o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Os três melhores livros de 2009
segundo André Queiroz

a leitura, não qualquer leitura, nem qualquer livro, o livro - relevos da paisagem que se vai contemplando (prefiguração), essa mesma paisagem que será alterada, cortada, penetrada. por vezes, túneis são construídos em meio ao desfiladeiro. noites de trabalho duro. escavações. uma usina imaginária. camadas sobre camadas de pedra. é disso que trata esta listagem nada contábil, competitiva, obrigatória. quem a envia sabe que leitura é engenharia, construção - pensamento.

1) "Para Sempre", Vergílio Ferreira




Trata-se do homem que regressa ao lugar da infância quando já da sua morte próxima. Vergílio Ferreira faz intercalar os tempos narrativos de forma belíssima - como se a caça do tempo perdido nos tomasse de assalto no tanto que do tempo que nos retorna. Forma também de investigar a finitude, a solidão ontológica inscrita no homem. Eduardo Lourenço diz de forma pontual do romance de Vergílio Ferreira: quando o romance começa tudo já se encerrou, todos estão já mortos...

2) "Os Afogados e os sobreviventes", Primo Levi


Outro dos livros do memorialismo de Primo Levi acerca da experiência do Lager (os campos de concentração nazista). Primo Levi - para além de apenas narrar o que se deu, o que se experienciou - busca refletir sobre a própria experiência do contar, o valor do testemunho. E será ele quem dirá que, no caso do Lager, aquele que testemunha o faz porque não chegou ao fundo do acontecimento, que não comporta a palavra. Questão então será: o testemunho é necessariamente dos que não viveram ao fundo o acontecimento, ou noutros termos, o testemunho é d'algum modo e sempre uma impostura por trazer consigo o feito que não lhe é delegado pelos que não voltaram para dizer de si o que seria de se dizer.

3) Trilogia autobiográfica de Elias Canetti - 1) A Língua absolvida; 2) Uma Luz em meu ouvido; 3) O Jogo dos olhos



Belíssimo depoimento de Elias Canetti desde a infância remota aos anos de sua maturidade. E imensamente bela é a descrição dos afetos os mais diversos que se lhe servem à construção daquele que ele é. A morte do pai ainda à primeira infância. Canetti dirá que o desaparecimento do pai lhe custou a imortalidade na forma daquele assalto - a forma abrupta do colapso. O corpo do pai morto pela manhã, ao escritório. E então será o horror o que se experimenta. Toda forma, criança que se era, se brinca como quem distrai em si a perda. E será a mãe à janela

quem lhe dirá as palavras que lhe custarão os anos de sua vida à memória: "Elias, tu aí a brincar, a brincar, a brincar, e teu pai morto, e tu a brincar, a brincar". Para além desta narrativa, toda as andanças da família, os países cruzados: Bulgária, Inglaterra, Áustria. As relações literárias: Musil, Hermann Broch, Veza, entre outros.



André Queiroz é filósofo, escritor, ensaísta e professor do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de "O sonho de nunca”, “Outros nomes, sopro”, “Em direção a Ingmar Bergaman” e do inédito “Patchwork”.
Com o livro “O Sonho de nunca”, ganhou o prêmio de melhor romance do ano da Academia Paraense de Letras. O livro “Outros nomes, sopro” foi indicado pela crítica literária no Jornal “O Rascunho”, de Curitiba, como um dos melhores livros de ficção publicados no Brasil no período de 2000 a 2005. Licenciado e mestre em Filosofia (Uerj e Puc/Rio, respectivamente), é doutor em Psicologia Clínica pela Puc/SP e professor adjunto da UFF (Departamento de Estudos Culturais e Mídia), atuando no Instituto de Artes e Comunicação Social e no Programa de Pós-graduação em Comunicação.

2 comentários:

  1. Meus Caros André Queiróz e Ney Paiva,

    as escolhas do escritor e livre-pensador Queiroz não poderia ser mais apropriada: Vergílio (que o próprio André me apresentou) + Primo Levi e o sempre desconcertante Canetti, são das melhores notícias que a literatura contemporãnea produziu neste já, assim me parece, distante Século XX... Alvissareiro este encontro por essas plagas.

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  2. caro, jorge, acredite-me, andré é um polido escarnecedor da poesia - jamais indicaria entre os melhores livros, um poeta que fosse (rsrsrsrsrsrsrsr). claro, Vergílio Ferreira
    está entre os melhores poetas em qualquer língua e entra em qualquer lista. a mim também foi o andré que apresentou. um grande encontro de leitura.

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