o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 14 de julho de 2011

A FERA NÃO DEIXAVA RASTROS




"não quero ficar com o que vivi"
"não confio no que me aconteceu"
"não quero me confirmar no que vivi"
"voltei a ser uma pessoa que nunca fui"
Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H.

clarice lispector não conservou quase nenhum dos originais dos seus vinte e cinco livros. apagados do seu começo os livros de clarice são um ponto final. há os originais datilografados dos contos que ela reuniu, escritos de 1940 a 1941 – quando tinha entre 15 e 16 anos. organizados por olga borelli e editados postumamente em 1979, receberam o enigmático título a bela e a fera ou a ferida grande demais. a mulher que sequer dormia para poder escrever – como faria a estocagem das coisas que criava por surtos e espasmos? o que mais teria a deixar senão manuscritos incompletos, fragmentos e rascunhos anodatos em papéis diversos – como instantâneos de uma intensa rotina de dispersão. tanto da escrita ou da vida. sobrevivendo da insanidade da itinerância. clarice não armazenava nada que viesse a excitar  a curiosidade do público ou da crítica. não que se preocupasse em ser exatamente uma mulher discreta. desquitada e com dois filhos para criar, ela fazia as turbulências voarem aos pedaços frente às circunstâncias sociais e os bons costumes dos ambientes de cultura chique da zona sul do Rio de Janeiro. explicitamente se desligava da perspectiva de ser uma escritora com interioridade.  esfolada, abalroada, perturbada. questão é que não queria ter a irradiação própria de uma mulher com aquela intensidade numa literatura "brasileira" tão sem rupturas e desvios (vale dizer, careta, hipócrita, chata, muito chata). clarice erigiu-se em meio a todo tipo  de intriga e negação. entusiastas não se dispuseram a fazer de sua obra mais do que sociologia, mesmo no espaço teatral.  desafetos questionavam a eficiência pragmática do seu discurso. era como se  desbastassem a um só tempo a realidade  e a ordem do significante. ou algo ainda mais temerário: entender o imperceptível, o inominável. e como viver também escrever ultrapassa o entendimento, clarice livrava-se das pistas. escapava. desinflava-se. olga borelli diz ter visto já na primeira vez uma Clarice fadigada. a maior escritora da língua portuguesa e o pleno contraste do êxito, do lucro, do sucesso. seu extraordinário a paixão segundo g.h. levou olga a procurá-la incondicionalmente. desse encontro sem agitações radiantes virá o cuidado pelos primeiros e derradeiros escritos de clarice. o que para um escritor equivale a uma inestimável fortuna (já que vive, paga suas contas, pira com fortunas falidas, até mesmo as críticas). além de a bela e a fera, olga organiza água viva e um sopro de vida (pulsações). o intenso e repetitivo desvanecimento dos tantos instantes. contudo, ele não encerrará no silêncio toda uma obra. a obra subsiste do precário que é todo instante e da partilha altiva com os outros –, desse súbito alargamento de forças e energias, do que vem a ser a lenta interligação de todas as últimas coisas: ásperas, desgarradas, farfalhantes. os fluxos, eles vêm fazendo o serviço.


ney ferraz paiva

4 comentários:

  1. Olga dizia que "A paixão segundo G. H. tem uma espinha dorsal" - já "Água Viva", que ela paciente e dedicadamente organizou para a Clarice, era uma escrita "invertebrada".

    Deixo-te um trecho da Biografia escrita pelo Moser, Ney, que enfatiza o que Olga representou diante dos fragmentos e rascunhos que encontrara de Clarice, mas então já apenas perante seus últimos trabalhos:

    «À medida que ela ficava mais velha, editar a si própria ía ficando cada vez mais extenuante. "Ela não tinha coragem de estruturar esses manuscritos, esses fragmentos todos", recorda Olga. "Um dia, vendo todo aquele material, eu disse: -Clarice, por que você não escreve? O livro está pronto. Ela disse: -Não, eu tenho muita preguiça, deixa pra lá. Eu disse então: -Não, eu te ajudo. Foi aí que eu peguei o pique da estruturação e que eu tive coragem, depois, de me atrever a fazer os outros. [...] Seu método editorial era respirar junto.
    Porque existe uma lógica na vida, nos acontecimentos, como existe num livro. Eles se sucedem, é tão fatal que seja assim. Porque se eu pegasse um fragmento e quisesse colocar mais adiante, eu não encontraria onde colocar. É como um quebra-cabeça. Eu pegava os fragmentos todos e ía juntando, guardava tudo num envelope. Era um pedaço de cheque, era um papel, um guardanapo [...] Eu tenho algumas coisas em casa ainda, dela, e até com o cheiro do batom dela. Ela limpava os lábios e depois punha na bolsa [...] de repente, ela escrevia uma anotação."»

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  2. Katy, lendo a respeito dos originais da clarice se percebem muitas controvérsias e omissões. por exemplo, a edição de "a bela e a fera" (nova fronteira, 1979) dá como organizador paulo gurgel valente. já benedito nunes aponta olga como organizadora. e o que antes eram apenas cópias datilografadas desses contos, a fundação casa de rui barbosa guarda ali as 20 laudas dos manuscritos.

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