o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A BARBÁRIE VERBAL DE MAX MARTINS

Por Ney Ferraz Paiva


Quando o homem toma plena consciência dos seus poderes, do seu papel, do seu destino, é um artista e cessa de debater-se com a realidade. Torna-se um traidor à raça humana. Cria a guerra porque anda permanentemente de passo trocado com o resto da humanidade. Senta-se no limiar do ventre materno com as reminiscências da sua raça e os seus desejos incestuosos, e recusa-se a sair dali. Esgota o seu sonho de paraíso. Reduz a sua experiência real da vida a equações espirituais. Despreza o alfabeto ordinário que oferece quando muito uma gramática do pensamento e adota o símbolo, a metáfora, o ideograma. Escreve em chinês. Cria um mundo impossível a partir de uma linguagem incompreensível, uma mentira que encanta e escraviza os homens.

Henry Miller, carta a Lawrence Durrel, 1937.


Alguém que joga fora a sua própria obra. Assim o poeta Max Martins enfrenta há 50 anos a perfídia e a opressão que o nega. Seu primeiro livro O Estranho [1952] nunca chegou às livrarias. Anti-Retrato [1960] não teve destino melhor: ficou empilhado dentro da casa do poeta, até mesmo no banheiro do seu escritório. “Foi quando resolvi mandar um menino jogar fora os livros nos covões de São Braz, onde é hoje o terminal rodoviário. Anos depois, amigos me comunicavam que possuíam o Anti-Retrato. ‘Mas eu não dei o livro’, retrucava. ‘Jogaram pela minha janela’, respondiam. Pois bem, esse menino, em vez de jogar os livros nos covões, passou a distribuí-los pelas casas, jogando-os pelas janelas, como se fazia antigamente com os almanaques”. Estamos diante de uma literatura sustentada apenas pela precariedade, não pelo seu valor de mercado; errática e alheia, desloca-se do seu destino objetivo para um lugar sem referências nem memórias: um labirinto se fazendo. Da longínqua Belém dos anos 1940, desde sempre destinada a não ser porto nem metrópole, e das “anotações líricas” desse período, o poeta chega, na contramão de si mesmo, a uma escrita que convive com o fracasso de ocupar com a palavra os territórios vazios: cavar e lavrar seus sulcos. Impassível, ela [a rosa de Celan/e de ninguém] se fecha à sua volta como uma armadilha. Colmando a Lacuna [2001] comprova: mais uma vez, acossados pelas costas, a palavra, a frase, o verbo [os chamados do tigre] lhe atravessam. Max Martins escreve de dentro de uma cova, cada vez mais funda. Desce à merda da palavra, revolve a sua lama. Não se submete às superficialidades, escava contra elas, esconde-se, retira o que disse [seu indizer] nesse subscrito jogo da linguagem. Eis aqui o seu lance: não identifica a sua fala a um pensamento qualquer, a uma cultura dominante que lhe sirva de moldura e espelho. Desde O Estranho [livro dedicado à memória de seu pai e à sua mãe], Max multiplica imagens desfeitas da infância, ou melhor, desescreve-as, estranhando-se nelas, desterritorializando sua fala, para assim se livrar das nostalgias maternas e das culpas em relação ao pai – nada mais que isso e a um só tempo tudo isso. Em Anti-Retrato o poeta se espelha como uma pessoa que não se parece com os da família: um bicho, uma aberração. É sem os cosméticos da linguagem que a escrita de Max modifica seus traços, a hera misteriosa revolve tudo [o teu grotesco/na impossibilidade de me deter/já me consola]. O não-consolo do poeta se dá pelo indefinido de suas imagens adversas, sinuosas, inexatas. Só como aberração essa escrita funciona, deslocando-se no pouco do seu buraco, no tempo exíguo de um grito e, no entanto, temos sempre expresso aí um transcurso de tão longa duração: a intensidade e não o significante é o que importa para essa poesia arrastada entre paredes, com dilaceradas peles e órgãos revolvidos. De um jogar fora para um jogar dentro – eis a malograda linha divisória dessa geografia em transe, ligada subterraneamente à linguagem que não se quer poder – mas rastro, erro. Essa anti-fala mais uma vez lançada nos covões, em seu limiar de morte, e só por acaso recolhida.



SOBRE UM POEMA DE ROBERT STOCK


Algumas semanas antes de sua morte
meu pai dizia
podando os pés de pêra
– como
era saudável e doce a nossa fome
contudo
indiferentes
apenas deleitávamo-nos
dos seus suados frutos

Vivo e precioso
aquele sabor também morava
razão e fé em minha mãe
sabor na boca – beijo
do amor sofrido num e noutro
sua ternura
sua armadura, flor
(nunca mais em maio)
semente e herança:
as
pêras
– lágrimas –
frutos fartos para sempre e um dia


QUERO


Quero que ela seja rainha
A rainha. Quero
fechadas as paredes
com raízes
e rufar de tambores
Mulher na manhã
mesmo sem cinzas na clareira do bosque
dissolvida a cuspo
Mulher-amante
Musa e nuvem
tatear seu ventre
na sublime meditação
do seu olhar
sonhar
águas azuis
E que rei sou eu? Sem coroa e reinado
sem dinheiro, traído e desterrado
O Velho Rei de Rouault, católico e operário,
taoísta e zen
O Velho Rei austero com flores na mão
o ser próprio

Quero, Rainha
que o ouro do seu coração, quero
na minha boca
em febre
febre prateada

Eis que escuto a Sonata
para piano e violoncelo
que ofereço
com molto sentimento d’affetto
no seu aniversário
à Rainha!


LE SQUARE TROUSSEAU


O teu preciso envelope
finalmente chegou. Que bom saber
que estais bem! Que bom poder
te ler
depois de tanto
tempo!

Obrigada, amor, obrigada!

Tu és a boa notícia, a Boa Nova
desta temporada,
primavera em Paris
Beijos sabor chocolate


Max Martins, O Cadafalso, Organização Ney Ferraz Paiva, Belém: Cão-guia, 2001.

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