o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

A PALAVRA, OCUPAÇÃO DE RIVAIS [1]





Por que, então Sylvia se matou?
Acredito que seu suicídio tenha sido, em parte, “um pedido de socorro” que saiu pela culatra, com conseqüências fatais. Mas foi também uma última tentativa de exorcizar a morte que tanto evocara em seus poemas.
Já sugeri que talvez existissem duas razões para Sylvia ter começado a escrever obsessivamente sobre a morte.
Em primeiro lugar, ao separar-se do marido, querendo ou não, passara a reviver profunda dor e sensação de perda experimentada em criança quando o pai, com sua morte, parecera abandoná-la. Em segundo lugar, acredito que o acidente de carro do verão anterior a libertara; pagara suas dívidas, qualificando-se como uma sobrevivente, e agora podia escrever sobre o assunto.
No entanto, para o próprio artista a arte não é necessariamente terapêutica; ele não se livra automaticamente de suas fantasias ao expressá-las. Ao contrário, por uma espécie de lógica perversa da criação, o ato da expressão formal pode simplesmente tornar o material trazido à tona mais prontamente disponível para o artista.
O ato de lidar com essas fantasias em seu trabalho pode muito bem fazer com que ele de repente se perceba vivendo-as.
Para o artista, em suma, a natureza muitas vezes imita a arte. Ou, para mudar de clichê, quando um artista aponta um espelho para a natureza, ele descobre quem, e o que, ele é; mas essa descoberta pode modificá-lo irremediavelmente, a ponto de ele se tornar essa imagem.
Acho que Sylvia, de uma forma ou de outra, sentiu isso.
Numa nota introdutória que escreveu para “Daddy”, para o programa da BBC, ela diz, a respeito da narradora do poema: “Ela tem de encenar mais uma vez a terrível pequena alegoria antes de ver-se livre dela”.
A alegoria em questão era, da forma como Sylvia a entendia, a luta travada dentro dela entre um imaginário pai nazista e uma mãe judia. Mas talvez fosse uma fantasia de carregar dentro dela o pai morto, como uma mulher possuída por um demônio (no poema, ela chega mesmo a chamá-la de vampiro). Para que ela possa ver-se livre dele, o pai tem de ser libertado como uma espécie de gênio da lâmpada. E era exatamente isso que os poemas faziam: corporificavam a morte que existia dentro dela. Mas também o faziam de forma extraordinariamente vívida e criativa. Quanto mais ela escrevia sobre a morte, mais forte e fértil seu mundo criativo se tornava. E isso lhe dava todos os motivos para querer viver.
Acho que, no fundo, o que ela queria era encerrar o tema de uma vez por todas, mas a única maneira que encontrou para fazê-lo foi “encenando mais uma vez a terrível pequena alegoria”. Ela sempre tivera um certo espírito de jogador, estava habituada a correr riscos.
A força de sua poesia devia-se em parte à maneira corajosa como teimava em seguir o fio de sua inspiração até a toca do minotauro. E essa coragem psíquica tinha seu paralelo em sua petulância física e imprudência. Riscos não a atormentavam; ao contrário, ela os achava estimulantes.
Freud escreveu: “A vida perde interesse quando a ficha mais alta no jogo da vida, a própria vida, não pode ser posta em risco”. No final Sylvia decidiu correr esse risco. Jogou pela última vez, tendo calculado que a sorte estaria a seu favor, mas talvez em sua depressão, sem importar-se muito com o fato de vir a ganhar ou perder.
Seus cálculos estavam errados, ela perdeu.
Foi um erro, portanto, e a partir dele todo um mito se criou.
Um mito que, imagino, não seria muito do agrado de Sylvia, já que é um mito do poeta como vítima sacrificial, ofertando-se em benefício de sua arte, tendo sido arrastado pelas Musas até aquele derradeiro altar, passando por todos os tipos de aflição.
De acordo com essa lógica, seu suicídio se transforma na razão de ser de toda a história, o ato que valida seus poemas e lhes confere interesse, e que atestam sua própria seriedade.
Assim as pessoas são atraídas para a sua obra num espírito muito semelhante àquele que levou a Time a fazer uma longa matéria sobre ela: não pela poesia, mas por um certo “interesse humano” extraliterário, também conhecido como bisbilhotice. No entanto não só o suicídio não acrescenta absolutamente nada à poesia em si, como o mito de Sylvia como vítima passiva é uma total distorção da mulher que ela foi. Ele deixa de fora por completo sua vivacidade, seu apetite intelectual e humor impiedoso, seus extraordinários recursos criativos, intensidades de sentimentos, seu controle.
Acima de tudo, deixa de fora a coragem com que ela conseguiu transformar desgraça em arte. O lamentável não é que exista um mito em torno de Sylvia Plath, mas, sim, que esse mito não seja simplesmente o de uma poetisa tremendamente talentosa que morreu cedo demais, por erro e imprudência.
Eu costumava considerar sua alegria uma fachada, como se ela fosse capaz, de maneira um tanto esquizóide, de virar as costas para o seu sofrimento a bem das aparências e fingia que ele não existia. Mas talvez, também, conseguisse manter sua infelicidade sob controle porque podia escrever sobre ela, porque sabia que estava salvaguardando de todos aqueles terrores algo maravilhoso.
O fim veio quando ela sentiu que não podia mais suportar o tema. Tinha esgotado o assunto, e estava pronta para algo novo.
“O jorro de sangue é poesia,
Não há como estancar.”
A única maneira que ela conseguiu para estancá-lo, estando a essa altura com a visão já toldada pela depressão e o mal estar físico, foi apostando aquela última ficha. Tendo então, como imaginava, providenciado um salvamento, deitou-se diante do forno ligado quase esperançosamente, quase com alívio, como se estivesse dizendo: “Talvez isso me liberte”.

A. ALVAREZ. “O Deus Selvagem – Um Estudo do Suicídio”, Companhia das Letras, 1999, Tradução Sonia Moreira



ESPELHO


Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro —
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.
O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor-de-rosa, malhada. Há tanto tempo olho para ele
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ele falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.

Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.
Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha
Emerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.


Sylvia Plath
Tradução: Rodrigo Garcia Lopes & Maurício A. Arruda

Um comentário:

  1. Trecho sensacional, obrigada por colocá-lo aqui.

    Como fã de Sylvia Plath e "escrevinhadora"-personagem do Teatro da Vida, isso cai para mim como uma luva que coça ao vesti-la.

    Abraço, Ney!

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