Gilles Deleuze, 1963
Daido Moriyama |
A obra de Raymond Roussel, cuja
publicação foi retomada pelas edições Pauvert, compreende dois tipos de livros:
os livros-poemas, que traçam a minuciosa descrição de objetos miniaturas (por
exemplo, todo um espetáculo sobre uma etiqueta de garrafa de água de Evian) ou
objetos dublês (atores, maquinários e máscaras de carnaval). Um segundo tipo
são os livros-procedimento: partindo, explicitamente, ou não, de uma frase
indutora (ex. “les lettres du blanc sur les bandes du vieux billard”), acaba-se
por reencontrar a mesma frase ou quase (les lettres du blanc sur les bandes du
vieux pillard”), mas no intervalo terá surgido todo um mundo de descrições e
enumerações, onde duas palavras tomadas em dois sentidos vivem vidas
diferentes, ou melhor, são deslocadas para comporem outras palavras (“j’ai du
bon tabac...” = “jade tube onde aubade...”)1.
Este autor, que tanta influência
teve sobre os surrealistas e hoje a tem sobre Robbe-Grillet, continua pouco
conhecido. Michel Foucault publica um comentário impressionante, de uma grande
força poética e filosófica. Ele encontra as chaves da obra em uma direção
bastante diferente da que os surrealistas haviam indicado. Parece
indispensável associar a leitura do livro de Foucault àquela do próprio Raymond
Roussel. Como explicar o “procedimento”? Segundo Michel Foucault, existe na
linguagem uma espécie de distância essencial, de deslocamento, de
desmembramento ou de rasgão. Acontece que as palavras são menos numerosas que
as coisas e que cada palavra tem vários sentidos. A literatura do absurdo
acreditava que faltava sentido; de fato, o que falta são os signos.
Há, então, um vazio que se abre no
interior de uma palavra: a repetição de uma palavra deixa escancarada a
diferença de seus sentidos. Seria a prova de uma impossibilidade da repetição?
Não, e é aí que aparece a tentativa de Roussel: trata-se de aumentar esse vazio
ao máximo, tornando-o determinável e mensurável, e de preenchê-lo, então, com
toda uma maquinaria, com toda uma fantasmagoria que religa e integra as
diferenças à repetição.
Por exemplo, as palavras “demoiselle
à prétendant” induzem “demoiselle (hie) à reitre en dents” e, como numa
equação, o problema torna-se o da execução de um mosaico com a ajuda de um maço
NRT. É preciso que a repetição se torne
uma repetição paradoxal, poética e compreensiva. É
preciso que ela compreenda em si a diferença, ao invés de a reduzir. É preciso
que a pobreza da linguagem se torne sua própria riqueza. Foucault diz: “Não a
repetição lateral das coisas reditas, mas a repetição radical que passou por
cima da não-linguagem e que deve a esse vazio transposto o seu ser poesia DLa.”.
O vazio será preenchido e transposto pelo quê? Por extraordinárias
máquinas, por estranhos atores-artesãos. As coisas e os seres seguem aqui a
linguagem. Tudo nos mecanismos e nos comportamentos é imitação, reprodução,
récita. Mas récita de uma coisa única, de um acontecimento incrível,
absolutamente diferentes. Como se as máquinas de Roussel tivessem tomado para
si a técnica do procedimento: a exemplo do trabalho de turbina, que remete por
sua vez a uma profissão que nos força a levantar cedo NT.
Ou o verme que toca cítara arremessando gotas de água sobre cada corda. Roussel
elabora várias séries de repetição que liberam: os prisioneiros salvarão sua
vida através da repetição e da récita, pela invenção de máquinas
correspondentes.
Precisamente, estas repetições
liberadoras são poéticas, porque elas não suprimem a diferença, mas, ao
contrário, a experimentam e a autenticam ao interiorizar o Único. Quanto ás obras sem
procedimento, obras-poema, elas se explicam de uma maneira análoga. Desta
feita, são as próprias coisas que se abrem em favor de uma miniaturização, ou
melhor, à custa de um dublê, de uma máscara. E o vazio é agora atravessado pela
linguagem, que dá surgimento a todo um mundo no interstício dessas máscaras e
dublês. Desta forma, as obras sem procedimento são como o avesso do próprio
procedimento. Em ambos os casos o problema é o de falar e fazer ver ao mesmo
tempo, falar e dar a ver.
O que dissemos ainda está aquém da
riqueza e da profundidade do livro de Foucault. Esse enlace da diferença com a
repetição contém também a vida, a morte e a loucura. Pois parece que o vazio
interior às coisas e às palavras é um signo de morte e aquilo que o preenche é
presença da loucura.
Todavia, isso não quer dizer que a
loucura individual de Raymond Roussel e sua obra poética tenham um elemento
positivamente comum. Ao contrário, seria necessário falar de um elemento a
partir do qual a obra e a loucura se excluem mutuamente. Ele é comum apenas
nesse sentido; esse elemento é a linguagem. Pois a loucura pessoal e a obra
poética, o delírio e o poema representam dois investimentos da linguagem, em
níveis diversos, exclusivos.
Foucault, em seu último capítulo,
esboça, a partir desse ponto de vista, toda uma interpretação das relações
obra-loucura, que se aplicaria, e que talvez aplicará a outros poetas
(Artaud?). O livro de Foucault não é decisivo somente em função de Roussel; ele
marca uma etapa importante nas pesquisas pessoais do autor, dedicadas, em
primeiro lugar, às relações entre a linguagem, o olhar, a morte e a loucura2.
. .
.
Tradução
de
Hélio
Rebello Cardoso Júnior
DL Arts, 23-29 outubro 1963, p. 4 (Sobre
o livro de M. Foucault, Raymond Roussel, Paris, Gallimard, 1963).
Deleuze e Foucault se haviam encontrado na casa do filósofo e epistemólogo
Jules Vuillemin, em Clermont-Ferrand, no ano anterior (eles haviam se
encontrado alguns anos antes, em Lille, por intermédio de um amigo, Jean-Pierre
Bamberger). Foucault sugeriu que Deleuze se juntasse a ele na Universidade de
Clermont-Ferrand, mas foi finalmente Roger Garaudy quem seria nomeado com o
apoio do Ministério (Deleuze será nomeado para Lyon). Tal episódio é o início
de uma amizade e de uma admiração recíproca entre Deleuze e Foucault que se
prolongará até finais dos anos 70. Ver DRF, o texto “Désir et Plaisir”.
1
Já lançado pela Pauvert: Comme j’ai écrit certains de mes livres?; la Doublure; Impression
d’Afrique. [NRT: embora insuficiente para reproduzir a aplicação desse
procedimento em língua portuguesa, eis a tradução literal dos exemplos aí
citados: “as letras em branco nas tabelas do velho bilhar” / “as letras em
branco nas costas do velho ladrão”; “tenho bom tabaco...” = “jade tubo onda alvorada”.
Notar, em francês, o duplo uso de “bandes” como tabela e costado, assim como o
jogo sonoro/surdo das consoantes b/p em “billard”/”pillard” (bilhar/ladrão)].
NRT
[Eis apenas a tradução literal dos exemplos: “senhorita para pretendente” /
“senhorita (maça) para experimentado em dentes”. Em francês, a inteligibilidade
dos exemplos depende do emprego do termo “demoiselle” tanto no sentido de
“senhorita” quanto no sentido de “hie”, isto é, de maça ou maço, instrumento
usado para embutir, implantar guias de calçada, segmentos que se sucedem como
dentes separando a calçada do leito da rua].
DLa RR,
p. 63.
NT [Trata-se
de um procedimento lingüístico de difícil tradução, posto que a expressão
“trabalho de turbina” (“métier à aubes”), contém o vocábulo “aube”, que serve
ao mesmo tempo para pá de uma turbina e alvorada].
2
Cf. Michel Foucault: Maladie mental et psychologie (PUF, 1954); Histoire
de la folie à l’âge classique (Plon, 1961) e, recentemente, Naissance de
la clinique (PUF, 1963), onde o autor pode dizer: “Neste livro está em
questão o espaço, a linguagem e a morte,
está em questão o olhar.”