o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Essa poesia é pra tocar no rádio


1. a leitura

Lê sem ler, o que só é possível num certo de-lírio. [Jacques Derrida]


O inútil de fazer, segundo João Cabral de Melo Neto, vale mais que não fazer. Fazer está na ordem das debulhadas, fazer o pensamento pensar, fazer a escrita começar seu desconhecer – escolher seus escolhidos. José Inácio Vieira de Melo é um desses tais que vêm ao mundo pra não ter outras virtudes, que não as de poeta, o mais inútil dos fazeres. Por que outro motivo alguém se colocaria a cultivar rosas escarlates em pleno sertão – sem ter como manejar mais do que palavras? Ato de sensualidade, mostrar a escrita ao outro. Tocar, esfregar, afrontar. Múltiplos lances-movimentos que desejam trocas, reverberações de um sentir novo, aberto, total. Nada mais inútil, e não menos imoral, fazer frente aos narcisismos, às individualidades com a leitura. Instintivamente, o texto vai se adestrando no hábito de não se dirigir a ninguém, ou, por outro, de simular ao menos o receptor incauto. Se há uma escrita que escolhe, há uma voz que se quer ouvida, distinguida, ampliada, mesmo que por seu obscuro assovio. Josefina não canta, ela apenas assobia pior. É pela voz que o texto começa seu devir animal. Ler-escutar é uma metamorfose. E por esse duplo ato o poeta opera rebeliões entre dois mundos: o mundo irreal, o mundo cotidiano. Lança seus temas numa rede de repetições e variações intermináveis. Se de um lado enfatiza a literatura que circula nas comunidades centrais do sertão – literaturas bem menores que as menores, como cordel, cordões, reisados; de outro, se lança num circuito aberto de voo estético sem fronteira, que inclui Gertrude Stein, ecos de Carlos Drummond, o formalismo precioso e raro de João Cabral de Melo Neto, a essência marítima de fazer viajar as viagens em Herberto Helder e Gerardo Mello Mourão – tudo atravessado pelos ritmos inumeráveis a que aludiu Manuel Bandeira, e por isso mesmo arrisco dizer que ao fundo dessa poesia há lances embrionários de bossa nova, escutem, escutem, escutem... Mas que ninguém se engane: não se trata de uma escrita meramente submetida aos processos cultos dos grandes centros, de que muito se tem servido certa poesia desmunida de vigor e originalidade. A cópia sem o rigor dos ensinamentos, que se reduz à má sorte dos aprendizes sem talento, sempre entregues a itinerários determinados com antecedência. Música & escrita como que numa apresentação sussurrada, rouca e de assovios dissonantes, que talvez se pudesse tocar no rádio, como num delírio de escuta-e-leitura que manipulasse o sistema de recepção da poesia, quase nunca conflitante e alterado – convencional a não mais poder. Dos influxos do sertão às conjunções do ser-tudo, a poesia é convivência, vida comum, reimpressão dos caminhos dos homens a que Jorge Luis Borges bifurca, na ausência de mapas e atlas mais precisos, com o uso desproposital de um espelho e uma enciclopédia. José Inácio Vieira de Melo, algo que numa contraleitura dos lugares e paisagens a que se ajustam expectativas reais e sonhos de paraíso, movimenta sua poesia às direções remotas dos sentidos dos homens, aos seus desenfreados horizontes, às rotas empoeiradas a que uma suposta rosa-dos-ventos indicou o futuro – ou terá sido o passado? Com todas as variações e permutações iminentes.


2. o livro


Se um homem atravessasse o Paraíso num sonho, e lhe dessem uma flor como prova de que lá estivera, se ao despertar encontrasse essa flor em sua mão... o que dizer então? [Coleridge]

José Inácio Vieira de Melo, em “Roseiral”, empreende o ato de fazer o outro perceber/perceber-se nos duplos e nas transmutações de si: despertar “a vontade de plantar pedras em outras cabeças”, como consequência de uma linguagem que joga, brinca, viaja – e não se faz trocar por fichas neutras. Daí que, desde os poemas iniciais, o poeta evoca o retrato de cabeças como um gravurista que não se basta à representação. “Eu jogo uma pedra em tua cabeça para que ela cresça em dor”, ou: “A tua cabeça é um precioso amuleto dentro da minha cabeça”. A iconografia que o poeta quer é outra. Uma que fizesse circular um retrato que fosse o menos comum, do quanto que deste lugar existe, se é que existe o lugar e se pode  falar por si ou de sua cópia, ou de seu vulto – e, assim, não mais ter que estampar uma mesma e única fisionomia no imediatismo precipitado da pergunta: o que é o sertão? Isto não mais. O retrato falado a que certo cinema, certa literatura, certa música não cessam de nomear, fixar. Uma sociologia que não se sabe se das artes, se das suspeitas, se das discriminações. Por certo nunca a das diferenças, das singularidades, das ramificações. Que esses clichês se abram em outros nomes-imagens não como buquês que ornam e celebram uma vida passivamente administrada; buquês que logo murcham nas mãos daqueles que já estavam mortos. Contra isto a potente investida dessa poesia multiplicada, transmutada, saída do silêncio e da solidão – num estrondo, numa pancada: “Para que, plantada em tua cabeça, a pedra frequente a tua existência”.


“Roseiral” tem como horizonte a amplidão. Requer conversa, diálogo, fala amigável, alegre e incessante. E isto é mais do que tentar uma ênfase. O livro todo nos afeta o imaginário com a vivacidade das coisas cuidadosamente feitas, e não arrefece o impulso de subida nas cinco seções em que se divide. Sem sacrificar a complexidade das temáticas, e sem cair na exterioridade do genérico, chega aos pontos de tensão em áreas de sensibilidade que pra muitos pareciam esgotadas, exauridas. Aqui, a “pedra”, a “rosa”, a “odisséia” – ou a viagem e o nomadismo – abrem espaço pra uma cena maior, de acentuada potência elocutória: um fluxo, um nascimento, uma torrente de coisas sendo devidamente despertadas em simetrias secretas. Não é mais o livro numa combinação híbrida de Rilke, Lorca, nem mesmo Celan, mas o livro inaudito. Um que se volta aos segredos como se de um álbum de família vertiginoso e nada dócil, de nomes-imagens travejados; livro que ativa toda a penúria que somos no instante impreciso das horas e descobertas. É o menino, a infância, a casa, o homem – aquele cadinho que somos, pra quem as coisas acontecem e, a uma só vez, escapam, multiplicam-se. “Eu não sei nem pra onde ir com a minha diferença”. O que somos é algo que criamos – somos nossa própria criação e não cessamos de fazê-la aqui e alhures. Formas de criação em linhas, trânsitos, direções fundamentais e intermediárias. Aventuras secretas e prazeres comuns. O aberto. O fechado. A favor disso o poeta adverte de seu modesto e imenso propósito: “E agora eu só sei te falar desse labirinto”.


Ney Ferraz Paiva
imagem: janet & george

27 comentários:

  1. Belo texto. Roseiral é amplo e forte!

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  2. Eu adoro a poesia de José Inácio.
    Espalho Roseiral pela internet.
    Sua poesia me toca.Vigorosa. Toca minha roseira.
    Sinto as pedras, as seivas e as brasas, e o sangue. Rojo. Rosas escarlates.Vi a casa...
    Me identifico.
    "(...) Meu coração é mesmo a rosa viva.
    Por isso muito carinho ao pegar
    suas pétalas - pedras tão aflitas."RosaViva

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  3. Muito bom o seu ensaio, Ney Ferraz Paiva. Parabéns! O José Inácio é mesmo um valoroso poeta. Você dá a medida certa ao dizer que o “ “Roseiral” tem como horizonte a amplidão”.
    Gostei muito de seu blog. Um abraço carinhoso.
    MAZÉ

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  4. Leitura bela e coerente.Lúcida, viva.
    Aliás tão viva que agente toca na carne
    da palavra. Ou melhor, do livro ( ROSEIRAL)
    Mas não só. Tocamos também no sangue
    nos ossos nas células do livro
    que José Inácio Vieira de Melo.

    (Inácio , amigo,
    continue andando
    e nos andando
    com sua poesia
    com essa sua força de vida)
    PARABÉNS


    (Fiz aqui uma ótima leitura
    que me colocou frente a frente
    com o coração de José Inácio Vieira de Melo)
    PARABÉNS


    (MARAVILHOSO BLOG)

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  5. sem tirar nem botar: penso o que pensas. o tal poeta de roseiral é uma dessas criaturas - lúcidas-translúcidas? - que plantam rosas no meio do mato. pra mim, o tal do zé inácio é um vaqueiro que desmontou do cavalo sem desmontar de todo. e que semeia palavras como se elas importassem. coisa de quem nada tem a fazer (pelo menos nesse tecnicista mundinho de merda). adorei seu ensaio. seu blog. e sua absoluta empatia com as palavras. o tal do zé inácio? meu amigo. poeta como pouquíssimos... deve tá agorinha mesmo, encarcerando uma palavra, trepando com ela, gerando um poema. um grande abraço. hasta la vista.

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  6. muito boa a sua leitura, ney. contempla aquilo que é o roseiral: um atirar de pedras na cabeça de todo mundo.

    ¡adiós!

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  7. Ney Ferraz Paiva, parabéns pelo seu blog maravilhoso e pelo seu ensaio da poesia valiosa, que toca todos os nossos sentidos de José Inácio Vieira de Melo.Gostei muito.Abraços!

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  8. Olá, me perdoem, cometi um erro no meu comentário acima ao finalizar. Parabéns pelo ensaio e pelo blog! Abraços, Mércia.

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  9. Ney Ferraz, parabéns pelo blog. Já está nos meus favoritos. Perfeito dizer que, "Roseiral tem como horizonte a amplidão". José Inácio tem mesmo o dom de transfomar pequenez em amplidão.
    Abraços, Alcione.

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  10. "Para que plantada em tua cabeça,a pedra frequente a tua existencia."A análise acurada do texto nos remete ao menino que cresceu no sertão entre pedras e xique-xiques.É música dos carros de boi, plangentes no cair da tarde. Tenho muito orgulho de ser sua conterranea e sua amiga.

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  11. Escrever sobre a poesia de José Inácio é tarefa que exige conhecimento e sensibilidade, e Ney Ferraz Paiva conseguiu, com riqueza de detalhes, criar um quadro do que esse poeta representa e expor em cor, textura e perfume o conteúdo de Roseiral.
    Li o livro e, confesso, não me saciei: continuo lendo e repetindo os poemas enquanto passo pelas ruas, transferindo para o cotidiano a intensidade de seus versos. E, na incapacidade de encontrar palavras que exprimam tamanha beleza, faço-me instrumento para que sua poesia ganhe vida em voz feminina nas Minas Gerais.

    Blog bonito de quem sabe da arte a que se propõe.

    Parabéns!

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  12. fiquei com vontade de me plantar no Roseiral: obra-filha de uma imagem transcendental
    fiquei com desejo de saber com que água se rega o Roseiral, e em que quintal se brota rubro...

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  13. Ney Ferraz Paiva, belo poeta do "nave do nada", livro vencedor do prêmio de minha cidade, Recife, parabéns! Não sabia que além de poeta você é ensaísta ´e dos bons! Tem ideias e não traz aquele pavoroso ranço academicista, repleto de citações e que, além disso, não diz nada. Que bom que você conhece a poesia de JIVM, um poeta que concilia estranhamento e rigor para ir ao fundo da pedra e trazer a flor mineral, a sua "Rosa mística". A poesia de José Inácio é para tocar no rádio mesmo, já que toca no cerne dos nossos corações. Lindo texto. Parabéns aos dois poetas. Beijos.

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  14. Esse livro de JIVM é um salto em comparação com os anteriores. Um salto corajoso, sem dúvida. Esse comentário é mais uma prova de que a coragem valeu a pena. Eu gosto muito de Roseiral e, pelo visto, não sou o único, nem minoria. Num curtíssimo espaço de tempo, muita gente tem escrito elogiosamente sobre o livro. Para mim é uma alegria. O poeta é um amigo caríssimo.

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  15. Anuncio: Estamos todos aqui, suas rosas.

    Advirto: Ninguém escapará de José Inácio Vieira de Melo.

    Obrigado, caro Ney. Sei o quanto que este ótimo texto deixou o nosso Inácio feliz!

    "Livro que ativa toda a penúria que somos no instante impreciso das horas e descobertas".

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  16. JIVM, você é uma representação bela da vida. Em sua obra o pensamento e a realidade formam um labirinto, encontramos a perfeição da arte escrita.
    Abraço, Salusa Ribeiro

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  17. Pois é....vamos dar a César o que é de César!
    felicidade a nossa em conhecer a poesia de JIVM

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  18. Muito especial os escritos de Ney... Daqueles que a gente diz que gostaria de ter escrito!
    Gostei muito: "José Inácio Vieira de Melo é um desses tais que vêm ao mundo pra não ter outras virtudes, que não as de poeta, o mais inútil dos fazeres. Por que outro motivo alguém se colocaria a cultivar rosas escarlates em pleno sertão – sem ter como manejar mais do que palavras?"
    Abraço

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  19. Nas orelhas do livro "A infância do centauro" tem um comentário do Moacyr Scliar que afirma "Teu caminho é grandioso, José Inácio". O experiente escritor gaúcho estava prevendo o que tem acontecido, a poesia de JIVM tem alcançado os patamares mais altos, que são os corações e os sentimentos dos seus leitores.
    Mas quem trouxe a palavra que mais se aproxima do caminho que José Inácio tem trilhado, até agora, foi a poeta amazonense Astrid Cabral, usando um verso do próprio JIVM: "O destino de José Inácio “é escutar dentro do canto a imensidão”." Com outros signos e por outros caminhos, é o que diz o Ney Ferraz Paiva no seu excelente ensaio "Essa poesia é pra tocar no rádio". Lembrei-me, agora, de uma música do Moraes Moreira que diz "Escute essa canção/ que é pra tocar no rádio/ no rádio do seu coração", pois bem, a poesia de José Inácio é pra tocar no rádio do seu coração, dos nossos corações. Parabéns.

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  20. No cerne da questão é onde vai tua seta, uma leitura bem feita do poeta e das poesias, do livro.Uma aproximação entre o ato solitário do ler e a multidão das coisas que se formam na cabeça e que tu as compartilha de forma sábia.Muito bom, e Inácio, faz de sua lavra poética, uma senda de bons frutos, e boas flores.

    Um abraço!

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  21. Òtima leitura Ney Ferraz Paiva e seu blog é muito interessante meus parabéns. O livro Roseiral de JIVM veio para desfazer concepções e refaze-las mesmo sendo a poesia esse fazer inutil. Lendo roseiral também me sinto num album de família um album de cenas fortes e imprevisiveis.
    Parabéns meu caro Inácio

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  22. Ney Paiva é um ensaísta, e dos bons. Como não ser capaz de falar de algo que nos toca tão profundamente, quanto a poesia. Você pode escrever prosa exemplarmente, mas a poesia é tão sonhada quanto pensada, é tão dançada no corpo quanto é escrita. É algo que acontece nos pulmões. Em todos os seus músculos – é possível senti-la nos músculos:
    aberta sobre a página
    a cidade se inicia/termina
    início-fim/a cidade fortuita
    existe/inexiste/perde-se
    subcutânea cova que se diz cidade
    mas não começa/cessa
    não dispara/sai pela culatra
    Fragmento de um dos pulmonáticos poemas de Ney Paiva que a exemplo do poeta José Inácio planta pedras nas cabeças, pela simples satisfação de vê-las derramar algo que não seja trivial. Tem surtido efeito, lhes garanto.

    Juliete Oliveira

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  23. Prezado Ney, apreciei com folgas seu belo ensaio. Embriaga e impele nosso espírito a contemplar a poética de Inácio, uma fartura contínua de novos dizeres, prenhes de sentidos, reveladora ímpar de outras paragens. Felicitações. Aquele abraço.

    Thiago Lins

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  24. parabéns pela atenção crítica que sua obra sempre dispensa, meu amigo. vc merece isso e muito mais.

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  25. Amigo poeta, ainda não li "Roseiral" (em breve!); mas vejo que, definitivamente, é de você que se fala neste ensaio! Abraços.

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  26. Roseiral é um grande momento da poesia: faz passar intensidades, conjunções de vida e morte, vibrações desconcertantes em que a fala é de fato uma escrita. os lugares, os contatos, os corpos se reinventam aí, constituem um bloco de devir... uma usina de ritmos totais que todos devem ouvir-ler... uma poesia pra tocar no rádio.

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  27. Acompanho a atuação poética do JIVM. Roseiral é surpreendente, fala perto de nós, incita. um grande poeta.

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