o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Do engenho ao êxodo – para inscrever Lins do Rego na travessia[1]
por André Queiroz
para um menino o futuro é quase sempre uma pequena distância”
José Lins do Rego
O sobrado velho sujo descarnado onde antes fora a casa-grande. Cenário do agora o sobrado sujo descarnado. Outrora a casa-grande onde era ao fim do ano a 1ª. comunhão em conjunto o que lá não se fazia. Ou era a reunião dos homens ao negócio, as conversas giravam sobre safras, preços de açúcar, compra de terras[2], e quem fosse mulher não entrava. Eram as regras. As negras até a cozinha. Eram as cismas. A das gentes lá da casa. Eram as cismas, eram os hábitos. As negras até a cozinha. Era a festa, a ‘comidoria’ à mesa redonda. Todos numa celebração. E bastava que se rodasse o tampo que da mesa se desprendia, e bastava se o girasse até o ‘onde’ que se estivesse e era a comida o que chegava – a melhor manteiga da Dinamarca, os queijos-do-reino da Holanda[3]. Comida farta de regalar os olhos, de lambuzar as fuças, de molhar os beiços. Comida farta de remexer a remela na prega das vistas. Era pelos olhos que se começava o empanturro. Era desde os olhos que a digestão ela se iniciava. As mãos asseadas ao tanto da fome e ao bocado da encomenda pelos modos de quando à mesa. A velha Janota a fazer valer os seus ensinamentos - as mãos asseadas, as pernas juntas, o estômago afastado do tampo. A posição ereta do corpo como se lá se estivesse em prontidão. Isento dos erros. Mas eis que as fuças lambuzadas punham-se em revolta àquilo tudo - os modos os moldes as cerimônias como um anteparo e nada que isto.  Desvergado o corpo às penitências era então que o corpo ele se fazia liberto, arrancado às iras dos santos frouxos de meia tigela, o corpo então ele se fazia entregue às sofreguidões de uma fome canina, o fogo perigoso, um seu assentamento por debaixo das saias, o abafamento em vício, a freqüentação aos currais[4]. Era de um quase paganismo o colocar-se de fora aos rituais sacros. Mas havia os batismos, os casamentos. As visitas do padre. A colaboração do avô às obras da igreja. Os poderes locais destilados aos compromissos e acordos. As notícias que vinham de longe, as capitais, Recife, João Pessoa – os jornais à informação do que lá se costurava. O partido, os homens da justiça, os conservadores, os outros senhores de engenho, os seus aplicativos na política. Havia isto. Porém bem mais do que isto o que havia eram os tipos da casa. Os do engenho. Os dos arredores. Os da sala, a família. Tia Naninha, a negra Marta, o avô José Lins. Tia Maria a ocupar lugares onde a casa. Era-lhe a providência a tia, espécie de lugar sagrado onde Deus depositara a sua sabedoria. Tia Maria. Era tia, era mãe postiça, era a amiga dos consolos desde o colo quente à cabeça pesada de pandemônios, o colo de tia Maria era o silêncio do sono o acalanto, ela era aquela que desde há tempos se destilava a sua despedida como numa segunda, numa terceira morte que a se experimenta. Porque primeiro fora a mãe, e depois fora a prima Lili, e agora o casamento de Maria era o novo sepulcro, um novo sítio às dores de quando a perda. Mais dia menos dia e seria isto, aquela morte se chegando na forma de um encerro ao convívio, a desaparecença. Tia Maria iria para os longes depois da festa de seu casamento. Tia Maria seria então para nunca mais. Fora da vida, fora do livro, fora da história. Tia Maria. Era ela quem tocava as coisas – fazer que as coisas funcionassem. Mas não apenas era ela. É que havia o horário rigoroso aos afazeres. E apitava, cedo, bem cedo, o engenho, e os homens vão ao trabalho. Faz-se a aguardente, moía-se o algodão, descaroçavam o algodão. E era o colégio de Itabaiana o que tão logo se faria quando fosse o caso o ‘desasnar’, o milagre da aprendizagem, o milagre das letras ajuntadas ao tanto da palavra que se lê, e era a leitura o que chegava aos olhos do menino, e então que tão logo seria o colégio de Itabaiana[5], e seria nele o internato. Nas férias, era o engenho, sempre nas férias o Engenho Itapuá, o Corredor ele como que retornava ao campo da visão – o menino no descortino da paisagem que desde o trem se lhe fazia, o regresso quando das férias, trazer aos olhos um engenho, arranjá-lo ao modo das palavras que já se tinha, colocá-lo todo no corpo do livro, amoldá-lo ao invólucro. O engenho que era imenso ele cabia no livro curto. Talvez que não em um. Talvez que ele vazasse num para fora do livro. Talvez que ele ocupasse todo um ciclo, uma meia dúzia de livros[6]. Talvez. Ou talvez que todos fossem apenas que um o livro, o mesmo livro. Ele como que desdobrado – um livro descolado, um livro desfolhado, arrancado aos editores num assalto que é desde as lombadas, e uns outros nomes postos ali uma prensa a ouro em capa dura, os nomes às laterais, outros nomes, sopro de um mesmo livro – quando será se o encerra? Ou será que se termina um livro quando se o fecha sob o signo de uma assinatura? Sob a senha de um nome como rasto ao códex - será se o encerra ali o livro no que caberia o engenho? Resta fora do livro o menino ele resta fora. Entregue talvez ao tempo que o leva ao longe ele o menino ele se desmantela, ele se desatualiza. Talvez que ressurja lá à frente modificado de todo, alterado desde as suas bases, ceifado à personagem que lhe coubera um dia ao livro e então outro é que ele se faria, o menino Carlinho, o moleque Ricardo, este agora no Recife a preencher de afazeres o tanto de sua saudade, o abandono do engenho, o deixar atrás o engenho que lhe era o continente a mãe Avelina, o irmão Rafael, o menor dentre eles os irmãos, o irmão Rafael que parece ele percebera que Ricardo se ia naquele dia, naquela tarde, o irmão Rafael a chamar-lhe ‘Cardo, Cardo’[7], mas nada que será o seu chamado senão a dor de lembrá-lo, Recife será a perdição e o experimento, o negrume das gentes à busca do virar ao alto as coisas que se lhes apequenam, Recife será o ordenar-se para o quando da greve que tudo pára – alistar-se ao coro dos muitos, tomar o centro da praça pública, testar a avalancha das repartições oficiais, forjar desde ali a greve que tudo pára, a greve que pára o trabalho extenuante no que se está emperrado o homem que se é, e Recife será o gozo desde as carnes trêmulas das mulheres que se vem e que se vão, e Recife será o ‘onde’ no que o moleque Ricardo ele sem que se lhe faça motivo a tal - ele será encaminhado à Fernando de Noronha, a prisão estadual, pois que será necessário também a aprendizagem a ferro e fogo das injustiças tamanhas na que se fundam o governo dos homens, o Estado a fazer cumprir os seus desmandos na manutenção da ordem que a tão poucos contempla, o moleque Ricardo, o menino Carlinho, Ricardo que não volta ele nunca é que voltará ao engenho, Carlinho que é sempre a volta, mas para onde esta volta, será que ao engenho de ainda ele ainda lá a comportá-lo? Talvez que ressurja lá à frente o menino um menino ainda ao engenho, porém questão seria a de saber onde é este lugar a que se o apelida tão somente de o ‘lá a frente’ – espécie de porto seguro à memória, o tudo dizer sob efeito à regressão, o pôr-se às marchas de um para atrás, os olhos que é desde a nuca os olhos ao escrutínio, quando é isto? Será o ‘lá à frente’ um algo compatível ao que seria o engenho? Seria o dia seguinte ao que o engenho não mais, os anos de depois, eles todos somados em conta de cinco a cinco, eles multiplicados até que fosse a maturidade a do homem ‘o aquele’ que se dá ao trabalho do contar? Será se o perdera de vista – o engenho que se tinha à palma da mão, de sob a planta dos pés, ao tanto dos galopes dos cavalos de porte, aos fantasmas soltos ao tempo sem tampo da imaginação – será se ainda o tem ao engenho? Será se restaura o engenho, será se o busca desde a desatenção ao agora a fazer cumprir uma fórmula de Proust – a de que se deva evitar sobremaneira os mergulhos afoitos e repetidos de uma bolachinha madelena em um bule inteiro de chá da Índia? Onde então o engenho? O quê, um engenho? Será já um conceito o dizer das coisas soltas que elas se ajuntem ao formato que seria o do engenho? Lugar onde o deslumbramento eram as roupas menstruadas das meninas tomadas de arrasto ao varal. Lambuzar o rosto imberbe ao mênstruo seco grudado ao pano. Decorar a ele a forma aos corrimentos, as mulheres a se vazar em pingo, o sangue ali retesado, preso, desfalecido. O deslumbramento começava. Era lá o menino. O Engenho Itapuá ao campo de visão. Lugar no que o sexo parecia pregado à concupiscência das negras a emprestar-se de forma desbragada a luxúria. Luxúria a delas, luxúria a dos meninos à iniciação às parcas desde o curral a impetuosidade dos touros por cima das vacas, a vara vermelha dos bichos à procura de se contentar[8], era ali o sexo a desabrochar, era ali a tela à fabulação obstinada na que se voltava então à concupiscência das negras, e eram os filhos do povaréu o que se arranjava àquela montaria – povoação da ambiência, fabricação de mão de obra barata rasteira às carradas, bando de filiações incertas entregue ao destino da bastardia o arranho que era nada e apenas o que era o era às turras e era o impreciso das contas de quando o dia seria o fértil de entre os quadris a casa de lava a fornalha na que se arranca o barro que é a vida mas que é a vida pouca a vida que ali se fazia arrancada ao improviso onde não se fazia as contas de um não haver sequer a precisão aos abortos – não se tinha à cabeça o lápis de ponta, e aos dedos à condição da soma às precauções. A luxúria era cega aos números e às letras. Era iletrada, e insabida, nada cautelosa. A luxúria era parideira. Ela era o bastante o balouço a que fossem os filhos na desprega do ventre frouxo. Os moleques de tão logo ao estrago. Colegas de quando a infância. Infância que lhes seria pouca coisa. Um filete de tempo. Depois o que lhes seria era o trabalho. Ou ainda ali no aturdido dos primeiros anos já lhes seria isto, o depois – este espaçamento de tempo em lhes sendo desde sempre o já agora – o talho de quando é a lida o que costura o batismo ao sangue do degenerado. Tão logo é que lhes seria o trabalho a estreitar a infância para o fundo de um corpo miúdo. Alojá-la ao esquecimento. Despistar a infância no despovoar de seus ritos. Suspender as brincadeiras, o tempo das farras e dos risos escancarados por nada. Trocar a inocência da traquinagem pelo trabalho. Cedo já a começar. Na vida e no dia, era cedo que se começava. O trabalho este fazimento do demônio. Inscrição contínua do corpo no que o consome. O trabalho no eito – o trabalho escravo desde o cedo o mais cedo quando seria uma impostura dizer que o que havia ali era gente este pequenino pedaço de não ser, aqueles meninos nus, de barriga tinindo como bodoque, e o mais pequeno na lama, brincando com o borro sujo como se fosse com areia da praia.[9] Era isto. Aquele tempo. Agora, a casa arruinada. Como fora um dia a de seu Lula de Holanda. Os cavalos magros. O leite ressequido às tetas surradas e dependuradas, os bens penhorados. A casa arruinada. O sobrado velho sujo descarnado onde antes fora a casa-grande. O reboco caído, a tintura gasta. Goteira sequer porque água é que não. Já ninguém a ocupar-lhes os aposentos. Já ninguém de sob a mira de olhar cumprido de algum santo pregado à parede. A parede é em tijolos à mostra a parede exposta, os morcegos no teto, o mundo destruído. O capinzal é desde o interior da casa, e a moenda onde? Onde o bagaço da cana esparramado em forma de montes desde os quais deslizassem os meninos como que por um escorrega? Ninguém também por lá como era a canalha ao trabalho forçado sob os comandos do feitor José Felismino dia após dia – cacete na mão, reparando o serviço deles[10], o avô logo ali a testar a extensão de sua ordem. Porque ontem era assim – o engenho como se fora ele mesmo o avô. Lá ia o gado para o pastoreador, e era dele; lá saíam os carros de boi a gemer pela estrada ao peso das sacas de lã ou dos sacos de açúcar, e tudo era dele; lá estavam as negras da cozinha, os moleques da estrebaria, os trabalhadores do eito, e tudo era dele. O sol nascia, as águas do céu se derramavam na terra, o rio corria, e tudo era dele[11]. Hoje não mais. Não mais. Não mais. Ontem, agora. Está-se aí, entre tempos e modos distintos. Será à comoção os modos do estar-se aí? Será à melancolia como num repuxo da alma a matéria mesma a que não fora o tudo então que se planta? Tanto o que dizer. Tanto o que se disse. Mas será se o disse sobre o tudo o que se viveu, e o tanto que se se deu ao viver daquilo? Ou será que nada, nada – e ao nada o que seria é a condição a que se faria ao livro um seu enredo – forjar desde o nada o que se conta, e mentir, e mentir, e de sob as hastes soltas do mentir depositar a condição na que se tece a ficção, um romance de causos de que nunca é que eles o foram de fato, será isto? Ou será que não, será que foi sempre desde um eu qualquer – este eu a contar de si e tão somente de si o seu quintal, as suas prendas, as suas dores enxutas às mezinhas e crendices, será assim? Entre o ontem, e o agora. Ali, logo atrás, a infância toda à mão. Agora, a ruína e a morte do mundo – sem que fosse de um esbarrão de cometa que a morte do mundo se fizesse inteira. Ainda assim, ali, a morte do mundo. Ontem, hoje. Está-se de entre. Entre dois. Entre tantos. Lugar-curioso-lugar no que parece que tudo é o que escapa. Como se tudo estivesse a uma sua condição fluida. Tudo ao escape. Tudo como que à corredeira, à enchente do rio Paraíba que é o quando não se firmava de pé a inteireza das coisas – barro boi morto árvores destroços redo-moinho sumiu e nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras[12]
Tudo como que ao êxodo. Está-se entre. Nunca é que se pensou que se acabasse. A casa do avô. Tudo lá parecia impregnado de eternidade[13]. E não mais. Tudo tomado de assalto – o arrasto dos bens e dos bens o que se poderia pensar ao acúmulo era o tempo, o tempo. Nada ninguém. Não mais as vozes daquele tempo. A avó. O avô. Totônio Rodrigues Tomásia Rosa onde estão todos eles? – estão dormindo. Estão todos deitados[14] Tia Maria. Zefa Cajá. Lins do Rego. A negra Luísa, o menino Carlinho, a prima Lili, o primo Gilberto, o pai, a mãe. Aquele um que vos conta. Todos dormem sonos cerrados onde nada é o aceno desde a porta, ou a beira da estrada ao apito do trem que não.  Ontem, hoje. Está-se de entre. Entre dois. Entre tantos. Tudo ao escape. Tudo como que ao êxodo, o disparate, o desajuste, o corre-e-corre, o corrimento seco magro preso naquele pedaço de pano pregado à parede de uma Itabira como se fora de um retrato. O retrato da avó. O que há é a lembrança de que se tirou este retrato. Ela a sua pose de lavrar. Ouvir-lhe ainda a voz, já é difícil – há quantos anos? Cinqüenta, talvez. Está ainda viva ali, mas já sem voz audível na memória. Estava quente naquele dia de há cinqüenta anos. As escadas da cozinha ainda lá estão. Ela só está lá na memória e no retrato que está ali na parede. Um dia estará só o retrato. Um dia alguém perguntará de quem é este retrato. E um dia não estará o retrato. Até que não se saberá que esteve[15]. Ontem, hoje. Agora é este dia. Dia em que não se sabe quando e onde o engenho. Dia dos mortos. Dia de finados. Dia no que dormem todos a modorra da tarde cinzenta. Dia que é entre o não mais e o ainda não. Tempo que é o tempo de entre. O tempo suspenso. Aí é que se está. Ao êxodo. Questão seria saber o quão largo é a dimensão do entre. O que será se pode fazer caber ao interstício quando já nada é o que persiste em ser de forma absoluta? Quando já não atestam contra ‘um aquele que fala’ qualquer fisionomia aguda de um testemunho a dardejar impropérios. Ninguém ainda a levantar-se de forma peremptória a dizer que não era deste modo que as coisas lá se faziam cumprir. Nada, ninguém.  Já não há o corpo em recuo da testemunha, o contraponto que desde ela se fizesse. Apenas o que há é a fenda, o interregno. E o quanto será que aí se pode fazer caber? Será que se pode um tudo de coisas que mesmo as coisas que lá não haviam não pareceriam agora descabidas que se estivesse lá a depositá-las? Que fosse desde lá que se estivesse a lê-las?  Ou será que menos mal do que mexer nos fatos como que a embaçá-los seria mexer na condição ordenada na que os fatos foram eles um se fazendo, e então o reembaralhá-los, e então o revertê-los até outra a regra, até outro um outro o intérprete, e então o realinhá-los desde uma escrita que os renovasse à condição de ocorrido, mas que pudesse quem sabe esta renovação vir a constranger a alguns dos fatos a que eles não buscassem outra vez e de forma insistida se fazer valer e ponto. O fato a querer se fazer valer como que à revelia e ponto. Será não é o caso evitar o despotismo de um fato assim? Buscar um seu constrangimento como se se estivesse a operar a desmesura – espécie de arritmia entre os atores e as suas ações, espécie de desprega que acabasse por remontar os cenários todos no que as personagens viessem a costurar os seus planos de ação, e fazer com que se perdesse ‘as deixas’ que de um ator a outro fosse agora tão somente o esquecimento, agora e tão somente isto o tempo, o esquecimento, o esquecimento, o chiste, o lapso, o esquecimento fosse o que se lhes viesse à memória, e então a memória fosse como um imenso rasgo, um buraco, uma cratera, e nela tudo fosse caindo, caindo a ver o que se acha e nada o que se achasse dentro da memória, e a memória fosse como que um rasgo, um borrão, e que se a rasgando fosse desde o de fora dela que as coisas se lhe fossem pregando e de tal maneira isto que o tudo o que se lhe pregasse fosse como que aos modos do que nunca antes havia sido, fosse ela a memória algo assim como o invento – somatório contínuo de não haveres, soma encantada do que nunca e tal soma fosse o desprego o descarrilo de bandos de livros em revoada eles a jurar em nome dos santos que não renderam sequer joelhos aos milhos, injúria, perjuro, credo falho, a memória o invento. Ninguém mais a fazer cumprir os rituais desde os quais era o mundo o que se fazia mantido de pé – os domínios extensos do avô. De perder de vista, léguas e léguas ao horizonte, e tudo o que era nele era a ele que atendia, toda a vastidão das terras, os matos verdes, e o caminho cheio de lama e de poças d’água, e o açude coberto de uma camada espessa de verdura, e a estrada estreita em que de vez em quando passava um boi, tudo era do avô, e a casa branca, e o alpendre cheio de gente[16], e mesmo as gentes que enchiam o alpendre, e mesmo os dias inteiros das gentes que lá havia, dias nos que coubesse o esforço da lida, a crença nos santos com seus milagres de plantão arrancados à barriga da miséria posta desde logo ao sopé da porta em pedaços, era o casebre dos que se arrastam ao trabalho escravo do eito, e a horta carregada de goiabas e jambos, o grande pomar, e as laranjeiras, e as jaqueiras, e o gado, e o leito de espuma morna, e o frio das cinco horas da manhã, e a fábrica bem perto da casa-grande, enorme edifício de telhado baixo, com quatro biqueiras e um bueiro branco, a boca cortada em diagonal, e as caçambas com mel batido, e a casa de purgar onde a safra de açúcar do ano encontrava-se nos grandes caixões de madeira e nos tanques cheios de mel-de-furo, e a pobre gente do eito, os seus meninos[17], as suas maleitas, os seus bichos de pé, os seus piolhos que ninguém consegue a cata, a barriga de inchaço e fome, os olhos murchos porque não há de ser vida o que se desprega daqueles olhos murchos - que será enxergam uns olhos assim quando se está na infância esfalfada dos que nada têm? Que será podem uns olhares assim que se entregam ao nada ter como quem se arrasta para dentro dos buracos da face as cavidades sulcadas mais a fundo uma vez a fome na que se está e desde os buracos da face uns olhares assim eles se voltam para dentro como que a fazer a caça do que lhe seria e em nada lhe sendo uns olhares assim eles acabam por pregar nos olhos a desconfiança que é desde si e em si e por si e os olhos eles baixam eles mínguam e os olhares eles tendem ao chão e não mais se será capaz de um mirar nos olhos do mundo tamanho tamanha a vergonha na que se habita um aquele que de seu pode se dizer que apenas é que ele seria o dono de uns olhos os de olhares esvaziados e então este homem estes uns homens assim eles estarão prontos a dizer ‘Senhor, senhor – eu vos obedeço’. O avô ali o senhor ao altar dos que se lhe prostram. Tudo ali era do avô. Nada era daqueles tantos. Nada é que traziam consigo, nada o que tivessem de seu. Mas dizer que nada eles têm é dizer que é nada o tudo aquilo que eles carregam - a sua miséria pesada que se renova, que se renovasse dia a dia, e se for de ser verão será uma miséria expelida no suor magro que sequer lhes escorre, o suor lhes gruda à pele curta como num borro sujo e mal cheiroso, e se for o caso estar-se ao inverno será a asma, a tosse contínua, o puxado, a falta do fôlego que faz tropeçar e fazer que tomba e que se levanta, e fazer que outra vez tomba e que outra vez se levanta, e vão-se os dias, e vão-se os anos, e eis que já se é o homem, e eis que já eram os homens que ficavam de sol a sol, no eito puxado do avô, os seus porcos, as suas panelas, as suas galinhas, o seu café com açúcar bruto, a batata-doce do velho Amâncio, a carne-de-ceará com farofa, a cama de vara, a casa que pinga chuva dentro por não sei quantas goteiras, o cheiro horrível do chiqueiro de porcos que era ali perto o chiqueiro de porcos[18]era tudo do avô, mantida a ordem dos fatos e assim seria, tudo do avô, o passado todo estendido à mesa do agora, nele o tampo giratório, o tampo a escolher sempre e sempre o mesmo lado a uma sua paragem, o tampo que desde a mesa ele se fizesse uma rodada de cartas, ele um tampo giratório uma roleta russa, um jogo a jogatina que é o cassino o que assim seria, ele o tampo a girar, a girar, a girar, três vezes isto, e ele a girar, a girar, a girar como se se estivesse a um programa de televisão de péssimo gosto a ver se pára o tampo no que se sorteia um vencedor - mas que quando pára o tampo o que se estivesse a fazer parar fosse o tempo no registro das mesmas horas, e os mesmos calos o que seria fossem as mesmas horas, e como se ao parar o tampo o tempo, ele mesmo o insistido, fosse o presente sob o arrasto amargo de um passado-presilha a sua forma/sua fôrma tal e qual o que se estivesse a ver retornar, eterno retorno desde o tampo o tempo a insistir-se o mesmo, como se fosse o tampo o tempo o aquele a que se se estivesse condenado a repetir, a repetir como farsa o que já fora num outrora, e a repetir como cisma e vício o que fora o ensejo de uma primeira investida, e então a senha da que se não desgruda o ingresso a todo o mundo o silêncio de às sete chaves às sete portas às sete moradas o orgulho interminado da casta as palavras chaves seriam estas, tudo era do avô, tudo do avô, e mesmo que se se repetisse como que a surdina aos sustos que o avô não mais, que o avô encarquilhou-se na curva que é o tempo ele mesmo uma curva a que não atende a interesses, ele mesmo o tempo a absoluta incertidão o absurdo do sem sentido, e mesmo que se repetisse que o tempo do avô era o tempo do não mais e que ficara num lá atrás o avô que já não, haveria quem dissesse a palavra mágica que é a palavra inventário, e a palavra inventário que é palavra de posse, que é palavra que garante a posse o passe a propriedade esta palavra seria repetida dez quinze cem mil vezes até que se firmasse a palavra inventário não mais como uma palavra entre outras mas como se fora ela ele o inventário uma substância algo que tivesse um substrato por detrás mesmo da condição sonora a que se restringe uma palavra, uma caixa de sons a nomear o que lhe escapa a palavra isto aí e não mais, aqui não, o inventário ele fosse a condição material das coisas, ele fosse o impermeável a todo e qualquer os humores, o intratável for o caso um refazer desde as partes as forças todas a que se presta a  composição de um tempo mas não não não o tampo a girar outra vez o mesmo, o tampo a emperrar no mesmo, as mãos que o impedem de girar fossem as mãos que supõe que ele está a girar, e que desde as mãos obstinadas no forcado do viramundo o tomá-los a fórceps às mãos talvez elas buscassem as armas de fogo, ou elas se fizesse histéricas umas mãos dadas a uma fala contínua e ramerrona a fala insistida e gritada a perguntar como que em afronta quede o inventário, quede o inventário, quede o espólio?, e se traria para junto de si os argumentos que é desde o deus dos justos o argumento a ceifar o que se lhe opõe, e o argumento seria o de que se se não é o dono do mundo se é o filho do dono, e há de se ter direitos sobre um mundo que é desde o pai e que desde o pai é o mundo o que lhe é seu meu, ou que não, porque se lhe objetaria que não era o pai porque o pai não estava na história, porque o pai na história fora o expelido do livro, porque o pai do personagem o pai do autor o pai de todos ele fora o que gerara de forma comumente o silêncio dos adultos da casa-grande, ou melhor, que o pai fora o excomungado porque matara, ou porque enlouquecera – de um livro a outro é assim esta andança de um pai que é nunca que ele, ou porque ou porque ou porque, mas haveria de se retomar a palavra, estava-se a proteger os bens perdidos, estava-se a dizer do que há de ser de césar porque césar é pai, ou melhor que não se diga que ele é pai uma vez que já se entende que o pai não, mas que se deve ser o dono uma vez que se é o filho do dono, não não não é isto, loucura da palavra, loucura do dizer, loucura que é desde os livros tomados em revoada eles tombam à cabeça em desordem eles voltam as palavras – porque a palavra é sempre uma coisa que se retoma aos sentidos do que se lhe as quer (e um escritor bem serve para isto, e o que dizer então de um advogado?), mas ao se retomar a palavra o que se diria seria outra vez à salva dos que nomeiam e os que ao nomear imprimem a história como que numa retidão às miríades de acontecimentos soltos, e então que se diria que não era o pai mas que era o avô o dono do mundo e que se é desde o avô é ainda mais do que seria um herdeiro de direito do que se fosse o pai  o aquele de quem se herda o patrimônio a casa-grande o engenho e assim sendo tudo o que há ele é nosso o espaço a este mundo ele é nosso uma vez que o avô é pai duas vezes, e que então a baioneta em punho e aos gritos deslavados outra vez aquele refrão quede o inventário quede o inventário quede o espólio?, e vai se chamar a justiça dos homens a participar na condição de terceiro neutro, e vai se convocar a justiça das armas a participar na condição de força neutra, a polícia que desaloja, a polícia que chega já a atirar na direção dos que parecem não querer ouvir que o que é do homem o bicho não come e se aqueles homens são barrigudos mesmo sem terem o que comer é porque é de bichos o de que se compõe aquela barriga e em sendo assim eles uns homens que são comidos por bichos é porque eles não são bem uns homens eles são é uns párias eles seriam párias, e então, quede o inventário? quede o inventário?, o eterno retorno dos bons e dos bens, tudo como que recolocado à justa todos em seu lugar o intérprete ele aqui o mesmo, o Lins do Rego de um seu primeiro livro, o menino Carlinho seu intérprete-narrador, Dedé o apelido agora é outro o livro onde aparece o apelido de Dedé, o olhar aos fatos ele aqui o mesmo, os fatos ao olhar sempre o mesmo o dia a noite os modos ao fazer das coisas sempre o mesmo o menino Carlinho de entre os moleques amarelos aquela gente esfarrapada e sem nome e sem inscrição, o neto do prefeito da terra, o menino da Casa Grande sob contínuo regime à exceção, ele o ‘aquele’ a quem cabia um copo separado para que ele bebesse água quando à escola e aos outros a gamela suja cuspida que era o cocho onde todos metiam o bedelho e a bocarra, ele o Carlinho a voltar nas costas de cavalo manso para a casa, finda a aula, e os outros, os pés rachados, eles juntos porque não seria de os descrever em separado, eles de pés ao chão em retorno ao casebre, à mansarda, a cama de palha, o calor imenso, o barbeiro nas frestas do sapê como que numa oferta da doença, eles a retornar à palhoça ou será que ao roçado, ajuntar o bagaço da cana, empacotar o açúcar, retirar das máquinas os restos de um seu emperro for o caso as máquinas travarem, fosse assim, assim fosse - assim mantida a ordem aos fatos, assim contida as mudanças na que se se está a mudar com o quanto que mudam as coisas, os ares que são outros, os ventos que sopram desde os longes, fosse o caso o represá-los, assim fosse,  e extirpada toda e qualquer mudança que desde os ventos, conjurado o desgoverno vá se saber se pelo poder público, as suas leis impetradas, os seus compromissos de gabinete, os seus arrendatários representantes das elites de sempre, os seus saberes firmados ao leque de um aquilo que se diz de si a cultura possível  a cultura plausível e a dizer junto o como é que lá se chega para que se firme à tradição das letras os fardões à imortalidade nossa de cada dia, para que se complete e reforce as estruturas que os rejunta, para que se esteja de sempre sob o mapa do possível e do conveniente, para que se disponha em editais o possível aos comparsas - os que jogam o jogo na sapiência das regras, os que trazem os azes à manga das camisas bem passadas, os que dispõe desde logo e tantas vezes em surdina das regras que não se dispõe, e isto tudo que se faça seja pelas forças de jagunços pagos pelo Coronel, as volantes que são toda a hora o do patriarcado rural do nordeste as velhas e as ainda oligarquias fundiárias, as volantes com cinta de couro e arma de fogo a tocar num para fora for o caso o não se os querer mais por ali naquelas quebradas àquela gente caída de sezão e assim seria, assim o fosse o desmedido desta força oficial a se fazer valer e assim seria, tudo do avô, tudo do avô,  tudo lhe diria respeito, tudo seria o que lhe devesse o respeito. Agora não mais. Aquele mundo é morto. Zefa Cajá, a negra Luísa, o primo Gilberto, o menino Carlinho, Antônio Silvino, tia Naninha, tia Maria, Ruth, Major Ursulino o barão do couro-cru, Ricardo o moleque, Firmina, a velha Janoca, Vitorino, as mulheres da boca-de-rua, todos estão deitados, todos estão dormindo profundamente. Lins do Rego é morto. Completara-se ele como autor. Mas será assim? Uma boa dúzia de livros será encerram no seu cacho um autor? E uma vez a dúzia de livros não será que se é mais do que somente um autor, será que não se é uma penca deles, uns autores a dar com os burros n’água? Será o autor fica girando, girando, girando como outrora aquele tampo, aquela roleta russa ao que dele se lhe fizer o escrutínio que é toda a crítica? Onde será se vai o autor aos atropelos se de um livro a outro parece haver vãos incontornáveis, fronteiras clandestinas, casamatas fortificadas e invisíveis? Será ele ronda descarnado à noite do engenho como o papa-vento, como a moura-torta arrancados à boca frouxa de Totônia? Será Totônia um autor uma vez que ela é quem conta os contos aumentados desde logo de um dois três pontos e a cada vez isto, e a cada vez assim ela se firmasse como um autor em disfarce, um atrás ao outro, o ghost writter, o impostor, um feitor de plágios, o copidesque? Lins do Rego é morto. Diz-se dele isto – que ele morrera. A data é de empréstimo aos outros, o ano de 1957. Consta que está ao mausoléu dos imortais. Curioso o paradoxo. Talvez que seja a senha de que ele não esteja morrido. Talvez que esteja recolhido. Reservado com relação aos curiosos. Lins do Rego, Raduan Nassar. Lins do Rego parece ele tinha medo da morte. E então quem sabe ele se recolheu até que ela. Talvez lhe prepare uma forma à recepção. Um jogo de xadrez. Ou talvez que não. Talvez que tenha morrido e junto consigo a obra perfeita que é a obra concluída. Mas quando e como? De que será feita a obra perfeita? Quando é que em nós se nos firma uma obra de tal porte? No filme de Vladimir Carvalho, o poeta Thiago de Mello ousa dizer a condição da obra perfeita. O primor. Talvez que nada isto. Ou nada que isto. Ele o morto. Carlinho, Dedé. Será foi ele ter com tia Maria Menina, será foi ele ao encontro da mãe que à morte ela aos estertores ela o vira entrar ao seu aposento ela a desferir sobre ele a mágoa daquele grito àquela hora a última ela a dizer ‘sai daí menino!’[19], ou será não fora aquela a última palavra que desde ela ele ouviu, ela aos horrores face ao nada a se lhe abrir inteiro e ela os olhos estourados e ela o filete mínimo de voz o fiapo e ela a força nenhuma a força pouca o corpo mofino as peles penduradas no braço magérrimo e ela e ela e ele a estreitar os passos até que ela e ele a chegar o mais perto possível o ouvido e ele um todo-ouvidos e ele olhos nariz bocas tudo fechado e ele todo-ouvidos e ela o que será lhe disse, qual terá sido a palavra derradeira, a última palavra a encerrar um diálogo que nunca que nunca e que nunca é que se encerra e que dá voltas imensas nos ponteiros desatados dos relógios às paredes de todas as casas nas que se esteve e dá-se o estrondo dos folguedos de todo o fim de ano em todos os anos e dá-se as gorduras os calos as ulcerações a tísica o puxado a asma o fôlego o fluxo o corrimento seco magro morto naquele pano e ele e todos os livros e ele e os engenhos de férias uma duas três vezes a arrancar a si o cenário do que é ao mundo um horizonte farto fértil herege e ele e ela e ela sob o balanço o balouço de quando a queda os líquidos todos o sangue a correr o entupimento a cabeça do rebento que é dele ela tomba dela ela a cabeça faz que sai de entre as pernas o fogo a casa de lava as altas temperaturas o forno que desde o ventre e vai nascer e vai que nasce e o moleque Ricardo a dizer tu já sabe que mulher pare mesmo pela periquita? Que tudo é igual às vaca do curral![20] e ele que nasce e ele que escuta ao moleque Ricardo e ele que se chega até que ela ela morre e ele está ele esteve à caça da última palavra que ela e ele é-lhe todo-ouvidos e qual a última palavra? Nunca e nada que a última palavra ela não chega, ela não se acerca, e é e será então como se  bastasse que se pusesse a girar o tampo da mesa uma outra vez, e eis que então e então que ele estivesse vez mais de fora da história, de fora do livro, de fora da vida! Não mais corre ele o risco grave de esquecer o seu lugar – será que desde o dentro da história escorrida em memória, será que desde o de fora do livro a manuseá-lo como se fosse de um instrumento de corte o aquilo que se traz às mãos?! Não mais os riscos. Lins do Rego é morto. Dele diz-se isto. Chegou-se mesmo a costura de uma data, 12 de setembro de 1957. Nele parece se completara a soma do que lhe seria. Nele parece não cabe mais o regresso ao lugar que é de nunca. Mas será ele o requer a si um regresso, um lugar? Será que Lins do Rego estaria ali quando do espólio a requisitar um mundo que não mais? A aposta aqui é que não. Que Lins do Rego estaria ele mesmo à travessia, ele sempre é que parece ter nela estado. Lançado ao que seria tendo os olhos todos voltados a um a frente, mas então o quê a memória? Nada a memória que não a de buracos, vazões, crateras na que se dá o invento. Lins do Rego estaria ele sempre esteve como que ao êxodo. Colocado entre o não mais e o ainda não. Aquela casa arruinada. Aquele engenho de não mais. Ontem, um dia, a infância toda, infância de pedra e de paz, e eram e foram aqueles homens ao eito, eles todos como que entregues à fúria da palavra do avô que o avô não era dado às palavras que não fossem em fúria. Será fato isto? Será era assim? Como se houvesse um tronco que se lhe despregasse em fiança ao que ele dizia. Como se em havendo um tronco ainda que sob desuso ele o tronco estivesse ali à garantia dos fatos e da obediência alheia até que os fatos se dessem em sua inteireza e disciplina. Será era assim? A existência infame de um corpo talhado à dor, a pele curtida aos lanhos do chicote, o trabalho não pago uma vez que a paga é aquilo que se fazia quando do arremate do homem, os dentes à mostra, o seu arremate ao mercado. Mas já não era de escravos o de que se tratava. Talvez que fosse de trabalhadores livres os livres trabalhadores que tem apenas de seu a força do que se lhes toma. Talvez que fosse. Ou talvez que seria desde os escravos a imagem e semelhança o que ali se fazia, o que ali se forjava – as mulheres que sequer abandonavam a senzala a ver se ganhavam a rua, mas ganhar a rua era entregar-se à condição do nada ter, do nada levar consigo, do nada saber uma vez que o que se sabe seria sempre o ‘aquilo’ que se dá a um acúmulo, um saber acumulado ao ventre do que se pode, a escola que é na cidade, as letras que é nas escolas que se se lhes apresenta, os livros que lhe emprestassem à imaginação quem sabe se um bom par de asas, nada, era nada o que elas carregavam consigo fosse o caso a rua e então porque não permanecer por lá? Sob a tutela do velho. Sob a baqueta do senhor de engenho. De sob as asas do avô. Porque não fazer durar um pouco mais o tempo que é a duração como o estar à lida, a duração à senzala, o esforço em prol do que não se lhes revertia nunca e nunca em benefício, e era e foi o menino do engenho o aquele Carlinho o aquele Dedé que assim dirá, aqui é ele quem diz o costume de ver todo dia esta gente na sua degradação me habituava com sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles. Achava muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros, comendo um nada, trabalhando como burros de carga. A minha compreensão da vida fazia-me ver nisto uma obra de Deus. Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera éramos brancos e mandávamos neles. Mandávamos também nos bois, nos burros, nos matos.[21] Era um retrato. Um retrato possível mas não todo o retrato. Agora não mais. Ao menos ali, agora não mais. Tudo é morto. O roteiro é morto. Permanece encerrado na forma pouco fluida do livro. O suporte rijo. A capa dura. Permanece ali. Lins do Rego é morto. Dele diz-se isto – àquela data o encerra naquela data. Ela o paralisa. Permanece ele à condição do ser lido por olhos que quem sabe lhe desestabilize. O olhar que lhe resta agora é o de empréstimo. Olhar alheio. Alguma distância. Mas quando será se está junto? Onde a comunidade entre autor e leitor? Será houve esta terra palmilhada metro a metro, página a página, letra a letra? O quanto será que custa a que se firme a palavra – o juntado das letras, o desarnar do entendimento. Em Dedé, parece, custou-lhe os carões de anos e anos. Custou-lhe o tempo o ver doutro modo o mundo. Um ver desde a medição da escrita, um mundo a ser lido. Um corpo de palavras. Um corpo de papéis. Custou-lhe tempo e surra. Todo modo, juntar palavras não será juntar leitor de palavras às palavras de quem as escreve, ou será? Será juntar personagens e aqueles que os fez ser? Onde e como uma boa leitura, um estatuto razoável a este exercício, o exame? Está-se a ver – e imenso é o risco a que não se chegue a um lugar seguro. Seguro como parecia o engenho que era o do avô. Mas será o era? Bastava que fosse o desastre, e o desastre ele sempre já o é. Está-se entre. Sob o regime do passar das coisas e das gentes. O tempo, o tampo – o viramundo.


[1] Conferência apresentada durante o Seminário Arte & Pensamento: a reinvenção do nordeste, na região do Cariri cearense, em Novembro de 2010, em evento organizado pelo Sesc-CE.
[2] Lins do Rego, J.1956, Meus Verdes Anos, p.159.
[3] Idem, 1956, p.94.
[4] Cf. idem, 1956, p.147.
[5] Cf. Idem, 1956, p.146.
[6] Peregrino Júnior afirmou serem seis os livros da obra ficcional de Lins do Rego a fazerem parte do chamado Ciclo da cana-de-açúcar, são eles: Menino de Engenho, Doidinho, Bangüê, O Moleque Ricardo, Usina e Fogo Morto.
[7] Lins do Rego, J., 1935, p.06.
[8] Idem, 1956,  p.44.
[9] Lins do Rego, J. 1932, Menino de Engenho, p.66.
[10]  (1932), p.113.
[11] (1956), p.55.
[12] Bandeira, M. trecho do poema Evocação do Recife. In: Estrela da Vida Inteira, p.106.
[13] Idem, p.107.
[14] Bandeira, M. Trecho do poema Profundamente. Op.cit, p. 112.
[15] Ferreira, V. Conta-corrente 3.
[16]  (1932) p.38.
[17] (1932), p.42.
[18] (1932), p.59.
[19] (1956), p. 108.
[20] (1956), p.113.
[21] Idem, p.116. 
      Imagens: Ney Ferraz Paiva

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

É UMA PENA QUE EU NÃO POSSA ESTAR COM VOCÊS HOJE


Ana Cristina cadê você?
Estou aqui, você não vê?
[Cacaso]

Para sempre é sempre por um triz.
Diz quantos desastres tem na minha mão.
[Chico Buarque]






Possa Deus escapar da ausência de Ana Cristina Cesar. Nossa cultura judaico-cristã não está habituada a admitir as perdas. “Perder é uma lenha”, a própria Ana reconhecia. Morta a 29 de outubro de 1983, ao se lançar da janela do apartamento onde morava em Copacabana, a poesia de Ana vem tentando escapar à significação desse desaparecimento prematuro e trágico. Com efeito, sempre e cada vez mais, a soma dos anos que nos separam dela – pedras lançadas no grande rio – desencadeia movimentos circulares de inquietante perda. Sua ausência alimenta uma aura.

Mas nem o suicídio tem a força de mover o tempo ao contrário, muito menos resolve o enigma, quando muito coloca o tempo em suspenso e abre certas rotas ou notas de rodapé em torno da escrita da poeta – desde que não subam (ela mesmo pediu numa glosa feita a Nabokov) “como arranha-céus, até o topo da página” para não asfixiar ou até mesmo fazer sucumbir o enunciado. Não há como excluir o leitor, cegá-lo com o véu de palavras que separam e nada mostram. Não qualquer leitor, é certo, mas o bom leitor que o grande texto exige. Singular contradição: ainda que tematize o cotidiano com frequência, a poesia de Ana requer leitor atento – suas pistas despistam, podem conduzir por desvios ao deserto e não às fontes da vida, pelas suas irresoluções e por não se resguardar nem da dor nem da morte. Não a morte gloriosa de Aquiles, mas da que é emparedamento e declínio em plena juventude, passível protocolo da vida artista.

Nos Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes fala do ser ascético como de alguém capaz de arruinar o próprio corpo. Por extremo acaso, imediatamente se pode voltar e tentar ver a evanescente silhueta de Ana, como se as palavras do semiólogo francês, que ela tanto admirava, fossem capazes de revelar a identidade da poeta, ou pelo menos, mínimos pedaços de sua angústia. Pelos cabelos curtos, o olhar autodevorador de quem está ausente – quando não, o rosto magro, hierático, atrás dos óculos escuros. "Quem escolheu este rosto para mim?", ela disfarçava. Quem ainda a procura? O rosto definitivamente desfigurado aos 31 anos. A infelicidade intriga mais do que a alegria.


Quando estamos perdidos precisamos andar em círculos até cruzarmos o próprio rastro. A poesia de Ana costuma seguir o percurso de alguém desnorteado, evitando se orientar de cara pelas referências próximas, fáceis de localizar. Ana parecia não se deter no imediatismo da informação que as imagens desprendem no poema, para tentar chegar pelo lado mais íngreme do caminho à nervura do que se escreve. Poesia sem bússola e carta de navegação, afeita a desencontros desconcertantes. "Eu não sabia/ que virar pelo avesso/ era uma experiência mortal."





Menina ainda, Ana escrevia memórias – uma menina envelhecida –, e foi saudada por Lúcia Benedetti no Jornal Tribuna da Imprensa, 14-15 de novembro de 1959, (tinha sete anos) como modelo de uma poesia sem texto: “as crianças em si são a própria poesia”. Mas se bem se observar, os poemas ditados à mãe (quando ainda não sabia escrever) e enviados à Benedetti desautorizam sua recepção como se fosse um “sopro de Deus”, como chega a afirmar a jornalista. A pequena Ana insurge-se com uma poesia vinculada modernamente a uma crise da linguagem e a um embate com a palavra, sob a força da esterilidade e do aniquilamento. Soletrava o destino dos homens, não dos deuses. Aos olhos da menina séria o mundo revelava-se e submergia, fazia-se e desfazia-se num prognóstico de imperfeições e desastres: vento selvagem, rocha, terra, fogo, céu. Estruturas deformadas pela retina de quem não ousa libertar-se das imagens que vê, atravessando-as, alucinada.


Estamos de volta/ aos dias moribundos de calor e/ outono/ onde as folhas gordas/ viram e suspiram no/ silêncio amarelado/ onde vimos pela primeira vez/ o brilho novo do céu// estamos de volta/ atrás de nós as ondas/ cercam nossos/ gestos/ o nascimento da tarde/ é mais que as limitações/ sem tempo// estamos de volta ao mesmo/ lugar enorme e irresistível,/ às sombras moribundas de/ calor e outono




Parte dos poemas da infância de Ana vem a público em Inéditos e Dispersos (Brasiliense, 1985). Eles nos fazem ver, como em Ezra Pound, que na infância temos já o corpo pesado de pranto, só ainda não chegamos ao limite da água mais funda. Mais uma vez desfavorecem (mas, claro, não impedem) as excessivas preocupações biográficas, confissões íntimas, frequentes ações redutoras do texto que a própria Ana adulta fez questão de desautorizar e desmontar em A teus pés. Ela jamais quis submeter sua poesia à condição de ser arrastada pela curiosidade perversa do “diário íntimo”, do "testemunho/ testamento", dos votos sinceros do “sujeito”, ou mesmo da “primeira pessoa”. Que muitos então caíssem "feito patinhos" na armadilha de um texto em que se multiplicam "Vozes barganhando/ uma informação difícil", o "Apuro técnico", "Um golpe de exercício" – Ana antes tratava de se interditar sob o impacto das imprecisões do enunciado, dos lapsos de memória, das elipses da ficção.






A teus pés, lançado no final de novembro de 1982 pela Brasiliense, prorroga e amplia a voz anterior da menina a uma mulher (não uma mulherzinha) intransitiva e desenfreada, como marca escritural, numa espécie de operação de descaracterização de estilo, que impões, num contraste, a certas poetas contemporâneas quedas de ritmo/estilhaçar de ecos – ou, mais especificamente, não as deixou escapar à menor impugnação do Eu. No caso de Ana, se depara desde sempre com uma poesia desgarrada, empreendendo uma caminhada ofegante, de passos trocados com o resto da humanidade (um pacto de aliança com Henry Miller) – ora percorrendo paisagens alterosas, superfícies circundantes; ora transcursos subterrâneos, infiltrando-se no tempo evanescente e vazio. Tentativa labiríntica de entender o que se viu com o primeiro olhar.

Ficam ainda as perguntas: até onde poderia ir a jovem poeta, atada ao liame de uma escrita desviante, no período imediatamente após à repressão política e cultural? A quem pertencerão os rastros de seu texto, emaranhados e sobrepostos à escrita de Torquato Neto, Maura Lopes Cançado, Hilda Hilst, Sylvia Plath, Severino do Ramo, Caio Fernando Abreu, Lucienne Samôr, a partir da agonia de quem “sabe” apenas do seu começo? Safo desencontrada de si mesma, destinada a errar até a morte – "Um dia me safarei – aos poucos me safarei, começarei um safári".


Ney Feraz Paiva

quinta-feira, 28 de outubro de 2010


Um comediante midiático




As máquinas desejantes são máquinas binárias, de regra binária ou regime associativo; uma máquina está sempre ligada a outra. A síntese produtiva, a produção de produção, tem uma forma conectiva: «El», «e depois»... É que há sempre uma máquina produtora de um fluxo e uma outra que se lhe une, realizando um corte, uma extração de fluxos (o seio/a boca). (Gilles Deleuze e Félix Guattari, O anti-édipo - capitalismo e esquizofrenia)

Lendo o texto de Ladislau Dowbor, publicado na revista eletrônica “Envolverde” a 25/10/2010, fui tocada por uma irresistível vontade de me enredar nas impressões expostas no texto e por uma daquelas coincidências impagáveis, havia tecido o seguinte comentário sobre a figura que abre o texto de Ladislau: Arnaldo Jabor. Discorri em torno da aparente unanimidade que o jornalista desfruta entre os pseudo-mídiaticos informados, aqueles que utilizam da ferramenta mais democrática que temos em mão (não é do voto que estou falando, mas de uma verdadeira máquina de guerra) – para se tornarem cada vez menos informados, ou deformados.

Arnaldo Jabor sempre a serviço do capital com um discurso disfarçado de dissonante, algo que leva ao riso, à ridicularização de temas muitas vezes relevantes, bloqueando com isso o debate, a reverberação e mobilização social em torno de temas caros à democracia. Contudo, o que poderia dizer Jabor desse “seio/boca” pensado por Deleuze/Guattari? E quem melhor alimentou as máquinas desejantes produtoras de fluxos? Junto com a resposta quase automática nós podemos pensar o Brasil como um enorme seio, belo e provocador, que deverá nos alimentar (não só aos bem nascidos, as tantas elites deste país) de todas as formas: doméstica, intelectual/científica, cultural, afetiva, artística, para o jogo, o prazer o deleite, a felicidade.

Não tivemos em muitos anos de estado democrático algo nem perto do que acontece hoje, em que a “palavra liberdade foi expulsa do pântano enganoso das bocas”, para se transformar em “algo transparente e vivo como o fogo, ou um rio”. E o que nos fornece essa liberdade? E aí penso não apenas na liberdade verborrágica, mas em algo ainda mais correlato, como a garantia do direito de ir e vir, o direito de ter acesso, o direito de trabalhar e não apenas trabalhar como um escravo da vontade e do poder do outro, mas trabalhar sob um sistema que garanta direitos fundamentais, como auxílio doença, creche, transporte etc.

Querendo ou não, foi sob esse governo que tivemos a aprovação da Lei Maria da Penha, a instituição da Secretaria Nacional de Igualdade Racial, a expansão dos auxílios aos estudantes, as Conferências de meio ambiente, de cultura, de segurança pública, de saúde, de educação e até do livro e biblioteca. Nesse governo de Luis Inácio Lula da Silva nos sentimos livres, debatemos, pensamos, tivemos apoio para criar. Aconteceu de termos ministros negro, acreano e, claro, ficamos sujeitos aos cortes de fluxos, aos enganos, à corrupção – prática defendida e aceita de forma corriqueira pela justiça, já que para crimes do colarinho branco não há punição. Para a sociedade resta se virar e compreender que a síntese produtiva se faz também dos desacertos e dos atos falhos. É o que teme Jabor?

A ele o espaço midiático para singelas teorizações. Cada um faz o que pode, embora se possa reparar de soslaio quem o contrata e a quem ele defende. Agora, sem essa de tentar colocar o país no divã, arranjar a todos essa culpa: ter votado no Lula. Ser o pai desrespeitado a nos passar um carão. E nos provar, num tortuoso comentário, que Lula é apenas um caso de dissidência das políticas do PSDB, com as quais aliciou a todos tanto quanto Édipo ainda é capaz de levar no papo as virgens sonhadoras. Lula chegou a 82% de aceitação graças aos serviços de FHC – quais mesmo estes serviços e a quem ele prestou? O que se sabe, ou melhor, o que a sociedade não quer mais rever (e que talvez tenha reduzido de vez nos créditos o nome desse senhor a uma sigla, enquanto Lula acrescentou mais este a seu emblemático nome) são os velhos capítulos de um novelão político, já que os avanços sociais protagonizados pelo governo Lula não admitem levantar audiência com reprises, quando muito, resgatar incautos saudosistas ou desatentos, que podem ver em Serra, dado a um tal efeito técnico, o personagem de uma boa anedota. Essa que Jabor não cessa de contar.


Juliete Oliveira

sábado, 23 de outubro de 2010

o repúdio, ou a resignificação possível a geraldo pereira - um pouco mais contra o golpe de estado mediático 
por André Queiroz

Só tenho medo da falseta,
Mas adoro a Julieta como adoro a
Papai do Céu
Quero seu amor, minha santinha
Mas só não quero que me faça de bolinha de papel
Tiro você do emprego,
Dou-lhe amor e sossego,
Vou ao banco e tiro tudo pra você gastar
Posso, Julieta, lhe mostrar a caderneta
Se você duvidar
(“Bolinha de papel”, João Gilberto
Composição: Geraldo Pereira)



Esta é a música. Não se deixar fazer de bolinha de papel. Algo que se arremessa ao lixo - uma vez o uso, e o desuso que sobrevém a este. Descartar o que se fizer sujo. Quem sabe se o recicla? Tempos de coleta seletiva de lixo. As várias cores dos recipientes - verde, vermelho, azul, amarelo. Aprende-se isto nos colégios à infância. A coleta do reciclável começa por ali. Alguém ganhará algum dinheiro com isto. Um pouco à salva dos que não têm. O que dizer das latinhas de cerveja e derivados? E dos catadores de papel? Suas associações, por exemplo? Todavia, por vezes, está-se a dar outro sentido à hegemonia dos sentidos ao econômico. Uma bolinha de papel pode bem vir a ser muito mais do que umas gramas ao quilo que sustenta a alguns - e que são tantos estes alguns neste nosso agora agorinha. Uma bolinha de papel pode vir a ser bem mais do que a condição espúria daquele que fora abandonado por Julieta no samba do Geraldo Pereira. Deixar que alguém nos torne uma bolinha de papel? Pero, no basta! Por vezes, uma bolinha de papel é o que se tem à mão. Máximo signo do impoder a que se está colocado. Penso em Foucault a lembrar das formas de repúdio popular quando das sociedades de soberania - a massa dos destituídos, a massa zerada dos deixados à míngua e à condição inglória de expectador aos faustos do poder, sua celebração grandiloquente, e eis que a massa, por vezes, lançava à cara do soberano o que tinha às mãos - e o que será tinha às mãos a massa zerada dos que nada têm? Eles dispunham dos seus excrementos tirados ao calor da hora, aos humores vilipendiados, e ainda quente, a condição morna do que se lhes escorria, eles a lançavam às fuças da tradição que os negava, que os excluía.



De lá aqui, deu-se a condição de alfabetização de muitos - mesmo que sob a condição de sua 'inalfabetização' social. Trazer consigo uma bolinha de papel amassada é estar incluído em programas sociais d'algum modo, digamos assim. É dispor do que se lhes chega à intenção da boa educação. Ter onde escrever o que se aprendeu, e ter onde mostrar que se aprendeu o escrever. Um papel talvez sirva a isto. Digamos que sim. São horas, sabemos, a outros modos de escrita – a escrita virtual. Novas inclusões, e novas exclusões – um novo ponto de corte. Certo, certo. Talvez quando se inclua ao digital, se exclua ao uso contumaz da folha de papel. Alguns resistem, alguns. Os nostálgicos talvez. Ou os amigos das madereiras talvez. Vá se saber a quantas se fazem as possibilidades de expressão do ser!



Mas eis que se tem, por vezes, à mão uma folha de papel - e ali seria uma carta, um bilhetinho de última hora, uma conta a ser paga, ou ali seria o começo da coleta ao tanto do quilo aos catadores de papel – que todos somos em potencial. Todavia, nada que isto! Ou melhor, tudo isto, e muito mais ainda, e veja o tanto que temos à mão da imaginação – todos os possíveis que se pode depositar ao uso bom uso de uma folhinha de papel, e então, supremo desprendimento: fazer da folha um algo que se amassa, fazer do amassado o peso simbólico de uma pedra, de um tamanco, de uma catedral (lembrança de há pouco um Mássimo Tartaglia a lançar uma 'catedral' às fuças de Berluscconi), um paralelepípedo, como numa intifada. Lançar o que se tem às mãos ao rosto deslavado da canalha, o canalha ali. Lançar o que se dispõe a ver se não tarda a hora ao recolhimento da corja de há tanto! Lançar bolinhas de papel como quem promove uma intifada. Lançar bolinhas de papel como quem tem às mãos o bolo ainda quente fornalha desde os interiores, e dali o nosso produto bem acabado, revolvido o retento o retesado o ainda retido, o rebento –  trazer à mão a bolinha de papel que é desde as vísceras que ela nos chega e lançar, lançar, lançar a ver se se acerta o rosto dos que não tem a honra de dar a cara aos tapas.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

POESIA DE AMOR – AMOR PELA POESIA
sem provas de que eros nos perdoa


Os poetas brasileiros não morrem em revoluções.
Quando elas acontecem, os bardos nacionais
preferem segurar os empregos.
Na Revolução de 30 não morreu um só Dante
de Cascadura para contar como é descer ao inferno.
Fernando Monteiro


Um grande problema talvez não mais da Poesia e sim dos poetas no Brasil, dos poetas que vão aparecendo cada vez mais cedo com seus livrinhos gestados na toxidade noturna do mercado editorial – esse que a todo custo anuncia a um país que não lê, que não lê sobretudo poesia, o Grande e Desmesurado Poeta para uso compulsório e descartável, pois bem, talvez o grande problema, que também muito contribui para que essa maquinaria opere observando leis, regras e etiquetas próprias, colocando à parte a promoção, circulação e recepção da Poesia, seja o fato de que os poetas entregues a seus transes festivos amam cada vez mais não a Poesia (essa substância maior a que até mesmo o Estado parece querer banir com suas instituições desestabilizadoras da cultura artística) e sim e tão somente a “sua” diluída e hibridizada poesia, conectada a seu próprio umbigo.


Poetas amantes de si mesmos. Velhos e jovens, que bem ao contrário do vinho, quase nunca melhoram com o passar dos anos, apenas envelhecem e pioram a safra e reprisam o ciclo decadente. Atados a uma mesma teia cada vez mais estranha à Poesia e a seu desenvolvimento como organismo relevante. E do mesmo modo que falar inglês não resolve e estabelece uma comunicação global, o declínio da Poesia mesmo nos ambientes de cultura aparentemente cultos não se reverte pelo anúncio e acúmulo diários dos nomes e dos respectivos “livros à mão cheia”. O mercado, neste caso, não de amor, mas de puro negócio, não é a melhor reação. Ele não tem como fecundar, renovar e mesmo ampliar as possibilidades de acesso e circulação, de incendiar corações e mentes com a Poesia, este Amor que quando se revela é sempre uma descoberta transformadora – “crescer, criar, subir”.


Amor pela Poesia. Nele e através dele, diz Mário Faustino, não há a imprecisão do “etc”. Com o surgimento da internet e da tecnologia digital esse Amor não prosperou. Ampliaram-se às escâncaras os egos invioláveis, isto sim. Os tributos ao “eu” e ao “meu”. Território de livre circulação a toda sorte de investidas, a Poesia perdeu espaço aí. Apequenada, reduzida energia à baixa intensidade, o mercado a colocou sob sua cúpula como objeto estático, dependente e isolado. E apenas pelo efeito ilusório das vitrines a Poesia aparenta ter sido prolongada em redes como os outros segmentos. Resulta disso é que raros livros quase despercebidos como este “Vi uma foto de Anna Akhmátova”, de Fernando Monteiro, a prorrogam desde uma ida banal à padaria na esquina, ao bar ou à praia até a viagem incomensurável para o outro lado do mundo, com a qual os grandes mercados turísticos das Festas, Feiras e Bienais do livro estão de passos trocados e por isso mesmo não têm como enlaçar as mãos num momento de afeto.


Inverossímil Viagem de Amor. Isto não apenas por um deslocamento subjetivo entre Brasil, Ucrânia e Rússia que esta escrita promove, sem medir nem desmentir a distância de uma Akhmátova e uma Clarice (lado a lado a outras articulações: Hilda Hilst, Adélia Prado, Olga Savary, Marize Castro) – não mais uma viagem pelo “mesmo” como tantas histórias a contar ou a representar dos dias adversos, aqui e alhures, não mais um “poema-clichê de sofrimentos/de poetas perseguidos”. Antes, uma poesia de deslocamentos, que reflete inclusive as condições de leitura de duas grandes escritoras em vários trânsitos de importância, tentando escapar sobretudo ao intimismo a que sempre são lançadas. Fernando Monteiro não ilustra quem tenha sido Anna ou Clarice. Ele relaciona. Parte de uma imagem a outra, sobrepondo-as, sem atá-las umas às outras. De uma Anna correlata a uma Clarice. Do Recife intercambiável a Tchetchelnik a Moscou a Paris a que lugar mais seja. Na foto como no poema o que se quer abordar são terras desconhecidas. Conectar o que está por vir. Nunca a paisagem, mas a vida como uma estranha jornada. “Você pode ver numa foto o que não está nela”.


Variações e revezamentos do olhar. A nuance. O conciso. O espelho. “Se eu errei ao nascer,/ela errou ao dar a luz./Se eu estou ainda aqui,/ela não está mais”. Ver Anna Akhmátova implica ver o impreciso que se é: episódios imperfeitos, evanescentes de calmaria e indiferença. Ainda que Clarice tenha flertado como jornalista com o mundo insípido da moda, não foi nunca como a mulher de um futuro ideal, utópico, lunar (“Princesa da Lua, por que você voltou?”), de certo como a sobrevivente desfavorecida num ambiente de cultura que nem mesmo hoje pode admitir uma “Esparta moderna”. A imagem de uma se conecta a outra, duas (quantas?) replicadas mulheres desmunidas de afeto, lançadas ao jogo de se prender e se soltar antes que se esgotem os prazos. Embaralhadas e dispostas a um mesmo combate. Escapar às ratoeiras domésticas da casa (apanhar depois de cozinhar bolos etc.) ou às ratoeiras das vitrines da vida moderna.


Clarice não podia ter saudade
de dois meses de vida em Tchetchelnik
na Ucrânia de árvores nacaradas.


De que poderia ter saudade Clarice? “da casa entre movelarias e sebos/vinda da Ucrânia para o coração/deste bairro de esquecidos”, “do centro da cidade onde viveu/a descoberta do mundo no Recife”, “de imigrantes deslocados”? Clarice-criança não tinha como saber que moveria esse mundo morro acima para o lado da modernidade. Essa Clarice de quem temos que ter saudade. Da adolescente que deu a ver a linguagem daí há pouco definida mundo afora como “clariceana”, pois escapa a um modo burocrático de lidar com a escrita no espaço público (jornalismo, universidade, diplomacia) onde a mulher ocupa funções anônimas, e ela nos chega muito mais como singularidade a se prorrogar do que como originalidade pueril. Quantas Clarices aí? (“ainda que vivas outra vida, não há saída”).


A casa ficou só. Ela reformou aqueles versos:
“Esta mulher está só”
virou:
“Esta mulher está no fim”.


De que vida poderia ter saudade Akhmátova se perdeu todas de antemão? “de Lev, o filho” que vieram buscar como o pai, sem acusação formal, sem julgamento, para ser morto? Uma mulher no fim das contas encadeada a tantos outros finais, a coisas que se partem sem conserto algum. Ela não tem escolhas: terá que engendrar a si mesma como poeta e ocupar um lugar nunca reservado à mulher. Desenfreada, irreverente, desconcertante – em posições de ataque e afrontamentos, ativa, que portanto prejudicou a si própria. Nos espaços codificados da guerra o êxito da mulher se duplica em um fracasso mais profundo. (“tantos poetas mortos,/tudo fazia crer/que algo andou errado/muito errado).


A Poesia é um esgotamento que se reveza e ramifica pelo corpo até o poema. Fernando Monteiro o inventa a seu modo – o modo do grande poeta que se põe a desfalecer, ele mesmo, no que escreve. Um poema longo, como almejava Mário Faustino e que Fernando acata, realiza e sai de cena, pois agora que vai escrever sequer pode escovar os dentes. Quede o poeta? Irreconhecível no odor ácido do livro. Pouco dele resta aí como autor, no livro de uma editora não comercial, de Fundação sem fundos, mas de gente atenta e sensível. Não fica de fora nem a gravata, sequer a foto de orelha. Tudo que se vê como fulgurações é Poesia. Amor precipitado que Fernando Monteiro nutre pelo livro que resolveu fazer e por todos os grandes livros que amou, entre eles um “muito velho”, “de capas vermelhas” PÉROLAS DA POESIA RUSSA “na lombada desbotada”. E se olhássemos bem de perto dentro dos olhos do poeta logo poderíamos ver Akhmátova e Clarice qual Ulisses numa viagem sem erros.


Ney Ferraz Paiva
Salgueiro - PE
Fernando Monteiro, Vi uma foto de Anna Akhmátova, Recife, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2009.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Teatro-leitura
será que hoje o que ainda não sei que nome tem vai irromper e arrebatar, será?
João Gilbeto Noll, Harmada
Santiago do Chile, 1973 não é texto de dramaturgo, sequer de encenador ou homem de teatro – trata-se de um conto do escritor e filósofo André Queiroz, que o “Grupo de Dois” encena o labirinto inexaurível de leitura, sem que o fato de ir ao teatro corresponda a ir à biblioteca retirar um livro. Leitura como jogo interativo e explícito pra desorganizar as formas de expressão de um teatro que não leva em conta as sociedades da era digital, que mais faz palestra do que encena, mais refugia do que lança ao inferno, e depois de um mês em cartaz está fora do prazo de validade – por não ter como criar outra coisa à parte a essa máquina de encenar estática e sempre confiante nos Manuais de instrução. O texto “pra teatro” não é mais o ponto propulsor do ato cênico. Há outro ar em torno dele, nem do campo nem da cidade, que mesmo Brecht e Müller não souberam precisar, mas aí sufocaram antigos maneirismos e elementos. Santiago é o êxtase do deserto. A sufocação fica gravada em nossas feições. De um percurso árido. De vários patamares de tempo-espaço, sucessivos cortes, zonas e entradas. O ar fica especialmente abafado. O público chega, toma assento, “circula” nos domínios coletivos de uma escrita que avança par a par com a estranha órbita dos discursos de dor como resultado do mal que cada um pode fazer ao outro. Isto tanto pode estar em Rei Lear, de William Shakespeare, quanto nos textos-poemas pra vozes de João Cabral de Melo Neto (dentre eles Morte e Vida Severina, com que infelizmente seus encenadores ainda almejam alcançar uma eficácia social pra palavra encenada, sem que tal aspecto jamais tenha sido uma lei de funcionamento do texto). A questão por inteiro é que mesmo em seus poemas João Cabral encena a palavra que não pretende fingir nada – a forma pode ser atingida, se romper, mas a Palavra tem que permanecer intacta seja qual for o enredo. Santiago continua sendo um teatro da palavra que perpassa por essas linhas e se prorroga em suas nuances infinitas. Palavra dita por vezes em minucioso silêncio ou a plenos pulmões, gritos-sopros que não recorrem à metáfora pra ativar ali na sala quase escura um enredo que nos humanize ou dê consciência (sempre muito de acordo com o incentivo comercial dos patrocinadores). Seu encenador e também ator Tiago Fortes é quem nos dá essa versão alterada dos Manuais ao mudar as linhas de ataque destas “anotações” de dor. Menos até como teatro e mais, muito mais, como experimentação de estados de invenção, de sons e imagens desterritorializados – ondas de memória e lapsos que vão se alternando e variando em camadas sucessivas de vozes, como rasgos na pele em que se tenta remendar o que há anos ou há pouquinho se passou bem ali na tela onde se projetam as fadigas e os ultrajes do corpo, intensificando sempre o fato de que a protagonista não merece aquilo. Se por um lado o sofrimento dela não pode ficar encoberto, sequer os danos a sua vulnerabilidade, por outro lado, não se pode presumir daí algum reembolso, mesmo a vingança. O clímax aqui não traz a resolução do conflito. Talvez mesmo ele não exista de modo clássico e esteja presente como uma espécie de litígio pelo fato de que tudo aqui avança pra se constituir como “anotações” não só do que a protagonista sabia e vivia, mas do que todos sabem, ainda que dentro de cada um nada pareça despertar. A “leitura” de Tiago Fortes  da narrativa de André Queiroz é de que não há o Segredo. Todos sabem. Está diante dos olhos e mesmo se pode sentir na própria carne, metido aí como uma espécie de morte, extraordinariamente condensado. Seria este o elemento que faltava detectar? Ação a que se tem que recorrer pra se completar este jogo suspeito? Lembrar de lembrar o que se sabe?

ney ferraz paiva
salgueiro - pe outubro 2010 

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

CELEBRAÇÃO DAS MARÉS
Alexandre Bonafim
I
Um risco de veleiros em fuga
sempre foi o teu nome.
Arquipélagos de incandescentes pássaros
os teus olhos. Os frutos do sal,
a íris do sol na filigrana das águas,
os cardumes do outono, clamam em teus pulsos
a presença de um fogo vivo,
cicatriz de um oceano em fúria.


Sempre foi o teu nome as marés.
Em cada palavra do teu ser,
navegam barcos de pólen,
peixes de constelações ardentes.
Em cada silêncio dos teus gestos,
nasce o azul dos cavalos marinhos,
movimento dos remos singrando o mistério.


O teu nome sempre foi os promontórios,
as ilhas desvairadas pelo verão.
Sobre tua nudez repousam
a brancura das velas infladas,
a plena luminosidade do meio-dia.


Em teu destino os corais tramaram
a encantação das estrelas marinhas,
a memória dos búzios.
Essa é a convocação das marés:
fazer do teu rosto o destino das ondas,
a areia desfeita nas orlas.


No teu nome o sono das crianças
apascentou a cólera dos naufrágios.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Coisas bonitas que ela escreve

Lê, com os olhos na ponta dos dedos,
o alfabeto de estrelas que se apaga
a cada página virada.
Antônio Moura

Desenhos que não parecem desenhos – é assim que podemos olhar para “mínimo múltiplo incomum”, exposição de Keyla Sobral, em que o contexto de liberdade e autonomia do traço almeja um jogo cada vez mais amplo com a aparência, não exatamente por métodos óticos: a certa altura o “visual” refere-se mais, bem mais à escrita, pela intercalação verbal que os desenhos experimentam e incorporam a partir de certas frases fictícias postas ao rodapé: “ela disse suba”, “joguei no fogo: teus óculos, teus livros e teu impregnante perfume”, “arranjou coisa melhor para fazer”. Note-se que os termos não partem de uma negação, como no célebre “Isto não é um cachimbo”, em que a despeito de ter desenhado um cachimbo, René Magritte se apressa a pôr dúvida sobre os elementos que asseveram seu ato. Há desafios ainda não-resolvidos aí. Magritte não denotava um “erro”, muito menos uma verdade que fosse perene, última, platônica. E ao que parece, Keyla, como ele, não quer reduzir-se a um comentário único do mundo. Abre o desenho a uma estranha órbita de deslocamentos e reviravoltas. Narra o que está entre uma coisa e outra – em linhas desenhadas à tinta, lápis, carvão, a cena não resulta em cenário, senão em breve colapso entre a aparência e o íntimo das coisas. Magritte de alguma forma sabotou o desenho de seu curso de aparências. Lançado dentro de uma complexidade de tantos lados, o desenho se pôs a explorar uma perspectiva de humor desconcertante ainda hoje. Desde então o desenho nos fala. Mobiliza-nos como a escrita. É escrita. Keyla, por isso mesmo, meio que pode fazer um desenho aforismático. Ela vislumbra uma conjunção insólita com a palavra. Age de maneira extremamente pessoal, progressivamente, para se isentar de qualquer excesso de identidade e natureza. O que serve para dizer que não se trata de momentos de elevada calma. Keyla quer a ironia. Mas sem obsessões e talvez pressa. Uma vez que isto para ela é mais que uma questão de desenvolvimento artístico. É pulsação. Guarda uma estranha proximidade cotidiana com assuntos comuns da vida e a um só tempo pode se locomover livremente entre uma zona fictícia e outra. Trânsito de experimentações e instabilidades da arte como mapa da escrita, que por outros tantos modos e adjacências pode nos reconduzir a um Hélio Oiticica que resenhava com slogans e legendas capas, bandeiras, estandartes (os parangolés) e estabelecia uma relação-limite das formas visuais com a dança, música, teatro, tudo a partir dos relatos críticos e das figurações verbais: “seja marginal, seja herói”, “estou possuído”, “incorporo a revolta”. O que se pode vislumbrar aqui é um turbilhão de correlações infinitamente ativas. Paralelos. Tensões. Atritos. Outras linguagens querendo vir, se desprender, se mostrar. Keyla desenha motivada por conceitos e reage à significação – sente outras coisas subirem pelo papel. Ela pode inquietar um fundo de corredor de galeria, como Oiticica o museu invadido por passistas da Mangueira. E também dilatar/desfigurar fatos, memórias e mundos particulares embaralhando suas legendas com as dos parangolés e outras tantas. Linhas escritas e linhas desenhadas. 
Aí se pode engendrar toda irrealidade.
















Ney Ferraz Paiva
Salgueiro 28.09.2010