CAINDO NAS MADRUGADAS
ouço jambos caindo nas madrugadas.
uma grande solidão encontra
algumas mulheres com livros nas mãos.
são senhoras que lêem rosa.
meninas que lêem nietzsche.
fêmeas que lêem dostoiévski.
como ser outra se jamais se sabe o que se é?
além da névoa e da noite, o que existe?
a um ciúme amendoado estamos presas.
o que faz de nós porcelana e estrume?
ímã e tarântula?
qual homem ainda amar? Aquele que é veludo e não
adaga?
algumas mulheres já nasceram grutas.
por isso escrevem, maternais e cúmplices.
nas tardes de carnaval.
o que uma mulher procura em outra, além da ternura?
antigos medos se enfileiram.
hálitos e árias se confundem.
a felicidade é um pássaro de asas curtas e desejos
molhados.
o que nos faz diabólicas
ísis, helenas, electras, medusas, medéias?
inocentada pela delicadeza uma fina chuva cai.
enumero coisas perdidas:
serpentinas, ciladas, armadilhas.
e a lágrima primeira.
quase esquecida.
MEU SEGREDO
Silêncio: ouço chegar o fogo.
Ofereço-lhe a minha casa e o meu zelo.
Lá fora o mundo chora
— essa dor é o meu segredo.
Namoro a flor que tocou o pássaro que tocou a noite que tocou o amor.
SETA
Atrás do amor, um tentáculo.
Um túmulo. Uma sede de flor e sol.
Retorno para a menina que grita:
— Horror! Horror! Horror!
Mostro-lhe a seta que me acertou.
Coloco seu rosto entre minhas mãos
— e lanço-me.
DIAS CLAROS E FRIOS
nos dias claros e frios mulheres recolhem lembranças.
barbatanas se erguem e são vistas com calma e desespero.
homens permanecem ocultos.
moças partem e não voltam mais.
quasares de dor flutuam.
o que será que existe quando nós não estamos aqui?
treva e vento. azul-claro. azul escuro. desejos de céu.
rastros de compaixão atravessam séculos.
viemos do caos e clamamos sutilezas.
deusas que estão em nós, levem-nos para a lua.
para o ceilão, qualquer lado do pacífico.
livre-nos dessa culpa de pedra que nos faz inacessíveis.
que venha a nós a suavidade do mundo
e que este mar nos mostre a sua outra face.
coisas poderosas se levantam
e nos levam ao país da ternura.
raios e trovões nos chamam.
silenciosa vertigem do nada
ASSOMBRO
Corais paralisam suas presas.
Observo neste aquário tubarões de terrível beleza.
Quem me lançou dardo, deitou-se comigo.
Quem me amordaçou, gozou em silêncio.
Tenho na bolsa um coração assombrado.
Mas tão inocente e jovem que dá medo.
E me sustenta.
SEM TÍTULO
Para beijar os seus lábios eu surgi do lodo
ele me deu água
enviou-me ao hospício
dentro de suas vestes encontrei segredos medievais.
árias, anjos, musas.
as flores do mal.
eu quase fui sua
falávamos em eternidade e as escamas da morte se aproximavam.
consultei o i ching.
e lá estava: forte viga amparada por paredes frágeis
SOLAR
SOLAR
Cadáveres despertam depois do amor.
Lágrimas choram e se estrangulam.
Não sou a mulher que você vê.
Não sei o que é o inverno
- nunca vi a neve.
O meu ofício é reinventar asas para o sol.
MARIZE CASTRO, poeta imensa, nascida em Natal, 1962.
Publicou: Esperado Ouro (2005), Poço Festim Mosaico (1996),
Rito (1993) e Marrons Crepons Marfins (1984).
imagens: simon lee/gordon ball
Nossa!! amei...simplesmente lindos.
ResponderExcluirNey, que surpresa a poesia de Marize! De Natal vir uma poeta tão forte é de fato um inigualável presente!
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