PARA TORCER O PESCOÇO DA PALAVRA
O poeta Max Martins, 69 anos, não
acredita na linguagem cotidiana: ela não serve mais, pois está em agonia. Sua
sina é um morrer contínuo, e só os poetas podem salvá-la deste destino. Para
isso, o poeta deve mudar e renovar seu trabalho, buscando cada vez mais
melhorar o seu "ofício".
Ele declarou isso numa entrevista
concedida em 1994, e que até hoje permanecia inédita. Perguntado sobre
se concordava com a posição que lhe colocavam, de "maior poeta vivo do
Pará", preferiu deixar ao critério de cada leitor. Não lhe interessam
honrarias, mas o prazer de se defrontar com seus desafios estéticos. E isso
desde jovem, quando fez de suas próprias crises criativas um caminho em direção
à renovação.
Se O
Estranho (1952), seu primeiro livro, representou a ruptura com o
parnasianismo dos primeiros poemas, ao adotar um verso livre e discursivo, Anti-Retrato (1960) já mostra o poeta a
caminho do concretismo, na composição espacial das
"palavras-pássaros" na página como geração de significados, o que
seria desenvolvido mais profundamente nos livros posteriores. A partir daí, sua
obra se consolida em dois temas centrais: o da reflexão do próprio ato de
escrita e o do amor sensual. Este acompanhado de um movimento metafórico: a
natureza é sexualizada em imagens densas, e o próprio sexo é
"naturalizado" na maré de signos de sua poesia.
Nos últimos tempos, vê-se uma grande
influência da tradição oriental, talvez fruto de uma busca da serenidade,
advinda com o transcorrer de décadas de lida poética. Em seu último livro, Para Ter Onde Ir (1992), essa tendência
chega ao ápice, com a utilização do I-Ching, tal como relatado pelo poeta na entrevista.
Atualmente, Max Martins é Diretor da
Casa da Linguagem. Ele conta que isso gera uma situação engraçada, pois todo
mundo sabe onde encontrá-lo, e o que mais ele recebe são aspirantes a poetas, lhe
trazendo escritos na maioria bastante incipientes. Por mais que critique com
rigor os trabalhos, o poeta sempre aconselha os que o procuram a persistirem
lendo e buscando a "amizade poética universal".
Seriam apenas quinze minutos de
entrevista. Max Martins estava em seu local de trabalho, e é um homem muito
ocupado. Acabou virando uma conversa de quase uma hora, onde o entusiasmo pelos
assuntos da poesia fez o entrevistado esquecer um pouco do relógio. Entre
prosaicas interrupções para tratar de assuntos burocráticos, o poeta respondeu
o que se perguntou e o que não se perguntou, de forma eloquente e até
emocionada.
A seguir, os principais trechos do
depoimento:
"PARA TER ONDE IR" (1992)
Os poemas deste livro nasceram de uma
experiência nova. Veja, não existe hoje uma vanguarda mundial na poesia,
portanto cabe a cada autor, individualmente, se renovar. Os artistas têm medo
de se repetir. Têm que ter esse medo. Então, estes poemas nasceram de uma
deliberação minha de jogar o I-Ching, o Livro das Mutações. A cada mês, eu
fazia um lance, e a partir do hexagrama sorteado, fazia um poema. Esse poema
não era sobre os comentários do hexagrama: eu não estava interessado em
descrevê-lo. O que eu queria era apenas deixar que a magia do livro e de suas
imagens me desse um clima para escrever. Era um jogo, pois o próprio I-Ching o
é. Ele não é um livro de adivinhações, e sim algo que lida com a intuição do
jogador. Para o próprio título do livro eu também fiz um lance.
Nesse processo houve várias
coincidências. Para a capa do livro, o diagramador, que é o Age de Carvalho,
poeta e artista gráfico, substituiu as letras "e" do título por
hexagramas que se assemelhavam a essa letra, apenas pelo visual. Ora, o
hexagrama que está colocado na palavra "ter" é o que significa
"modéstia", o que é um contraste. E o que está na palavra
"onde" é relativo a "viagem". Isso não foi intencional,
pois ele não conhecia antecipadamente o significado dos hexagramas.
Outra coincidência foi quando eu joguei
um lance para fazer um último poema, terminando o livro. E saiu justamente um
hexagrama chamado "Após a Conclusão". O resultado foi tão emocionante
para mim que eu não me preocupei em escrever com o clima daquele hexagrama:
aproveitei simplesmente o seu próprio título, e usei nele versos, frases e
palavras tiradas de antigos livros meus, como numa colagem.
A CABANA DE MARAHU
Quando falo em ter aonde ir, que é
preciso ir, quero dizer que essa viagem não é exterior, é interior. Um
lar, uma casa, é o lugar em que a gente fica, confortável. A minha cabana em
Marahu é muito pequena, um pouco maior que esta sala. É toda cheia de enfeites
nas paredes, fotos, poemas, e eu me sinto bem lá. Eu a preparei para isso, para
um conforto interior e exterior. Mas não é o lugar de se ficar, é o de ter de
onde se ir. Ir para essa viagem, que é interior, a partir da paz e do sossego
que eu encontro. Eu digo que a minha cabana é o ventre da minha mãe.
SIMPLICIDADE E INSPIRAÇÃO
A simplicidade tem a ver com o clima do
I-Ching, que é simples; mas isso é aparente, já que tudo ali é símbolo. A
simplicidade nasce da própria complexidade do ser humano. Em arte, a
simplicidade é apenas a da primeira olhada que se dá no texto, pois há na
verdade um trabalho, uma complicação. Desde Baudelaire, Verlaine etc. essa
simplicidade é intelectual, é cerebral. Não tem essa coisa de
"inspiração", de espontaneísmo. A poesia é um ofício mesmo, implica
uma técnica, uma intuição, uma influência de toda a tradição de arte poética.
NOVO LIVRO
Não está em vista no momento. Bem, eu
tenho algumas coisas escritas, numa pasta. Nessas últimas férias, que passei em
Marahu, eu a levei, para começar a organizar e rever textos para um novo livro.
Eu tinha paz, tranquilidade e silêncio para fazer isso, mas fui com um poema na
cabeça, e passei o tempo todo trabalhando nesse poema, nem abri a pasta. O
Cejup (editora de Max) vem insistindo, pois há dois anos eu prometi esse novo
livro, mas ele não pode sair ainda.
ORIENTALISMO
Muitas imagens recorrentes em minha
poesia (o tigre, as pedras, o jardim, o lago, a água, o ar, etc.) vêm da
influência do oriente. Eu li muito sobre o zen-budismo. Não tenho religião (e
nem acho que o zen seja uma religião, mas sim uma filosofia de vida), mas em
matéria de misticismo, em perguntar ao desconhecido, para a tranquilidade do
ser humano, o zen foi o que mais me impressionou.
Eu sou tigre no horóscopo chinês, e
tenho inclusive em minha cabana uma pintura coreana muito antiga, com a imagem
desse animal, que eu acho de grande beleza, e que utilizei como tema várias vezes.
EROTISMO
Nessas imagens da natureza, fluindo e
refluindo, há um erotismo, não apenas temático, mas na própria estrutura do
poema. As palavras se amam, se beijam, se trocam, transam: as palavras fazem amor.
Palavra com palavra, imagem com imagem. Como diz Roland Barthes, a gente escreve,
afinal de contas, por um desejo. Pode ser a ânsia, o desejo de comunicar, de
encontrar quem ouça, encontrar o outro. É esse o prazer do texto. Com as palavras,
a visualidade da página, e também o som, pois o poema é antes de tudo dito, e
não escrito; isso o poeta nunca deve esquecer.
PRAZER E ANGÚSTIA
Onde há prazer, há angústia. É o preço
do prazer, o outro lado. Tudo é dual, tudo se relaciona. A dor não existe
sozinha, mas sim porque existe o prazer. Quanto se deseja muito o prazer, vem
em seguida a queda da cama. Existe um provérbio árabe que diz: quem dorme no
chão, não cai da cama. Aí entra também o budismo: diminua o seu ego, para
diminuir o desejo e o sofrimento. Quando a gente está triste, ou muito alegre,
a gente canta. Poesia é o cantar, é o lirismo, é deixar o "eu" falar.
AUTOR E LEITOR
O poema só existe quando encontra o seu
leitor, que pode às vezes ser mais poético que o autor do poema. O poema é um
leque de sugestões várias, de coisas sutis, dúbias, incertas, misteriosas. Cada
leitor tem o seu próprio prazer, colhe um significado diferente, diferente até
do que o poeta, ao escrever, pretendia dizer. A poesia não é o que o autor quis
dizer, é o que o próprio poema "quis dizer". Ele adquire uma
autonomia. É aquilo de que o Umberto Eco fala, a obra aberta, que quanto mais
se fecha, mais pode ser aberta.
Mais mistério se vê quanto mais se
cogita sobre o mistério.
A partir do meu segundo livro Anti-Retrato (1960), os meus poemas têm
como motivo principal o próprio poema, o que é uma tradição da modernidade.
Quando o poeta, através do poema, comove
o leitor, chega ao seu coração, então alcançou-se o ideal, que é a
universalidade da comunicação. Porque a linguagem comum, de todo dia, já não resolve.
Eu desconfio das palavras, e prefiro, como defende o Octávio Paz, torcer o
pescoço da palavra.
REGIONALISMO
O regionalismo está na minha obra. Eu
não sei como, mas tem que estar. Eu nasci e vivo aqui, sou fruto desta cultura,
desta paisagem, deste clima, então tem que estar aí. Mas é uma relação sutil.
Eu já disse antes: não escrevo sobre a Amazônia, a Amazônia é que me escreve.
TRANSCENDÊNCIA
À primeira leitura, posso parecer um
poeta formal, erudito ou frio. Mas não sou: a minha ânsia é unir, num fluir,
vida e poesia. Todo poema é autobiográfico, porque você está falando de si. Ele
reflete o seu ser, o que você recebeu como experiência, das coisas mínimas aos
grandes momentos da vida. A vida se compõe de fragmentos unidos, fluindo, se
amando, se misturando, tudo à procura de uma unidade, à procura de uma outra
parte de si, do próprio "eu". Isso é místico. É o
"religar".
Religião, religare. É a procura do resto, do outro, do outro no verso.
A compreensão disso acaba com o
dualismo, preto/branco, dor/prazer, belo/ feio. Mas para isso é preciso uma
transcendência. Eu a procuro nas palavras, nas imagens, nisto que está dentro
de mim, no meu sangue. Então, embora os poemas não sejam biográficos em si,
eles têm a minha vida. As frases são rios de sangue, e os versos, artérias que
correm.
AUTODIDATISMO
Eu não estudei nada institucionalizado,
não fiz Universidade, graças a Deus. No início porque não pude, não fui levado
a isso. Se eu tivesse feito Universidade, talvez me tornasse um bom professor, mas
talvez também não me tornasse poeta. Acho, numa visão pessoal, que a
Universidade prejudicaria a minha criação como poeta. Minha poesia não está
desligada do erudito, mas não é uma coisa acadêmica.
"A FALA ENTRE PARÊNTESIS"
(1982)
Esse livro eu fiz com o Age de Carvalho.
O trabalho de cada um, você só pode identificar pela caligrafia (ele folheia a
edição original, que tem a reprodução do texto manuscrito). Ora era um que
começava um poema, ou um poema-fragmento, ora era o outro. São quinze poemas,
que representam as quinze pedras de um jardim zen-budista, um jardim de areia,
o que é uma relação com a tradição poética oriental, pois é uma renga (poema
feito em conjunto, tradicional no Japão medieval). Quando pensamos em fazer o
último poema (que se tornou o primeiro), ele já estava pronto: nós tiramos
versos dos outros quatorze, para que fosse uma caixa de ressonância.
É um livro bonito. Me agrada o aspecto
visual do livro, gosto muito de pintura. Eu tenho um diário, que já escrevo há
alguns anos, e que é fruto da minha necessidade de visualidade. É todo com colagens.
Muitas vezes, eu escrevo nele a esmo, para depois tirar poemas.
PAPEL DO POETA
O poeta tem que ser humilde diante do
mistério que se enfrenta ao manchar uma página. Tem que ter a vontade de que
aquilo que ele está escrevendo seja a melhor coisa do mundo. Tem que ter respeito
por si mesmo e pelo seu trabalho. É a obrigação dele, obrigação social.
O papel dele não é escrever sobre os
problemas históricos ou sobre o momento político-ideológico, mas sim, fazer o
seu ofício bem feito. Se ele faz bem o poema, ele está participando da evolução
da língua de seu povo. Impedindo-a de morrer. A fala cotidiana é um morrer, ela
perdura por muito tempo, se desgasta, e por isso tem que se renovar, e quem vai
renovar é o poeta. Essa é a obrigação dele para com a sua comunidade.
Entrevista
concedida a Marcus Pessoa e André Ichihara, Casa da Linguagem, Belém, 1992
Texto: Marcus Pessoa, André Ichihara e Andréa Ponte Souza
Imagem: ney ferraz paiva, "transfixar max", colagem, 40 x 30cm, 2016