o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Coisas bonitas que ela escreve

Lê, com os olhos na ponta dos dedos,
o alfabeto de estrelas que se apaga
a cada página virada.
Antônio Moura

Desenhos que não parecem desenhos – é assim que podemos olhar para “mínimo múltiplo incomum”, exposição de Keyla Sobral, em que o contexto de liberdade e autonomia do traço almeja um jogo cada vez mais amplo com a aparência, não exatamente por métodos óticos: a certa altura o “visual” refere-se mais, bem mais à escrita, pela intercalação verbal que os desenhos experimentam e incorporam a partir de certas frases fictícias postas ao rodapé: “ela disse suba”, “joguei no fogo: teus óculos, teus livros e teu impregnante perfume”, “arranjou coisa melhor para fazer”. Note-se que os termos não partem de uma negação, como no célebre “Isto não é um cachimbo”, em que a despeito de ter desenhado um cachimbo, René Magritte se apressa a pôr dúvida sobre os elementos que asseveram seu ato. Há desafios ainda não-resolvidos aí. Magritte não denotava um “erro”, muito menos uma verdade que fosse perene, última, platônica. E ao que parece, Keyla, como ele, não quer reduzir-se a um comentário único do mundo. Abre o desenho a uma estranha órbita de deslocamentos e reviravoltas. Narra o que está entre uma coisa e outra – em linhas desenhadas à tinta, lápis, carvão, a cena não resulta em cenário, senão em breve colapso entre a aparência e o íntimo das coisas. Magritte de alguma forma sabotou o desenho de seu curso de aparências. Lançado dentro de uma complexidade de tantos lados, o desenho se pôs a explorar uma perspectiva de humor desconcertante ainda hoje. Desde então o desenho nos fala. Mobiliza-nos como a escrita. É escrita. Keyla, por isso mesmo, meio que pode fazer um desenho aforismático. Ela vislumbra uma conjunção insólita com a palavra. Age de maneira extremamente pessoal, progressivamente, para se isentar de qualquer excesso de identidade e natureza. O que serve para dizer que não se trata de momentos de elevada calma. Keyla quer a ironia. Mas sem obsessões e talvez pressa. Uma vez que isto para ela é mais que uma questão de desenvolvimento artístico. É pulsação. Guarda uma estranha proximidade cotidiana com assuntos comuns da vida e a um só tempo pode se locomover livremente entre uma zona fictícia e outra. Trânsito de experimentações e instabilidades da arte como mapa da escrita, que por outros tantos modos e adjacências pode nos reconduzir a um Hélio Oiticica que resenhava com slogans e legendas capas, bandeiras, estandartes (os parangolés) e estabelecia uma relação-limite das formas visuais com a dança, música, teatro, tudo a partir dos relatos críticos e das figurações verbais: “seja marginal, seja herói”, “estou possuído”, “incorporo a revolta”. O que se pode vislumbrar aqui é um turbilhão de correlações infinitamente ativas. Paralelos. Tensões. Atritos. Outras linguagens querendo vir, se desprender, se mostrar. Keyla desenha motivada por conceitos e reage à significação – sente outras coisas subirem pelo papel. Ela pode inquietar um fundo de corredor de galeria, como Oiticica o museu invadido por passistas da Mangueira. E também dilatar/desfigurar fatos, memórias e mundos particulares embaralhando suas legendas com as dos parangolés e outras tantas. Linhas escritas e linhas desenhadas. 
Aí se pode engendrar toda irrealidade.
















Ney Ferraz Paiva
Salgueiro 28.09.2010

Um comentário:

  1. Vi o múltiplo e incomum bem de perto ao visitar a exposição no museu da UFPA. A curadoria precisa e poética de Orlando estava lá! Eu vi.

    ResponderExcluir