o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

É UMA PENA QUE EU NÃO POSSA ESTAR COM VOCÊS HOJE


Ana Cristina cadê você?
Estou aqui, você não vê?
[Cacaso]

Para sempre é sempre por um triz.
Diz quantos desastres tem na minha mão.
[Chico Buarque]






Possa Deus escapar da ausência de Ana Cristina Cesar. Nossa cultura judaico-cristã não está habituada a admitir as perdas. “Perder é uma lenha”, a própria Ana reconhecia. Morta a 29 de outubro de 1983, ao se lançar da janela do apartamento onde morava em Copacabana, a poesia de Ana vem tentando escapar à significação desse desaparecimento prematuro e trágico. Com efeito, sempre e cada vez mais, a soma dos anos que nos separam dela – pedras lançadas no grande rio – desencadeia movimentos circulares de inquietante perda. Sua ausência alimenta uma aura.

Mas nem o suicídio tem a força de mover o tempo ao contrário, muito menos resolve o enigma, quando muito coloca o tempo em suspenso e abre certas rotas ou notas de rodapé em torno da escrita da poeta – desde que não subam (ela mesmo pediu numa glosa feita a Nabokov) “como arranha-céus, até o topo da página” para não asfixiar ou até mesmo fazer sucumbir o enunciado. Não há como excluir o leitor, cegá-lo com o véu de palavras que separam e nada mostram. Não qualquer leitor, é certo, mas o bom leitor que o grande texto exige. Singular contradição: ainda que tematize o cotidiano com frequência, a poesia de Ana requer leitor atento – suas pistas despistam, podem conduzir por desvios ao deserto e não às fontes da vida, pelas suas irresoluções e por não se resguardar nem da dor nem da morte. Não a morte gloriosa de Aquiles, mas da que é emparedamento e declínio em plena juventude, passível protocolo da vida artista.

Nos Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes fala do ser ascético como de alguém capaz de arruinar o próprio corpo. Por extremo acaso, imediatamente se pode voltar e tentar ver a evanescente silhueta de Ana, como se as palavras do semiólogo francês, que ela tanto admirava, fossem capazes de revelar a identidade da poeta, ou pelo menos, mínimos pedaços de sua angústia. Pelos cabelos curtos, o olhar autodevorador de quem está ausente – quando não, o rosto magro, hierático, atrás dos óculos escuros. "Quem escolheu este rosto para mim?", ela disfarçava. Quem ainda a procura? O rosto definitivamente desfigurado aos 31 anos. A infelicidade intriga mais do que a alegria.


Quando estamos perdidos precisamos andar em círculos até cruzarmos o próprio rastro. A poesia de Ana costuma seguir o percurso de alguém desnorteado, evitando se orientar de cara pelas referências próximas, fáceis de localizar. Ana parecia não se deter no imediatismo da informação que as imagens desprendem no poema, para tentar chegar pelo lado mais íngreme do caminho à nervura do que se escreve. Poesia sem bússola e carta de navegação, afeita a desencontros desconcertantes. "Eu não sabia/ que virar pelo avesso/ era uma experiência mortal."





Menina ainda, Ana escrevia memórias – uma menina envelhecida –, e foi saudada por Lúcia Benedetti no Jornal Tribuna da Imprensa, 14-15 de novembro de 1959, (tinha sete anos) como modelo de uma poesia sem texto: “as crianças em si são a própria poesia”. Mas se bem se observar, os poemas ditados à mãe (quando ainda não sabia escrever) e enviados à Benedetti desautorizam sua recepção como se fosse um “sopro de Deus”, como chega a afirmar a jornalista. A pequena Ana insurge-se com uma poesia vinculada modernamente a uma crise da linguagem e a um embate com a palavra, sob a força da esterilidade e do aniquilamento. Soletrava o destino dos homens, não dos deuses. Aos olhos da menina séria o mundo revelava-se e submergia, fazia-se e desfazia-se num prognóstico de imperfeições e desastres: vento selvagem, rocha, terra, fogo, céu. Estruturas deformadas pela retina de quem não ousa libertar-se das imagens que vê, atravessando-as, alucinada.


Estamos de volta/ aos dias moribundos de calor e/ outono/ onde as folhas gordas/ viram e suspiram no/ silêncio amarelado/ onde vimos pela primeira vez/ o brilho novo do céu// estamos de volta/ atrás de nós as ondas/ cercam nossos/ gestos/ o nascimento da tarde/ é mais que as limitações/ sem tempo// estamos de volta ao mesmo/ lugar enorme e irresistível,/ às sombras moribundas de/ calor e outono




Parte dos poemas da infância de Ana vem a público em Inéditos e Dispersos (Brasiliense, 1985). Eles nos fazem ver, como em Ezra Pound, que na infância temos já o corpo pesado de pranto, só ainda não chegamos ao limite da água mais funda. Mais uma vez desfavorecem (mas, claro, não impedem) as excessivas preocupações biográficas, confissões íntimas, frequentes ações redutoras do texto que a própria Ana adulta fez questão de desautorizar e desmontar em A teus pés. Ela jamais quis submeter sua poesia à condição de ser arrastada pela curiosidade perversa do “diário íntimo”, do "testemunho/ testamento", dos votos sinceros do “sujeito”, ou mesmo da “primeira pessoa”. Que muitos então caíssem "feito patinhos" na armadilha de um texto em que se multiplicam "Vozes barganhando/ uma informação difícil", o "Apuro técnico", "Um golpe de exercício" – Ana antes tratava de se interditar sob o impacto das imprecisões do enunciado, dos lapsos de memória, das elipses da ficção.






A teus pés, lançado no final de novembro de 1982 pela Brasiliense, prorroga e amplia a voz anterior da menina a uma mulher (não uma mulherzinha) intransitiva e desenfreada, como marca escritural, numa espécie de operação de descaracterização de estilo, que impões, num contraste, a certas poetas contemporâneas quedas de ritmo/estilhaçar de ecos – ou, mais especificamente, não as deixou escapar à menor impugnação do Eu. No caso de Ana, se depara desde sempre com uma poesia desgarrada, empreendendo uma caminhada ofegante, de passos trocados com o resto da humanidade (um pacto de aliança com Henry Miller) – ora percorrendo paisagens alterosas, superfícies circundantes; ora transcursos subterrâneos, infiltrando-se no tempo evanescente e vazio. Tentativa labiríntica de entender o que se viu com o primeiro olhar.

Ficam ainda as perguntas: até onde poderia ir a jovem poeta, atada ao liame de uma escrita desviante, no período imediatamente após à repressão política e cultural? A quem pertencerão os rastros de seu texto, emaranhados e sobrepostos à escrita de Torquato Neto, Maura Lopes Cançado, Hilda Hilst, Sylvia Plath, Severino do Ramo, Caio Fernando Abreu, Lucienne Samôr, a partir da agonia de quem “sabe” apenas do seu começo? Safo desencontrada de si mesma, destinada a errar até a morte – "Um dia me safarei – aos poucos me safarei, começarei um safári".


Ney Feraz Paiva

2 comentários:

  1. "Quando estamos perdidos precisamos andar em círculos até cruzarmos o próprio rastro."...
    e é todo um belo texto, Ney! e sempre reler Ana C.
    grande abraço, patricia

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  2. sim, patrícia que alegria o texto da ana - encontro de belezas que proliferam e ativam o corpo e o cérebro. que bom você passar por aqui. bjs

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