse fato não só dos
poderosos motivos que fornecem meio e raça jovens, estudantes, imprevisíveis
dos Estados Unidos, como, ainda mais, da atitude honesta, artesanal, científica
mesmo, com que os americanos se aproximam do ato poético: desenvolver a
eficácia da língua antes de tudo, e renová-la, torná-la sempre mais e mais cantabile,
deixando para um plano indispensável mas imediatamente secundário as questões
de posição pessoal, de mensagem e profecia, de escolha entre a torre de marfim
e o matadouro...
A MERETRIZ IMAGINÁRIA
ou, REFLEXÕES EM TORNO DA POSIÇÃO
ONTOLÓGICA DOS UNIVERSAIS
Então é isto comum a todos? Tomá-la,
essências, fitas, laços,
para juntos subir a escada louca tão de
mansa gasta
que tiramos os sapatos, para exilá-los
com Deus!
Seus braços curvos como balaústres
agarrados para impedir a queda
através dos mutáveis sinais do tempo –
e o beijo dela
arrancando-me, mãos vermelhas, de seus
braços invulneráveis.
Beijos perdidos em florestas natais
enquanto suas coxas selvagens
são lavadas pelo eclipse da lua – oh,
Sônia, Sônia,
é comum isto, a todos? Encontrar-te,
luminosa e corroída
como janelas se abrindo para a vitória
bárbara da aurora,
e contigo lutar corpo a corpo, supremo
num cemitério, entre ossos secos,
despir tua paixão.
Tamanha fome é contemplada friamente
pelos anjos de pedra.
Pois esta ordem, simetria, a brilhante
quadrilha, estará tudo em guerra?
E jamais uma nódoa de sangue para
turbar essa mudez glacial?
ARCO DO TRIUNFO
A noite
arqueia a cidade
com dez pelicanos escuros.
A noite é silente, profunda.
A criação dorme um sono
profético de nosso fim
na noite – tão silente, tão profunda.
Os pelicanos
traspassam a pompa de osso;
belonaves iradas
geram parábolas de ódio
numa lua cinemática.
Com dez pelicanos escuros
a noite
entra na cidade.
TRANSFIGURAÇÃO
Eu, um dia envergonhado
de minha própria voz se arrebentando
contra a punhal de sua corda única;
envergonhado de minha boca, retorcido
peixe-estrela encalhado na maré;
deste corpo grotesco envergonhado,
deste corpo gauche, despido de
esperança,
nos próprios ossos crucificado;
com vergonha do cabelo de espinheiro
e dos joelhos de canivete –
Eu, mirabili dictu, eu
até eu transfigurado
este todo que sou
(por obra da mulher indiferente
conspurcado como qualquer estrela-cão
atirada nos pântanos)
transfigurado na maravilha da ressaca
pelo menor, mais vagabundo olhar ou
gesto.
ALBA
Lua
nácar de Endimião
olha! Por que vem tão cedo
a aurora?
Fêmea de cera
Oh tu que na ressaca de nossas atrações
és pérola boiando,
evita, dispensa a aurora.
Que farás se a teia maligna do sonho
falhar em te apanhar inteira?
Jamais terás de novo outro suborno
de escuridão tão grande quanto este
por onde tombas, esta noite.
ANTÍPODAS À VISTA
Fiel à farsa, chega-se afinal
a cavar vidro adentro o seu marasmo
cavando em nada, em esperança de
desvendar o derradeiro espasmo
onde lançar da cidadela o nojo.
Esta tumba persegue essa encantada hora
em que dois inocentes enfrentam Deus
e saltam antes de vir embora
saltam sem saber por que nem como
por que pendia o pássaro, como o
marasmo
se espreitava por trás de seus
calcanhares.
Quem mandou a serpente acamar o espasmo?
Alas, poor Yorick – esses
dinamarqueses!
E quando ele erra até aquela hora
onde o dia termina o seu breve passeio,
a própria noite arrasta o corpo embora.
POEMA SOBRE O SÁBADO
DE ALELUIA
Para
Harriette
agora também conhecemos a excelência
deste pilar que
esta chama brilhante aqui ascende. Para
a Glória de Deus!
– Bênção das Velas da Páscoa
The cistern contains; the fountain
overflows
–William Blake
I
Esta noite, quando tudo que floresce
No ar e no recuo imenso das marés
menstruais
Dilata além de seu limite os nossos
fôlegos;
Quando o órgão crescente contraponteia
A grama ereta, a escuridão pesada
De pólen, esta noite surge pleno
O Gral do Espaço, o Gral vegetativo.
Lançadeira, Pacífico une e isola
Ásia e América; uma visão fluindo
Sobre a carne mitrada, enlaçando
O vigor verde dos divididos
Atolls de amor, num continente só.
II
Nalgum lugar, pilar após pilar, se
acende
O triplo castiçal, desnudam-te profana
Em minha carne às hóstias consagradas.
QUE DESÇA SOBRE AS ÁGUAS DESTA FONTE
TEU PODER, SANTO ESPÍRITO
QUE FAÇAS FÉRTEIS PARA A REDENÇÃO
A SUBSTÂNCIA INTEIRA DESTAS ÁGUAS.
Esta noite, o fogo entra na água, se
renova
Pirosoma rampante (cobra oca
Juntando à tua fonte a chama em
sangue!)
Confirmando Jesus erecto sobre o lago:
Aquela mesma luz verdadeira que o
amante
Tristão, de leme gasto e remo roto,
quando
“O que era rasto era centelha de ouro”
Espalhou no quadrante dos Sete Mundos
Equilibrados, diurna luz trancada
Em pedra de palavras, aguardando
A volta da Palavra.
III
Constelada como a Puta de Cristal
Rumo-norte bordel do cérebro, semeia
A Madalena, amadurecer o ar
No ano eunuco; o inverno rebenta,
Noivo e noiva de flor;
Apertados os céus são pródigos de
estrelas
Que brilham fora das dimensões: não
são.
Ah nem no tempo nem no espaço existe
Espaço para nós; só podemos entrar um
no outro
Na flor apenas, de noivo e noiva.
ROBERT STOCK
Imagens: Saul Leiter
Eu me pergunto: por que nunca ouvi falar em Robert Stock, mesmo morando em Belém e tendo cursado uma faculdade de Letras? Há alguma coisa muito corroída e não é na alfaiataria do Ney Ferraz...
ResponderExcluirNey! Maravilhoso o teu espaço! Admiradíssima com teus versos, enfim, vou até seguir-te (coisa rara!)rss. Um abraço.
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