Essa poesia é pra tocar no rádio
1. a leitura
Lê sem ler, o que só é possível num certo de-lírio. [Jacques Derrida]
O inútil de fazer, segundo João Cabral de Melo Neto, vale mais que não fazer. Fazer está na ordem das debulhadas, fazer o pensamento pensar, fazer a escrita começar seu desconhecer – escolher seus escolhidos. José Inácio Vieira de Melo é um desses tais que vêm ao mundo pra não ter outras virtudes, que não as de poeta, o mais inútil dos fazeres. Por que outro motivo alguém se colocaria a cultivar rosas escarlates em pleno sertão – sem ter como manejar mais do que palavras? Ato de sensualidade, mostrar a escrita ao outro. Tocar, esfregar, afrontar. Múltiplos lances-movimentos que desejam trocas, reverberações de um sentir novo, aberto, total. Nada mais inútil, e não menos imoral, fazer frente aos narcisismos, às individualidades com a leitura. Instintivamente, o texto vai se adestrando no hábito de não se dirigir a ninguém, ou, por outro, de simular ao menos o receptor incauto. Se há uma escrita que escolhe, há uma voz que se quer ouvida, distinguida, ampliada, mesmo que por seu obscuro assovio. Josefina não canta, ela apenas assobia pior. É pela voz que o texto começa seu devir animal. Ler-escutar é uma metamorfose. E por esse duplo ato o poeta opera rebeliões entre dois mundos: o mundo irreal, o mundo cotidiano. Lança seus temas numa rede de repetições e variações intermináveis. Se de um lado enfatiza a literatura que circula nas comunidades centrais do sertão – literaturas bem menores que as menores, como cordel, cordões, reisados; de outro, se lança num circuito aberto de voo estético sem fronteira, que inclui Gertrude Stein, ecos de Carlos Drummond, o formalismo precioso e raro de João Cabral de Melo Neto, a essência marítima de fazer viajar as viagens em Herberto Helder e Gerardo Mello Mourão – tudo atravessado pelos ritmos inumeráveis a que aludiu Manuel Bandeira, e por isso mesmo arrisco dizer que ao fundo dessa poesia há lances embrionários de bossa nova, escutem, escutem, escutem... Mas que ninguém se engane: não se trata de uma escrita meramente submetida aos processos cultos dos grandes centros, de que muito se tem servido certa poesia desmunida de vigor e originalidade. A cópia sem o rigor dos ensinamentos, que se reduz à má sorte dos aprendizes sem talento, sempre entregues a itinerários determinados com antecedência. Música & escrita como que numa apresentação sussurrada, rouca e de assovios dissonantes, que talvez se pudesse tocar no rádio, como num delírio de escuta-e-leitura que manipulasse o sistema de recepção da poesia, quase nunca conflitante e alterado – convencional a não mais poder. Dos influxos do sertão às conjunções do ser-tudo, a poesia é convivência, vida comum, reimpressão dos caminhos dos homens a que Jorge Luis Borges bifurca, na ausência de mapas e atlas mais precisos, com o uso desproposital de um espelho e uma enciclopédia. José Inácio Vieira de Melo, algo que numa contraleitura dos lugares e paisagens a que se ajustam expectativas reais e sonhos de paraíso, movimenta sua poesia às direções remotas dos sentidos dos homens, aos seus desenfreados horizontes, às rotas empoeiradas a que uma suposta rosa-dos-ventos indicou o futuro – ou terá sido o passado? Com todas as variações e permutações iminentes.
2. o livro
Se um homem atravessasse o Paraíso num sonho, e lhe dessem uma flor como prova de que lá estivera, se ao despertar encontrasse essa flor em sua mão... o que dizer então? [Coleridge]
José Inácio Vieira de Melo, em “Roseiral”, empreende o ato de fazer o outro perceber/perceber-se nos duplos e nas transmutações de si: despertar “a vontade de plantar pedras em outras cabeças”, como consequência de uma linguagem que joga, brinca, viaja – e não se faz trocar por fichas neutras. Daí que, desde os poemas iniciais, o poeta evoca o retrato de cabeças como um gravurista que não se basta à representação. “Eu jogo uma pedra em tua cabeça para que ela cresça em dor”, ou: “A tua cabeça é um precioso amuleto dentro da minha cabeça”. A iconografia que o poeta quer é outra. Uma que fizesse circular um retrato que fosse o menos comum, do quanto que deste lugar existe, se é que existe o lugar e se pode falar por si ou de sua cópia, ou de seu vulto – e, assim, não mais ter que estampar uma mesma e única fisionomia no imediatismo precipitado da pergunta: o que é o sertão? Isto não mais. O retrato falado a que certo cinema, certa literatura, certa música não cessam de nomear, fixar. Uma sociologia que não se sabe se das artes, se das suspeitas, se das discriminações. Por certo nunca a das diferenças, das singularidades, das ramificações. Que esses clichês se abram em outros nomes-imagens não como buquês que ornam e celebram uma vida passivamente administrada; buquês que logo murcham nas mãos daqueles que já estavam mortos. Contra isto a potente investida dessa poesia multiplicada, transmutada, saída do silêncio e da solidão – num estrondo, numa pancada: “Para que, plantada em tua cabeça, a pedra frequente a tua existência”.
“Roseiral” tem como horizonte a amplidão. Requer conversa, diálogo, fala amigável, alegre e incessante. E isto é mais do que tentar uma ênfase. O livro todo nos afeta o imaginário com a vivacidade das coisas cuidadosamente feitas, e não arrefece o impulso de subida nas cinco seções em que se divide. Sem sacrificar a complexidade das temáticas, e sem cair na exterioridade do genérico, chega aos pontos de tensão em áreas de sensibilidade que pra muitos pareciam esgotadas, exauridas. Aqui, a “pedra”, a “rosa”, a “odisséia” – ou a viagem e o nomadismo – abrem espaço pra uma cena maior, de acentuada potência elocutória: um fluxo, um nascimento, uma torrente de coisas sendo devidamente despertadas em simetrias secretas. Não é mais o livro numa combinação híbrida de Rilke, Lorca, nem mesmo Celan, mas o livro inaudito. Um que se volta aos segredos como se de um álbum de família vertiginoso e nada dócil, de nomes-imagens travejados; livro que ativa toda a penúria que somos no instante impreciso das horas e descobertas. É o menino, a infância, a casa, o homem – aquele cadinho que somos, pra quem as coisas acontecem e, a uma só vez, escapam, multiplicam-se. “Eu não sei nem pra onde ir com a minha diferença”. O que somos é algo que criamos – somos nossa própria criação e não cessamos de fazê-la aqui e alhures. Formas de criação em linhas, trânsitos, direções fundamentais e intermediárias. Aventuras secretas e prazeres comuns. O aberto. O fechado. A favor disso o poeta adverte de seu modesto e imenso propósito: “E agora eu só sei te falar desse labirinto”.
Ney Ferraz Paiva
imagem: janet & george
1. a leitura
Lê sem ler, o que só é possível num certo de-lírio. [Jacques Derrida]
O inútil de fazer, segundo João Cabral de Melo Neto, vale mais que não fazer. Fazer está na ordem das debulhadas, fazer o pensamento pensar, fazer a escrita começar seu desconhecer – escolher seus escolhidos. José Inácio Vieira de Melo é um desses tais que vêm ao mundo pra não ter outras virtudes, que não as de poeta, o mais inútil dos fazeres. Por que outro motivo alguém se colocaria a cultivar rosas escarlates em pleno sertão – sem ter como manejar mais do que palavras? Ato de sensualidade, mostrar a escrita ao outro. Tocar, esfregar, afrontar. Múltiplos lances-movimentos que desejam trocas, reverberações de um sentir novo, aberto, total. Nada mais inútil, e não menos imoral, fazer frente aos narcisismos, às individualidades com a leitura. Instintivamente, o texto vai se adestrando no hábito de não se dirigir a ninguém, ou, por outro, de simular ao menos o receptor incauto. Se há uma escrita que escolhe, há uma voz que se quer ouvida, distinguida, ampliada, mesmo que por seu obscuro assovio. Josefina não canta, ela apenas assobia pior. É pela voz que o texto começa seu devir animal. Ler-escutar é uma metamorfose. E por esse duplo ato o poeta opera rebeliões entre dois mundos: o mundo irreal, o mundo cotidiano. Lança seus temas numa rede de repetições e variações intermináveis. Se de um lado enfatiza a literatura que circula nas comunidades centrais do sertão – literaturas bem menores que as menores, como cordel, cordões, reisados; de outro, se lança num circuito aberto de voo estético sem fronteira, que inclui Gertrude Stein, ecos de Carlos Drummond, o formalismo precioso e raro de João Cabral de Melo Neto, a essência marítima de fazer viajar as viagens em Herberto Helder e Gerardo Mello Mourão – tudo atravessado pelos ritmos inumeráveis a que aludiu Manuel Bandeira, e por isso mesmo arrisco dizer que ao fundo dessa poesia há lances embrionários de bossa nova, escutem, escutem, escutem... Mas que ninguém se engane: não se trata de uma escrita meramente submetida aos processos cultos dos grandes centros, de que muito se tem servido certa poesia desmunida de vigor e originalidade. A cópia sem o rigor dos ensinamentos, que se reduz à má sorte dos aprendizes sem talento, sempre entregues a itinerários determinados com antecedência. Música & escrita como que numa apresentação sussurrada, rouca e de assovios dissonantes, que talvez se pudesse tocar no rádio, como num delírio de escuta-e-leitura que manipulasse o sistema de recepção da poesia, quase nunca conflitante e alterado – convencional a não mais poder. Dos influxos do sertão às conjunções do ser-tudo, a poesia é convivência, vida comum, reimpressão dos caminhos dos homens a que Jorge Luis Borges bifurca, na ausência de mapas e atlas mais precisos, com o uso desproposital de um espelho e uma enciclopédia. José Inácio Vieira de Melo, algo que numa contraleitura dos lugares e paisagens a que se ajustam expectativas reais e sonhos de paraíso, movimenta sua poesia às direções remotas dos sentidos dos homens, aos seus desenfreados horizontes, às rotas empoeiradas a que uma suposta rosa-dos-ventos indicou o futuro – ou terá sido o passado? Com todas as variações e permutações iminentes.
2. o livro
Se um homem atravessasse o Paraíso num sonho, e lhe dessem uma flor como prova de que lá estivera, se ao despertar encontrasse essa flor em sua mão... o que dizer então? [Coleridge]
José Inácio Vieira de Melo, em “Roseiral”, empreende o ato de fazer o outro perceber/perceber-se nos duplos e nas transmutações de si: despertar “a vontade de plantar pedras em outras cabeças”, como consequência de uma linguagem que joga, brinca, viaja – e não se faz trocar por fichas neutras. Daí que, desde os poemas iniciais, o poeta evoca o retrato de cabeças como um gravurista que não se basta à representação. “Eu jogo uma pedra em tua cabeça para que ela cresça em dor”, ou: “A tua cabeça é um precioso amuleto dentro da minha cabeça”. A iconografia que o poeta quer é outra. Uma que fizesse circular um retrato que fosse o menos comum, do quanto que deste lugar existe, se é que existe o lugar e se pode falar por si ou de sua cópia, ou de seu vulto – e, assim, não mais ter que estampar uma mesma e única fisionomia no imediatismo precipitado da pergunta: o que é o sertão? Isto não mais. O retrato falado a que certo cinema, certa literatura, certa música não cessam de nomear, fixar. Uma sociologia que não se sabe se das artes, se das suspeitas, se das discriminações. Por certo nunca a das diferenças, das singularidades, das ramificações. Que esses clichês se abram em outros nomes-imagens não como buquês que ornam e celebram uma vida passivamente administrada; buquês que logo murcham nas mãos daqueles que já estavam mortos. Contra isto a potente investida dessa poesia multiplicada, transmutada, saída do silêncio e da solidão – num estrondo, numa pancada: “Para que, plantada em tua cabeça, a pedra frequente a tua existência”.
“Roseiral” tem como horizonte a amplidão. Requer conversa, diálogo, fala amigável, alegre e incessante. E isto é mais do que tentar uma ênfase. O livro todo nos afeta o imaginário com a vivacidade das coisas cuidadosamente feitas, e não arrefece o impulso de subida nas cinco seções em que se divide. Sem sacrificar a complexidade das temáticas, e sem cair na exterioridade do genérico, chega aos pontos de tensão em áreas de sensibilidade que pra muitos pareciam esgotadas, exauridas. Aqui, a “pedra”, a “rosa”, a “odisséia” – ou a viagem e o nomadismo – abrem espaço pra uma cena maior, de acentuada potência elocutória: um fluxo, um nascimento, uma torrente de coisas sendo devidamente despertadas em simetrias secretas. Não é mais o livro numa combinação híbrida de Rilke, Lorca, nem mesmo Celan, mas o livro inaudito. Um que se volta aos segredos como se de um álbum de família vertiginoso e nada dócil, de nomes-imagens travejados; livro que ativa toda a penúria que somos no instante impreciso das horas e descobertas. É o menino, a infância, a casa, o homem – aquele cadinho que somos, pra quem as coisas acontecem e, a uma só vez, escapam, multiplicam-se. “Eu não sei nem pra onde ir com a minha diferença”. O que somos é algo que criamos – somos nossa própria criação e não cessamos de fazê-la aqui e alhures. Formas de criação em linhas, trânsitos, direções fundamentais e intermediárias. Aventuras secretas e prazeres comuns. O aberto. O fechado. A favor disso o poeta adverte de seu modesto e imenso propósito: “E agora eu só sei te falar desse labirinto”.
Ney Ferraz Paiva
imagem: janet & george