à procura de uma linguagem inabitável louca desgarrada é ela que traz água aos moinhos
o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)
quinta-feira, 23 de junho de 2016
quarta-feira, 22 de junho de 2016
O
OLHAR DE MAX E AS CINZAS
Seria
de certa forma redundante dizer que a obra de Max Martins, pelo menos em um
dado momento, influenciou a minha, já que não conheço poeta paraense de minha
geração ou depois que não tenha sofrido, repito, em algum momento, esta
influência. Então prefiro contar aqui uma historieta que envolve um poema meu e
participação vital de Max Martins. Digo vital porque do resultado desta
situação dependia a vida ou a morte de um livro. Pouco antes de lançar meu
primeiro livro, este passou por uma prova de fogo. Estava carregando os
originais para ir para gráfica, quando encontrei com Max, na Casa da Linguagem, da qual era o diretor na época. Ele pediu para ler um poema e
dei-lhe, aleatoriamente, do maço que carregava, o poema Dezembro 92, dedicado
ao meu irmão que falecera. Ele pegou, leu e ficou em silêncio por,
aproximadamente, um minuto, para mim um longo e interminável minuto, durante o
qual ele olhava, alternadamente, para mim e para o poema, para mim e para o
poema, para mim e para o poema, e durante o que eu pensava: dependendo do que
ele disser este livro vai para a gráfica ou vai para casa. Ao final deste
instante de eternidade ele sentenciou, “este poema tem um ritmo extraordinário,
estranho, singular, diferente”. Alívio. O livro, então, foi pra gráfica.
Dezembro, 92
A Aluizio Tadeu
Entre
o labirinto de estrelas
e
a merda sob elas
ouço
o baque surdo
a
baqueta de osso, o tambor
O
toque imbatível de Cronos
A
mão sabotadora rubricando a cin
zas
um Não, um Z, um Ω
nas pálpebras de meu irmão
nas pálpebras de meu irmão
Antônio
Moura, Dez, 1996.
Ney Ferraz Paiva
PARA MAX MARTINS
etéreo
eterno
rio éter
pocket-poema
hibernal
poeter
adormec ido
gota a dor
nada . tudo
a mortecido
a marahu
(rio que te vestiu)
o
baque
medra
o casco e
segue
miúda
a canoa carcomida
do
arrozal ao (uni ver) sal
do pó ao
pó-homem
po-women
power
Pound
Poeira
o caboclo
aporta no estrangeiro
vai-se além
do
NÃO
ES
TAR
A
QUI
:
lugarejo de encantaria
o mito é o não mais tocá-lo com as mãos
palavra apunh
alada
Harley Dolzane
Rogerio Uchoa
segunda-feira, 20 de junho de 2016
ENCONTRADOS
EM SÃO PAULO ORIGINAIS DE MAX MARTINS
Max Martins deve ter
guardado alguns poemas datilografados de Caminho de Marahu durante uma bebedeira
em 1982. Os poemas ficaram esquecidos todos esses anos numa pasta de couro.
O artista que a usava deve ter pedido ao poeta para guardar os poemas um pouco antes daquele
ponto ápice quando os bêbados descem de uma vez ao abismo. Pode ter sido no Bar do Parque, 3x4 ou num dos botecos
da Condor, arredores da UFPA. Uma coisa é certa: estavam acompanhados da
mulher mais bela da cidade. Ela permaneceria tomada pela poesia durante toda noite como pelas
labaredas do inferno. Dias depois o artista viaja para a Alemanha. Trinta e cinco
anos se passam, já de volta ao Brasil, radicado em São Paulo, num daqueles
instantes em que todas as coisas emergem das sombras, ele se depara com a velha
pasta de couro. Pra quê? Soube logo em seguida: os poemas ferviam ali dentro. Não a
vida acabada, presa no passado, mas os modos de progressão e resistência da poesia. De toda forma, Max Martins acabaria incluindo esses poemas em Caminho de Marahu, publicado em 1983. E distinguiria
extraordinariamente aquele tempo e aquela cidade a que estava ligado indelevelmente. Aquele sistema nervoso – e suas fuliginosas
“palavras/ larvas de nada”.
Ney Ferraz Paiva
quarta-feira, 8 de junho de 2016
max e minha pessoa
● minha pessoa adora jaguares ●
● olhando a quebra do rio passando a mão ●
● sobre a cabeça de max enquanto ele mastiga ●
● olhando a quebra do rio passando a mão ●
● sobre a cabeça de max enquanto ele mastiga ●
● cranios e mãos cruas de macaco ●
● max adora cranios e mãos cruas de macaco ●
● ele ri ele ronrona ele se deita e rola e ri ●
● max adora cranios e mãos cruas de macaco ●
● ele ri ele ronrona ele se deita e rola e ri ●
● como gosta de cranios e mãos cruas ●
● de macaco max o belo jaguar de minha ●
● pessoa passando a mão em sua cabeça furta ●
● de macaco max o belo jaguar de minha ●
● pessoa passando a mão em sua cabeça furta ●
● cor sua imensa cabeça q mastiga cranios ●
● max agora dorme max agora sonha max deixa ●
● correr a baba da mais pura felicidade ●
● max agora dorme max agora sonha max deixa ●
● correr a baba da mais pura felicidade ●
● como se tivesse caçado na floresta ●
● max sabe q caçou sabe q esses cranios ●
● q todas essas mãos de macaco cruas ele caçou ●
● max sabe q caçou sabe q esses cranios ●
● q todas essas mãos de macaco cruas ele caçou ●
● entre as arvores entre as pedras da floresta ●
● agora mesmo minha pessoa sabe q max bebe ●
● agua na lagoa entre as arvores da floresta ●
● agora mesmo minha pessoa sabe q max bebe ●
● agua na lagoa entre as arvores da floresta ●
● sentindo o medo q ele provoca o silencio ●
● daqui a pouco ele saira da lagoa pra dormir ●
● cheio de cranios e mãos cruas de macaco ●
● daqui a pouco ele saira da lagoa pra dormir ●
● cheio de cranios e mãos cruas de macaco ●
● se deitara sonhando q minha pessoa passa ●
● a mão em sua cabeça enquanto ele sonha ●
● com uma lagoa e cranios e mãos de macaco ●
● a mão em sua cabeça enquanto ele sonha ●
● com uma lagoa e cranios e mãos de macaco ●
● mas minha pessoa não se engana nem pode ●
● porq sabe q minha pessoa é apenas uma parte ●
● do sonho de max depois de comer cranios ●
● porq sabe q minha pessoa é apenas uma parte ●
● do sonho de max depois de comer cranios ●
● de comer mãos de macacos depois de beber ●
● agua na lagoa cheia do silencio feito por max ●
● como minha pessoa a lagoa e os macacos ●
● agua na lagoa cheia do silencio feito por max ●
● como minha pessoa a lagoa e os macacos ●
*
Alberto Lins Caldas
Imagem: ney ferraz
paiva, “max o belo jaguar”, colagem, 40 x 30cm, 2016
quinta-feira, 26 de maio de 2016
PARA TORCER O PESCOÇO DA PALAVRA
O poeta Max Martins, 69 anos, não
acredita na linguagem cotidiana: ela não serve mais, pois está em agonia. Sua
sina é um morrer contínuo, e só os poetas podem salvá-la deste destino. Para
isso, o poeta deve mudar e renovar seu trabalho, buscando cada vez mais
melhorar o seu "ofício".
Ele declarou isso numa entrevista
concedida em 1994, e que até hoje permanecia inédita. Perguntado sobre
se concordava com a posição que lhe colocavam, de "maior poeta vivo do
Pará", preferiu deixar ao critério de cada leitor. Não lhe interessam
honrarias, mas o prazer de se defrontar com seus desafios estéticos. E isso
desde jovem, quando fez de suas próprias crises criativas um caminho em direção
à renovação.
Se O
Estranho (1952), seu primeiro livro, representou a ruptura com o
parnasianismo dos primeiros poemas, ao adotar um verso livre e discursivo, Anti-Retrato (1960) já mostra o poeta a
caminho do concretismo, na composição espacial das
"palavras-pássaros" na página como geração de significados, o que
seria desenvolvido mais profundamente nos livros posteriores. A partir daí, sua
obra se consolida em dois temas centrais: o da reflexão do próprio ato de
escrita e o do amor sensual. Este acompanhado de um movimento metafórico: a
natureza é sexualizada em imagens densas, e o próprio sexo é
"naturalizado" na maré de signos de sua poesia.
Nos últimos tempos, vê-se uma grande
influência da tradição oriental, talvez fruto de uma busca da serenidade,
advinda com o transcorrer de décadas de lida poética. Em seu último livro, Para Ter Onde Ir (1992), essa tendência
chega ao ápice, com a utilização do I-Ching, tal como relatado pelo poeta na entrevista.
Atualmente, Max Martins é Diretor da
Casa da Linguagem. Ele conta que isso gera uma situação engraçada, pois todo
mundo sabe onde encontrá-lo, e o que mais ele recebe são aspirantes a poetas, lhe
trazendo escritos na maioria bastante incipientes. Por mais que critique com
rigor os trabalhos, o poeta sempre aconselha os que o procuram a persistirem
lendo e buscando a "amizade poética universal".
Seriam apenas quinze minutos de
entrevista. Max Martins estava em seu local de trabalho, e é um homem muito
ocupado. Acabou virando uma conversa de quase uma hora, onde o entusiasmo pelos
assuntos da poesia fez o entrevistado esquecer um pouco do relógio. Entre
prosaicas interrupções para tratar de assuntos burocráticos, o poeta respondeu
o que se perguntou e o que não se perguntou, de forma eloquente e até
emocionada.
A seguir, os principais trechos do
depoimento:
"PARA TER ONDE IR" (1992)
Os poemas deste livro nasceram de uma
experiência nova. Veja, não existe hoje uma vanguarda mundial na poesia,
portanto cabe a cada autor, individualmente, se renovar. Os artistas têm medo
de se repetir. Têm que ter esse medo. Então, estes poemas nasceram de uma
deliberação minha de jogar o I-Ching, o Livro das Mutações. A cada mês, eu
fazia um lance, e a partir do hexagrama sorteado, fazia um poema. Esse poema
não era sobre os comentários do hexagrama: eu não estava interessado em
descrevê-lo. O que eu queria era apenas deixar que a magia do livro e de suas
imagens me desse um clima para escrever. Era um jogo, pois o próprio I-Ching o
é. Ele não é um livro de adivinhações, e sim algo que lida com a intuição do
jogador. Para o próprio título do livro eu também fiz um lance.
Nesse processo houve várias
coincidências. Para a capa do livro, o diagramador, que é o Age de Carvalho,
poeta e artista gráfico, substituiu as letras "e" do título por
hexagramas que se assemelhavam a essa letra, apenas pelo visual. Ora, o
hexagrama que está colocado na palavra "ter" é o que significa
"modéstia", o que é um contraste. E o que está na palavra
"onde" é relativo a "viagem". Isso não foi intencional,
pois ele não conhecia antecipadamente o significado dos hexagramas.
Outra coincidência foi quando eu joguei
um lance para fazer um último poema, terminando o livro. E saiu justamente um
hexagrama chamado "Após a Conclusão". O resultado foi tão emocionante
para mim que eu não me preocupei em escrever com o clima daquele hexagrama:
aproveitei simplesmente o seu próprio título, e usei nele versos, frases e
palavras tiradas de antigos livros meus, como numa colagem.
A CABANA DE MARAHU
Quando falo em ter aonde ir, que é
preciso ir, quero dizer que essa viagem não é exterior, é interior. Um
lar, uma casa, é o lugar em que a gente fica, confortável. A minha cabana em
Marahu é muito pequena, um pouco maior que esta sala. É toda cheia de enfeites
nas paredes, fotos, poemas, e eu me sinto bem lá. Eu a preparei para isso, para
um conforto interior e exterior. Mas não é o lugar de se ficar, é o de ter de
onde se ir. Ir para essa viagem, que é interior, a partir da paz e do sossego
que eu encontro. Eu digo que a minha cabana é o ventre da minha mãe.
SIMPLICIDADE E INSPIRAÇÃO
A simplicidade tem a ver com o clima do
I-Ching, que é simples; mas isso é aparente, já que tudo ali é símbolo. A
simplicidade nasce da própria complexidade do ser humano. Em arte, a
simplicidade é apenas a da primeira olhada que se dá no texto, pois há na
verdade um trabalho, uma complicação. Desde Baudelaire, Verlaine etc. essa
simplicidade é intelectual, é cerebral. Não tem essa coisa de
"inspiração", de espontaneísmo. A poesia é um ofício mesmo, implica
uma técnica, uma intuição, uma influência de toda a tradição de arte poética.
NOVO LIVRO
Não está em vista no momento. Bem, eu
tenho algumas coisas escritas, numa pasta. Nessas últimas férias, que passei em
Marahu, eu a levei, para começar a organizar e rever textos para um novo livro.
Eu tinha paz, tranquilidade e silêncio para fazer isso, mas fui com um poema na
cabeça, e passei o tempo todo trabalhando nesse poema, nem abri a pasta. O
Cejup (editora de Max) vem insistindo, pois há dois anos eu prometi esse novo
livro, mas ele não pode sair ainda.
ORIENTALISMO
Muitas imagens recorrentes em minha
poesia (o tigre, as pedras, o jardim, o lago, a água, o ar, etc.) vêm da
influência do oriente. Eu li muito sobre o zen-budismo. Não tenho religião (e
nem acho que o zen seja uma religião, mas sim uma filosofia de vida), mas em
matéria de misticismo, em perguntar ao desconhecido, para a tranquilidade do
ser humano, o zen foi o que mais me impressionou.
Eu sou tigre no horóscopo chinês, e
tenho inclusive em minha cabana uma pintura coreana muito antiga, com a imagem
desse animal, que eu acho de grande beleza, e que utilizei como tema várias vezes.
EROTISMO
Nessas imagens da natureza, fluindo e
refluindo, há um erotismo, não apenas temático, mas na própria estrutura do
poema. As palavras se amam, se beijam, se trocam, transam: as palavras fazem amor.
Palavra com palavra, imagem com imagem. Como diz Roland Barthes, a gente escreve,
afinal de contas, por um desejo. Pode ser a ânsia, o desejo de comunicar, de
encontrar quem ouça, encontrar o outro. É esse o prazer do texto. Com as palavras,
a visualidade da página, e também o som, pois o poema é antes de tudo dito, e
não escrito; isso o poeta nunca deve esquecer.
PRAZER E ANGÚSTIA
Onde há prazer, há angústia. É o preço
do prazer, o outro lado. Tudo é dual, tudo se relaciona. A dor não existe
sozinha, mas sim porque existe o prazer. Quanto se deseja muito o prazer, vem
em seguida a queda da cama. Existe um provérbio árabe que diz: quem dorme no
chão, não cai da cama. Aí entra também o budismo: diminua o seu ego, para
diminuir o desejo e o sofrimento. Quando a gente está triste, ou muito alegre,
a gente canta. Poesia é o cantar, é o lirismo, é deixar o "eu" falar.
AUTOR E LEITOR
O poema só existe quando encontra o seu
leitor, que pode às vezes ser mais poético que o autor do poema. O poema é um
leque de sugestões várias, de coisas sutis, dúbias, incertas, misteriosas. Cada
leitor tem o seu próprio prazer, colhe um significado diferente, diferente até
do que o poeta, ao escrever, pretendia dizer. A poesia não é o que o autor quis
dizer, é o que o próprio poema "quis dizer". Ele adquire uma
autonomia. É aquilo de que o Umberto Eco fala, a obra aberta, que quanto mais
se fecha, mais pode ser aberta.
Mais mistério se vê quanto mais se
cogita sobre o mistério.
A partir do meu segundo livro Anti-Retrato (1960), os meus poemas têm
como motivo principal o próprio poema, o que é uma tradição da modernidade.
Quando o poeta, através do poema, comove
o leitor, chega ao seu coração, então alcançou-se o ideal, que é a
universalidade da comunicação. Porque a linguagem comum, de todo dia, já não resolve.
Eu desconfio das palavras, e prefiro, como defende o Octávio Paz, torcer o
pescoço da palavra.
REGIONALISMO
O regionalismo está na minha obra. Eu
não sei como, mas tem que estar. Eu nasci e vivo aqui, sou fruto desta cultura,
desta paisagem, deste clima, então tem que estar aí. Mas é uma relação sutil.
Eu já disse antes: não escrevo sobre a Amazônia, a Amazônia é que me escreve.
TRANSCENDÊNCIA
À primeira leitura, posso parecer um
poeta formal, erudito ou frio. Mas não sou: a minha ânsia é unir, num fluir,
vida e poesia. Todo poema é autobiográfico, porque você está falando de si. Ele
reflete o seu ser, o que você recebeu como experiência, das coisas mínimas aos
grandes momentos da vida. A vida se compõe de fragmentos unidos, fluindo, se
amando, se misturando, tudo à procura de uma unidade, à procura de uma outra
parte de si, do próprio "eu". Isso é místico. É o
"religar".
Religião, religare. É a procura do resto, do outro, do outro no verso.
A compreensão disso acaba com o
dualismo, preto/branco, dor/prazer, belo/ feio. Mas para isso é preciso uma
transcendência. Eu a procuro nas palavras, nas imagens, nisto que está dentro
de mim, no meu sangue. Então, embora os poemas não sejam biográficos em si,
eles têm a minha vida. As frases são rios de sangue, e os versos, artérias que
correm.
AUTODIDATISMO
Eu não estudei nada institucionalizado,
não fiz Universidade, graças a Deus. No início porque não pude, não fui levado
a isso. Se eu tivesse feito Universidade, talvez me tornasse um bom professor, mas
talvez também não me tornasse poeta. Acho, numa visão pessoal, que a
Universidade prejudicaria a minha criação como poeta. Minha poesia não está
desligada do erudito, mas não é uma coisa acadêmica.
"A FALA ENTRE PARÊNTESIS"
(1982)
Esse livro eu fiz com o Age de Carvalho.
O trabalho de cada um, você só pode identificar pela caligrafia (ele folheia a
edição original, que tem a reprodução do texto manuscrito). Ora era um que
começava um poema, ou um poema-fragmento, ora era o outro. São quinze poemas,
que representam as quinze pedras de um jardim zen-budista, um jardim de areia,
o que é uma relação com a tradição poética oriental, pois é uma renga (poema
feito em conjunto, tradicional no Japão medieval). Quando pensamos em fazer o
último poema (que se tornou o primeiro), ele já estava pronto: nós tiramos
versos dos outros quatorze, para que fosse uma caixa de ressonância.
É um livro bonito. Me agrada o aspecto
visual do livro, gosto muito de pintura. Eu tenho um diário, que já escrevo há
alguns anos, e que é fruto da minha necessidade de visualidade. É todo com colagens.
Muitas vezes, eu escrevo nele a esmo, para depois tirar poemas.
PAPEL DO POETA
O poeta tem que ser humilde diante do
mistério que se enfrenta ao manchar uma página. Tem que ter a vontade de que
aquilo que ele está escrevendo seja a melhor coisa do mundo. Tem que ter respeito
por si mesmo e pelo seu trabalho. É a obrigação dele, obrigação social.
O papel dele não é escrever sobre os
problemas históricos ou sobre o momento político-ideológico, mas sim, fazer o
seu ofício bem feito. Se ele faz bem o poema, ele está participando da evolução
da língua de seu povo. Impedindo-a de morrer. A fala cotidiana é um morrer, ela
perdura por muito tempo, se desgasta, e por isso tem que se renovar, e quem vai
renovar é o poeta. Essa é a obrigação dele para com a sua comunidade.
Entrevista
concedida a Marcus Pessoa e André Ichihara, Casa da Linguagem, Belém, 1992
Texto: Marcus Pessoa, André Ichihara e Andréa Ponte Souza
Imagem: ney ferraz paiva, "transfixar max", colagem, 40 x 30cm, 2016
terça-feira, 24 de maio de 2016
Clarice é chamada ao telefone
Alô,
Clarice, é você?..
Eu
estava pensando, ou melhor, eu estava tentando pensar sobre você e a sua
escrita, alguma coisa a partir de Maurice Blanchot… mas o pouco que pude se
reduziu à minha escuta longeva de você mesma.
Como?
Há quanto tempo nos falamos? Você não se lembra? Desde aquela primeira vez na
escola, quando você veio, ou melhor, trouxeram o livro. Nós ainda líamos na
escola. Aquela foi a sua vez. A primeira. E diante do livro aberto eu te achei
bem esquisita, lia e não entendia nada. Naquela época eu tinha dez pra onze
anos, momento em que começava a experimentar a sensação de estar e não estar;
de distância com respeito ao que me rodeava; de indefinida fragilidade. Era
minha vez de viver o exílio: a minha infância estrangeira em países distantes.
Quando criança somos sempre todos viajantes.
Cúmplices?…
Sim, cúmplices!
(Tratava-se do livro Água viva, lançado em agosto de 1973. Clarice tinha pela
primeira vez um livro inteiramente entregue à desocultadora materialidade
da linguagem.)
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra
pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra — a entrelinha — morde a isca, alguma
coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio
jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a
isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.
— — — — — — — —
Clarice,
hoje se sabe bem, o problema enfrentado por você era o de como escrever numa
língua (fosse o português, o inglês ou até mesmo o russo) abrindo brechas que
lhe permitissem remoldar essa língua e reconstruir seu pensamento. O contato
com a obra dos autores de língua inglesa, sua rede de afinidades — em especial Katherine
Mansfield e Virginia Woolf — para tanto foi decisivo: através de uma prática de
leitura, escrita e tradução. E nesses termos, escrever a partir apenas da
escrita, colocou você ainda na categoria de uma anunciante da palavra. De
um mundo para o qual o principal resíduo de memória é a palavra. O testemunho.
Como em Kafka, sobretudo…
O
que? Sim, sei, sei, você detesta todas essas aproximações. Perdoe-me. Estou
quase repetindo a estrutura de uma crítica que você rejeitava ativamente.
Quando se apontou a náusea sartriana para demonstrar a estranheza latente de
sua obra…
É, você não estava interessada nas engrenagens filosóficas
existencialistas. Para você era mais um traço de inadaptação das personagens — as que querem e não
querem; as que mostram e não mostram; as que recuam a cada passo que tentam dar
adiante. Conteúdo e forma a se imiscuir. Clarice para construir sua própria língua
dentro da língua brasileira terá que passar por outras línguas e por
outras poéticas e narrativas por meio da revisita à ficção já escrita numa
língua estrangeira. Que poderá ir se metamorfoseando a seu corpo de mulher como
também conter a sua assinatura. Produzir uma dicção própria, que não se
distancie da sua necessidade de sobrevivência, de produzir brechas, espaços de
respiração e, ao repetir o gesto de escrita kafkiano, inscrever-se também numa
espécie de genealogia, o que é decisivo para que qualquer pretendente se torne
um escritor…
(Clarice, pela sua relação com o passado ou fazendo contas com ele,
nunca pretenderia escrever como os russos modernos, nem como palavra de ordem,
nem como revolução — sua escrita
foi, isto sim, permanentemente radical — sem ser feroz, nem implacável — e ao mesmo
tempo fina, tênue, precisa como um estilete).
— — — — — — — -
Olha,
Clarice, você na Suíça. Você achou mesmo bem espantosas aquelas mulheres com
chapéus espalhafatosos?
Ah,
contida Clarice… Eu estava pensando esses dias na sua estada em Berna e fiz um
poema. Procuro conferir ao corpo — que não se separa da dimensão da escrita — um lugar privilegiado.
ABOMINÁVEL
CLARICE
Esquiando
na Suíça
Avessa a qualquer exagero
Delicado difícil equilíbrio
Não pisoteia a neve
Não espera um guia
Consegue parar fixa
Leve parece meditar
A face barbeada da
Mulher barbada tão
Abominável como um sorriso
Para que sombra se evade?
Leva o incerto na esportiva
Avessa a qualquer exagero
Delicado difícil equilíbrio
Não pisoteia a neve
Não espera um guia
Consegue parar fixa
Leve parece meditar
A face barbeada da
Mulher barbada tão
Abominável como um sorriso
Para que sombra se evade?
Leva o incerto na esportiva
Oi, Clarice, diga… Sim, sim, o mundo pegava fogo e você esquiava na
Suíça (risos). Kafka não teria sentido o mesmo em relação
à guerra? Ele o descreve com suposto descaso em seu diário: “A Alemanha
declarou guerra à Rússia. À tarde, escola de natação”. Ele nadava, você
esquiava. Temos cada um a sua forma de alienação.
Sim, sim,
eu sei, você preferia dizer “pulsação estranha”.
Olha,
depois você me diz o que achou do poema — que
você anda ocupada, fadigada, é claro.
O que? Que
diferente de Kafka, em A paixão segundo G. H. sua metamorfose
propicia não a transformação num inseto gigantesco e sim que o inseto seja
provado, deglutido…
(Estamos
sempre de volta ao quarto de Gregor Samsa para vivenciar a mesma
irreversibilidade da transformação. Mas para Clarice escrever é comer o
interior da barata. Experimentação. Autoconhecimento. Liberdade……………) (nesse
ponto a ligação cai……………)
No túmulo de Clarice não há data de
falecimento. Ao que parece ela saltou também essa etapa. Nesse ponto ela
corrige Ângela Parlini (ou será Ângela Parlini a me corrigir?): “Não — para falar sinceramente — não permito
que o mundo exista depois de minha morte. Dou remorsos a quem eu deixar vivo e
vendo televisão, remorsos porque a humanidade e o estado de homem são culpados
sem remissão de minha morte.” Para Clarice morte e vida sempre se embaralharam,
se misturaram num mesmo mistério. Ela nasce dia 10 e morre dia 9. Como pode uma
pessoa ser e não estar? Se ainda nem havia deixado de escrever, se sabia que
nunca deixaria. Um sopro de vida: pulsações (1978) será lançado quando já
está completamente livre, abandonada ao proibido.
Claricedespadronizada.
Clariceconsternada.
Clariceassustadiça.
A sorte vem, cedo ou tarde, de
voltar ao nuncanada.
Sim, você me disse para não
escrever mais “num tempo etc.”, não vou realmente mais dizer “num tempo” — porque nunca se sabe direito que tempo é agora. O que se
consegue fazer como poeta, o que se pode fazer como poeta sem cair no
retrospectivo ou no resgate, é evocar, lembrar.
Lembro agora aquela sua última
entrevista à tevê Cultura, em novembro de 1977. Há um pequeno trecho no qual
você se refere a um conto seu sobre o José Rosa de Miranda, o mineirinho, morto
pela polícia do Rio de Janeiro com 13 tiros — Você diz
que ao passo que os tiros são disparos 1–2–3–4–5–6–7–8–9–10–11–12, finalmente,
no 13º você é atingida. “É, suponho que é em mim”. Quando a situação nos reduz
a uma pessoa qualquer. Isso é o intolerável.
A literatura é uma religião. Mas há
certo número reduzido de escritores que não se rende à celebração de nenhum dos
cultos literários. Clarice nem mesmo chegava a seguir a liturgia própria do
escritor, muito menos a do autor. Acreditava que escrever era comer o interior
da barata. Definiu a escrita por um ângulo antropófago ainda mais absurdo e
desconcertante que Oswald: Tomai e comei a barata.
Lúcio Cardoso |
Amiga de Lúcio Cardoso, autor que não só foi um dos primeiros a comer da barata como integralmente, de cabo a cabo, em Crônica da Casa Assassinada(1959) se misturou às secreções selvagens da existência para alcançar, a partir dessa insaciabilidade, uma escrita que é rebelião e catástrofe…
Cúmplices?… Sim, muitos cúmplices!
Atingida pelo 13º tiro ela não quer morrer. Uma escritora não
canonizada, truculentamente não morta, se fazendo, refazendo, sempre por
nascer.
Comei da barata!
Ney Ferraz Paiva
domingo, 22 de maio de 2016
✤ SÍSIFO
Fazer rolar
a pedra, sempre a
mesma,
para cima do monte,
sempre o mesmo.
O peso da pedra
aumentando,
a força de trabalho
diminuindo
com a subida.
Empate ante o cume.
Corrida com a
pedra,
que rola
monte abaixo
muitas vezes mais
rápido
do que ele,
trabalhando,
a fazia rolar
monte acima.
O peso da pedra
aumentando
relativamente,
a força do trabalho
diminuindo
relativamente
com a subida.
O peso da pedra
diminuindo
absolutamente
com cada movimento
monte acima,
mais rápido
com cada movimento
monte abaixo.
A força de trabalho
aumentando
absolutamente
com cada passo de
trabalho
(fazer rolar a
pedra monte acima,
correr antes, ao
lado, atrás da pedra monte abaixo).
Esperança
e decepção
Arrondamento da
pedra
Desgaste recíproco
de homem, pedra,
monte.
Até o clímax
sonhando:
Liberação da pedra
do cume alcançado
para o abismo do
outro lado.
Ou
até o temido ponto
final da força
diante
do cume não mais
alcançável
Ou até o ponto zero
imaginável:
ninguém
movimenta
nada
numa planície.
PEDRA, TESOURA,
PAPEL.
PEDRA AFIA TESOURA
TESOURA CORTA PAPEL
PAPEL FERE PEDRA
Heiner Müller,
Tradução: Walter Schorlies, colaboração: Márcio Meirelles
Imagem: ney ferraz
paiva, "artistas e linguagens ascendem e caem" colagem, 40 x 30cm, 2016
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