o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 28 de outubro de 2010


Um comediante midiático




As máquinas desejantes são máquinas binárias, de regra binária ou regime associativo; uma máquina está sempre ligada a outra. A síntese produtiva, a produção de produção, tem uma forma conectiva: «El», «e depois»... É que há sempre uma máquina produtora de um fluxo e uma outra que se lhe une, realizando um corte, uma extração de fluxos (o seio/a boca). (Gilles Deleuze e Félix Guattari, O anti-édipo - capitalismo e esquizofrenia)

Lendo o texto de Ladislau Dowbor, publicado na revista eletrônica “Envolverde” a 25/10/2010, fui tocada por uma irresistível vontade de me enredar nas impressões expostas no texto e por uma daquelas coincidências impagáveis, havia tecido o seguinte comentário sobre a figura que abre o texto de Ladislau: Arnaldo Jabor. Discorri em torno da aparente unanimidade que o jornalista desfruta entre os pseudo-mídiaticos informados, aqueles que utilizam da ferramenta mais democrática que temos em mão (não é do voto que estou falando, mas de uma verdadeira máquina de guerra) – para se tornarem cada vez menos informados, ou deformados.

Arnaldo Jabor sempre a serviço do capital com um discurso disfarçado de dissonante, algo que leva ao riso, à ridicularização de temas muitas vezes relevantes, bloqueando com isso o debate, a reverberação e mobilização social em torno de temas caros à democracia. Contudo, o que poderia dizer Jabor desse “seio/boca” pensado por Deleuze/Guattari? E quem melhor alimentou as máquinas desejantes produtoras de fluxos? Junto com a resposta quase automática nós podemos pensar o Brasil como um enorme seio, belo e provocador, que deverá nos alimentar (não só aos bem nascidos, as tantas elites deste país) de todas as formas: doméstica, intelectual/científica, cultural, afetiva, artística, para o jogo, o prazer o deleite, a felicidade.

Não tivemos em muitos anos de estado democrático algo nem perto do que acontece hoje, em que a “palavra liberdade foi expulsa do pântano enganoso das bocas”, para se transformar em “algo transparente e vivo como o fogo, ou um rio”. E o que nos fornece essa liberdade? E aí penso não apenas na liberdade verborrágica, mas em algo ainda mais correlato, como a garantia do direito de ir e vir, o direito de ter acesso, o direito de trabalhar e não apenas trabalhar como um escravo da vontade e do poder do outro, mas trabalhar sob um sistema que garanta direitos fundamentais, como auxílio doença, creche, transporte etc.

Querendo ou não, foi sob esse governo que tivemos a aprovação da Lei Maria da Penha, a instituição da Secretaria Nacional de Igualdade Racial, a expansão dos auxílios aos estudantes, as Conferências de meio ambiente, de cultura, de segurança pública, de saúde, de educação e até do livro e biblioteca. Nesse governo de Luis Inácio Lula da Silva nos sentimos livres, debatemos, pensamos, tivemos apoio para criar. Aconteceu de termos ministros negro, acreano e, claro, ficamos sujeitos aos cortes de fluxos, aos enganos, à corrupção – prática defendida e aceita de forma corriqueira pela justiça, já que para crimes do colarinho branco não há punição. Para a sociedade resta se virar e compreender que a síntese produtiva se faz também dos desacertos e dos atos falhos. É o que teme Jabor?

A ele o espaço midiático para singelas teorizações. Cada um faz o que pode, embora se possa reparar de soslaio quem o contrata e a quem ele defende. Agora, sem essa de tentar colocar o país no divã, arranjar a todos essa culpa: ter votado no Lula. Ser o pai desrespeitado a nos passar um carão. E nos provar, num tortuoso comentário, que Lula é apenas um caso de dissidência das políticas do PSDB, com as quais aliciou a todos tanto quanto Édipo ainda é capaz de levar no papo as virgens sonhadoras. Lula chegou a 82% de aceitação graças aos serviços de FHC – quais mesmo estes serviços e a quem ele prestou? O que se sabe, ou melhor, o que a sociedade não quer mais rever (e que talvez tenha reduzido de vez nos créditos o nome desse senhor a uma sigla, enquanto Lula acrescentou mais este a seu emblemático nome) são os velhos capítulos de um novelão político, já que os avanços sociais protagonizados pelo governo Lula não admitem levantar audiência com reprises, quando muito, resgatar incautos saudosistas ou desatentos, que podem ver em Serra, dado a um tal efeito técnico, o personagem de uma boa anedota. Essa que Jabor não cessa de contar.


Juliete Oliveira

sábado, 23 de outubro de 2010

o repúdio, ou a resignificação possível a geraldo pereira - um pouco mais contra o golpe de estado mediático 
por André Queiroz

Só tenho medo da falseta,
Mas adoro a Julieta como adoro a
Papai do Céu
Quero seu amor, minha santinha
Mas só não quero que me faça de bolinha de papel
Tiro você do emprego,
Dou-lhe amor e sossego,
Vou ao banco e tiro tudo pra você gastar
Posso, Julieta, lhe mostrar a caderneta
Se você duvidar
(“Bolinha de papel”, João Gilberto
Composição: Geraldo Pereira)



Esta é a música. Não se deixar fazer de bolinha de papel. Algo que se arremessa ao lixo - uma vez o uso, e o desuso que sobrevém a este. Descartar o que se fizer sujo. Quem sabe se o recicla? Tempos de coleta seletiva de lixo. As várias cores dos recipientes - verde, vermelho, azul, amarelo. Aprende-se isto nos colégios à infância. A coleta do reciclável começa por ali. Alguém ganhará algum dinheiro com isto. Um pouco à salva dos que não têm. O que dizer das latinhas de cerveja e derivados? E dos catadores de papel? Suas associações, por exemplo? Todavia, por vezes, está-se a dar outro sentido à hegemonia dos sentidos ao econômico. Uma bolinha de papel pode bem vir a ser muito mais do que umas gramas ao quilo que sustenta a alguns - e que são tantos estes alguns neste nosso agora agorinha. Uma bolinha de papel pode vir a ser bem mais do que a condição espúria daquele que fora abandonado por Julieta no samba do Geraldo Pereira. Deixar que alguém nos torne uma bolinha de papel? Pero, no basta! Por vezes, uma bolinha de papel é o que se tem à mão. Máximo signo do impoder a que se está colocado. Penso em Foucault a lembrar das formas de repúdio popular quando das sociedades de soberania - a massa dos destituídos, a massa zerada dos deixados à míngua e à condição inglória de expectador aos faustos do poder, sua celebração grandiloquente, e eis que a massa, por vezes, lançava à cara do soberano o que tinha às mãos - e o que será tinha às mãos a massa zerada dos que nada têm? Eles dispunham dos seus excrementos tirados ao calor da hora, aos humores vilipendiados, e ainda quente, a condição morna do que se lhes escorria, eles a lançavam às fuças da tradição que os negava, que os excluía.



De lá aqui, deu-se a condição de alfabetização de muitos - mesmo que sob a condição de sua 'inalfabetização' social. Trazer consigo uma bolinha de papel amassada é estar incluído em programas sociais d'algum modo, digamos assim. É dispor do que se lhes chega à intenção da boa educação. Ter onde escrever o que se aprendeu, e ter onde mostrar que se aprendeu o escrever. Um papel talvez sirva a isto. Digamos que sim. São horas, sabemos, a outros modos de escrita – a escrita virtual. Novas inclusões, e novas exclusões – um novo ponto de corte. Certo, certo. Talvez quando se inclua ao digital, se exclua ao uso contumaz da folha de papel. Alguns resistem, alguns. Os nostálgicos talvez. Ou os amigos das madereiras talvez. Vá se saber a quantas se fazem as possibilidades de expressão do ser!



Mas eis que se tem, por vezes, à mão uma folha de papel - e ali seria uma carta, um bilhetinho de última hora, uma conta a ser paga, ou ali seria o começo da coleta ao tanto do quilo aos catadores de papel – que todos somos em potencial. Todavia, nada que isto! Ou melhor, tudo isto, e muito mais ainda, e veja o tanto que temos à mão da imaginação – todos os possíveis que se pode depositar ao uso bom uso de uma folhinha de papel, e então, supremo desprendimento: fazer da folha um algo que se amassa, fazer do amassado o peso simbólico de uma pedra, de um tamanco, de uma catedral (lembrança de há pouco um Mássimo Tartaglia a lançar uma 'catedral' às fuças de Berluscconi), um paralelepípedo, como numa intifada. Lançar o que se tem às mãos ao rosto deslavado da canalha, o canalha ali. Lançar o que se dispõe a ver se não tarda a hora ao recolhimento da corja de há tanto! Lançar bolinhas de papel como quem promove uma intifada. Lançar bolinhas de papel como quem tem às mãos o bolo ainda quente fornalha desde os interiores, e dali o nosso produto bem acabado, revolvido o retento o retesado o ainda retido, o rebento –  trazer à mão a bolinha de papel que é desde as vísceras que ela nos chega e lançar, lançar, lançar a ver se se acerta o rosto dos que não tem a honra de dar a cara aos tapas.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

POESIA DE AMOR – AMOR PELA POESIA
sem provas de que eros nos perdoa


Os poetas brasileiros não morrem em revoluções.
Quando elas acontecem, os bardos nacionais
preferem segurar os empregos.
Na Revolução de 30 não morreu um só Dante
de Cascadura para contar como é descer ao inferno.
Fernando Monteiro


Um grande problema talvez não mais da Poesia e sim dos poetas no Brasil, dos poetas que vão aparecendo cada vez mais cedo com seus livrinhos gestados na toxidade noturna do mercado editorial – esse que a todo custo anuncia a um país que não lê, que não lê sobretudo poesia, o Grande e Desmesurado Poeta para uso compulsório e descartável, pois bem, talvez o grande problema, que também muito contribui para que essa maquinaria opere observando leis, regras e etiquetas próprias, colocando à parte a promoção, circulação e recepção da Poesia, seja o fato de que os poetas entregues a seus transes festivos amam cada vez mais não a Poesia (essa substância maior a que até mesmo o Estado parece querer banir com suas instituições desestabilizadoras da cultura artística) e sim e tão somente a “sua” diluída e hibridizada poesia, conectada a seu próprio umbigo.


Poetas amantes de si mesmos. Velhos e jovens, que bem ao contrário do vinho, quase nunca melhoram com o passar dos anos, apenas envelhecem e pioram a safra e reprisam o ciclo decadente. Atados a uma mesma teia cada vez mais estranha à Poesia e a seu desenvolvimento como organismo relevante. E do mesmo modo que falar inglês não resolve e estabelece uma comunicação global, o declínio da Poesia mesmo nos ambientes de cultura aparentemente cultos não se reverte pelo anúncio e acúmulo diários dos nomes e dos respectivos “livros à mão cheia”. O mercado, neste caso, não de amor, mas de puro negócio, não é a melhor reação. Ele não tem como fecundar, renovar e mesmo ampliar as possibilidades de acesso e circulação, de incendiar corações e mentes com a Poesia, este Amor que quando se revela é sempre uma descoberta transformadora – “crescer, criar, subir”.


Amor pela Poesia. Nele e através dele, diz Mário Faustino, não há a imprecisão do “etc”. Com o surgimento da internet e da tecnologia digital esse Amor não prosperou. Ampliaram-se às escâncaras os egos invioláveis, isto sim. Os tributos ao “eu” e ao “meu”. Território de livre circulação a toda sorte de investidas, a Poesia perdeu espaço aí. Apequenada, reduzida energia à baixa intensidade, o mercado a colocou sob sua cúpula como objeto estático, dependente e isolado. E apenas pelo efeito ilusório das vitrines a Poesia aparenta ter sido prolongada em redes como os outros segmentos. Resulta disso é que raros livros quase despercebidos como este “Vi uma foto de Anna Akhmátova”, de Fernando Monteiro, a prorrogam desde uma ida banal à padaria na esquina, ao bar ou à praia até a viagem incomensurável para o outro lado do mundo, com a qual os grandes mercados turísticos das Festas, Feiras e Bienais do livro estão de passos trocados e por isso mesmo não têm como enlaçar as mãos num momento de afeto.


Inverossímil Viagem de Amor. Isto não apenas por um deslocamento subjetivo entre Brasil, Ucrânia e Rússia que esta escrita promove, sem medir nem desmentir a distância de uma Akhmátova e uma Clarice (lado a lado a outras articulações: Hilda Hilst, Adélia Prado, Olga Savary, Marize Castro) – não mais uma viagem pelo “mesmo” como tantas histórias a contar ou a representar dos dias adversos, aqui e alhures, não mais um “poema-clichê de sofrimentos/de poetas perseguidos”. Antes, uma poesia de deslocamentos, que reflete inclusive as condições de leitura de duas grandes escritoras em vários trânsitos de importância, tentando escapar sobretudo ao intimismo a que sempre são lançadas. Fernando Monteiro não ilustra quem tenha sido Anna ou Clarice. Ele relaciona. Parte de uma imagem a outra, sobrepondo-as, sem atá-las umas às outras. De uma Anna correlata a uma Clarice. Do Recife intercambiável a Tchetchelnik a Moscou a Paris a que lugar mais seja. Na foto como no poema o que se quer abordar são terras desconhecidas. Conectar o que está por vir. Nunca a paisagem, mas a vida como uma estranha jornada. “Você pode ver numa foto o que não está nela”.


Variações e revezamentos do olhar. A nuance. O conciso. O espelho. “Se eu errei ao nascer,/ela errou ao dar a luz./Se eu estou ainda aqui,/ela não está mais”. Ver Anna Akhmátova implica ver o impreciso que se é: episódios imperfeitos, evanescentes de calmaria e indiferença. Ainda que Clarice tenha flertado como jornalista com o mundo insípido da moda, não foi nunca como a mulher de um futuro ideal, utópico, lunar (“Princesa da Lua, por que você voltou?”), de certo como a sobrevivente desfavorecida num ambiente de cultura que nem mesmo hoje pode admitir uma “Esparta moderna”. A imagem de uma se conecta a outra, duas (quantas?) replicadas mulheres desmunidas de afeto, lançadas ao jogo de se prender e se soltar antes que se esgotem os prazos. Embaralhadas e dispostas a um mesmo combate. Escapar às ratoeiras domésticas da casa (apanhar depois de cozinhar bolos etc.) ou às ratoeiras das vitrines da vida moderna.


Clarice não podia ter saudade
de dois meses de vida em Tchetchelnik
na Ucrânia de árvores nacaradas.


De que poderia ter saudade Clarice? “da casa entre movelarias e sebos/vinda da Ucrânia para o coração/deste bairro de esquecidos”, “do centro da cidade onde viveu/a descoberta do mundo no Recife”, “de imigrantes deslocados”? Clarice-criança não tinha como saber que moveria esse mundo morro acima para o lado da modernidade. Essa Clarice de quem temos que ter saudade. Da adolescente que deu a ver a linguagem daí há pouco definida mundo afora como “clariceana”, pois escapa a um modo burocrático de lidar com a escrita no espaço público (jornalismo, universidade, diplomacia) onde a mulher ocupa funções anônimas, e ela nos chega muito mais como singularidade a se prorrogar do que como originalidade pueril. Quantas Clarices aí? (“ainda que vivas outra vida, não há saída”).


A casa ficou só. Ela reformou aqueles versos:
“Esta mulher está só”
virou:
“Esta mulher está no fim”.


De que vida poderia ter saudade Akhmátova se perdeu todas de antemão? “de Lev, o filho” que vieram buscar como o pai, sem acusação formal, sem julgamento, para ser morto? Uma mulher no fim das contas encadeada a tantos outros finais, a coisas que se partem sem conserto algum. Ela não tem escolhas: terá que engendrar a si mesma como poeta e ocupar um lugar nunca reservado à mulher. Desenfreada, irreverente, desconcertante – em posições de ataque e afrontamentos, ativa, que portanto prejudicou a si própria. Nos espaços codificados da guerra o êxito da mulher se duplica em um fracasso mais profundo. (“tantos poetas mortos,/tudo fazia crer/que algo andou errado/muito errado).


A Poesia é um esgotamento que se reveza e ramifica pelo corpo até o poema. Fernando Monteiro o inventa a seu modo – o modo do grande poeta que se põe a desfalecer, ele mesmo, no que escreve. Um poema longo, como almejava Mário Faustino e que Fernando acata, realiza e sai de cena, pois agora que vai escrever sequer pode escovar os dentes. Quede o poeta? Irreconhecível no odor ácido do livro. Pouco dele resta aí como autor, no livro de uma editora não comercial, de Fundação sem fundos, mas de gente atenta e sensível. Não fica de fora nem a gravata, sequer a foto de orelha. Tudo que se vê como fulgurações é Poesia. Amor precipitado que Fernando Monteiro nutre pelo livro que resolveu fazer e por todos os grandes livros que amou, entre eles um “muito velho”, “de capas vermelhas” PÉROLAS DA POESIA RUSSA “na lombada desbotada”. E se olhássemos bem de perto dentro dos olhos do poeta logo poderíamos ver Akhmátova e Clarice qual Ulisses numa viagem sem erros.


Ney Ferraz Paiva
Salgueiro - PE
Fernando Monteiro, Vi uma foto de Anna Akhmátova, Recife, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2009.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Teatro-leitura
será que hoje o que ainda não sei que nome tem vai irromper e arrebatar, será?
João Gilbeto Noll, Harmada
Santiago do Chile, 1973 não é texto de dramaturgo, sequer de encenador ou homem de teatro – trata-se de um conto do escritor e filósofo André Queiroz, que o “Grupo de Dois” encena o labirinto inexaurível de leitura, sem que o fato de ir ao teatro corresponda a ir à biblioteca retirar um livro. Leitura como jogo interativo e explícito pra desorganizar as formas de expressão de um teatro que não leva em conta as sociedades da era digital, que mais faz palestra do que encena, mais refugia do que lança ao inferno, e depois de um mês em cartaz está fora do prazo de validade – por não ter como criar outra coisa à parte a essa máquina de encenar estática e sempre confiante nos Manuais de instrução. O texto “pra teatro” não é mais o ponto propulsor do ato cênico. Há outro ar em torno dele, nem do campo nem da cidade, que mesmo Brecht e Müller não souberam precisar, mas aí sufocaram antigos maneirismos e elementos. Santiago é o êxtase do deserto. A sufocação fica gravada em nossas feições. De um percurso árido. De vários patamares de tempo-espaço, sucessivos cortes, zonas e entradas. O ar fica especialmente abafado. O público chega, toma assento, “circula” nos domínios coletivos de uma escrita que avança par a par com a estranha órbita dos discursos de dor como resultado do mal que cada um pode fazer ao outro. Isto tanto pode estar em Rei Lear, de William Shakespeare, quanto nos textos-poemas pra vozes de João Cabral de Melo Neto (dentre eles Morte e Vida Severina, com que infelizmente seus encenadores ainda almejam alcançar uma eficácia social pra palavra encenada, sem que tal aspecto jamais tenha sido uma lei de funcionamento do texto). A questão por inteiro é que mesmo em seus poemas João Cabral encena a palavra que não pretende fingir nada – a forma pode ser atingida, se romper, mas a Palavra tem que permanecer intacta seja qual for o enredo. Santiago continua sendo um teatro da palavra que perpassa por essas linhas e se prorroga em suas nuances infinitas. Palavra dita por vezes em minucioso silêncio ou a plenos pulmões, gritos-sopros que não recorrem à metáfora pra ativar ali na sala quase escura um enredo que nos humanize ou dê consciência (sempre muito de acordo com o incentivo comercial dos patrocinadores). Seu encenador e também ator Tiago Fortes é quem nos dá essa versão alterada dos Manuais ao mudar as linhas de ataque destas “anotações” de dor. Menos até como teatro e mais, muito mais, como experimentação de estados de invenção, de sons e imagens desterritorializados – ondas de memória e lapsos que vão se alternando e variando em camadas sucessivas de vozes, como rasgos na pele em que se tenta remendar o que há anos ou há pouquinho se passou bem ali na tela onde se projetam as fadigas e os ultrajes do corpo, intensificando sempre o fato de que a protagonista não merece aquilo. Se por um lado o sofrimento dela não pode ficar encoberto, sequer os danos a sua vulnerabilidade, por outro lado, não se pode presumir daí algum reembolso, mesmo a vingança. O clímax aqui não traz a resolução do conflito. Talvez mesmo ele não exista de modo clássico e esteja presente como uma espécie de litígio pelo fato de que tudo aqui avança pra se constituir como “anotações” não só do que a protagonista sabia e vivia, mas do que todos sabem, ainda que dentro de cada um nada pareça despertar. A “leitura” de Tiago Fortes  da narrativa de André Queiroz é de que não há o Segredo. Todos sabem. Está diante dos olhos e mesmo se pode sentir na própria carne, metido aí como uma espécie de morte, extraordinariamente condensado. Seria este o elemento que faltava detectar? Ação a que se tem que recorrer pra se completar este jogo suspeito? Lembrar de lembrar o que se sabe?

ney ferraz paiva
salgueiro - pe outubro 2010 

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

CELEBRAÇÃO DAS MARÉS
Alexandre Bonafim
I
Um risco de veleiros em fuga
sempre foi o teu nome.
Arquipélagos de incandescentes pássaros
os teus olhos. Os frutos do sal,
a íris do sol na filigrana das águas,
os cardumes do outono, clamam em teus pulsos
a presença de um fogo vivo,
cicatriz de um oceano em fúria.


Sempre foi o teu nome as marés.
Em cada palavra do teu ser,
navegam barcos de pólen,
peixes de constelações ardentes.
Em cada silêncio dos teus gestos,
nasce o azul dos cavalos marinhos,
movimento dos remos singrando o mistério.


O teu nome sempre foi os promontórios,
as ilhas desvairadas pelo verão.
Sobre tua nudez repousam
a brancura das velas infladas,
a plena luminosidade do meio-dia.


Em teu destino os corais tramaram
a encantação das estrelas marinhas,
a memória dos búzios.
Essa é a convocação das marés:
fazer do teu rosto o destino das ondas,
a areia desfeita nas orlas.


No teu nome o sono das crianças
apascentou a cólera dos naufrágios.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Coisas bonitas que ela escreve

Lê, com os olhos na ponta dos dedos,
o alfabeto de estrelas que se apaga
a cada página virada.
Antônio Moura

Desenhos que não parecem desenhos – é assim que podemos olhar para “mínimo múltiplo incomum”, exposição de Keyla Sobral, em que o contexto de liberdade e autonomia do traço almeja um jogo cada vez mais amplo com a aparência, não exatamente por métodos óticos: a certa altura o “visual” refere-se mais, bem mais à escrita, pela intercalação verbal que os desenhos experimentam e incorporam a partir de certas frases fictícias postas ao rodapé: “ela disse suba”, “joguei no fogo: teus óculos, teus livros e teu impregnante perfume”, “arranjou coisa melhor para fazer”. Note-se que os termos não partem de uma negação, como no célebre “Isto não é um cachimbo”, em que a despeito de ter desenhado um cachimbo, René Magritte se apressa a pôr dúvida sobre os elementos que asseveram seu ato. Há desafios ainda não-resolvidos aí. Magritte não denotava um “erro”, muito menos uma verdade que fosse perene, última, platônica. E ao que parece, Keyla, como ele, não quer reduzir-se a um comentário único do mundo. Abre o desenho a uma estranha órbita de deslocamentos e reviravoltas. Narra o que está entre uma coisa e outra – em linhas desenhadas à tinta, lápis, carvão, a cena não resulta em cenário, senão em breve colapso entre a aparência e o íntimo das coisas. Magritte de alguma forma sabotou o desenho de seu curso de aparências. Lançado dentro de uma complexidade de tantos lados, o desenho se pôs a explorar uma perspectiva de humor desconcertante ainda hoje. Desde então o desenho nos fala. Mobiliza-nos como a escrita. É escrita. Keyla, por isso mesmo, meio que pode fazer um desenho aforismático. Ela vislumbra uma conjunção insólita com a palavra. Age de maneira extremamente pessoal, progressivamente, para se isentar de qualquer excesso de identidade e natureza. O que serve para dizer que não se trata de momentos de elevada calma. Keyla quer a ironia. Mas sem obsessões e talvez pressa. Uma vez que isto para ela é mais que uma questão de desenvolvimento artístico. É pulsação. Guarda uma estranha proximidade cotidiana com assuntos comuns da vida e a um só tempo pode se locomover livremente entre uma zona fictícia e outra. Trânsito de experimentações e instabilidades da arte como mapa da escrita, que por outros tantos modos e adjacências pode nos reconduzir a um Hélio Oiticica que resenhava com slogans e legendas capas, bandeiras, estandartes (os parangolés) e estabelecia uma relação-limite das formas visuais com a dança, música, teatro, tudo a partir dos relatos críticos e das figurações verbais: “seja marginal, seja herói”, “estou possuído”, “incorporo a revolta”. O que se pode vislumbrar aqui é um turbilhão de correlações infinitamente ativas. Paralelos. Tensões. Atritos. Outras linguagens querendo vir, se desprender, se mostrar. Keyla desenha motivada por conceitos e reage à significação – sente outras coisas subirem pelo papel. Ela pode inquietar um fundo de corredor de galeria, como Oiticica o museu invadido por passistas da Mangueira. E também dilatar/desfigurar fatos, memórias e mundos particulares embaralhando suas legendas com as dos parangolés e outras tantas. Linhas escritas e linhas desenhadas. 
Aí se pode engendrar toda irrealidade.
















Ney Ferraz Paiva
Salgueiro 28.09.2010

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Para que serve um prêmio literário?
  Para o Ney Ferraz Paiva

1
Desperto com a notícia desde os jornais. Era a divulgação dos resultados de dois prêmios literários: portugal telecom e jabuti – versão 2010. Os finalistas - o que se esteve a divulgar. Dentro de dois meses, os vencedores. Mas de algum modo, são eles os vencedores, os finalistas. Estão lá e estar lá é estar à Casa Grande, à confraria dos eleitos. Até aí tudo bem. Até aí tudo bem. Mas será? Por que será inquietam-me algumas coisas, algumas questões? Estou a ver. E desde a inquietude na que se me vêm estas palavras incertas, busco um modo a ela – à inquietude, busco um arranjo às palavras. Tentarei um rumo. Parece que não devem ficar retidas ao canto da boca as palavras – na certa que pululam desde ali, na certa que provocam gases em tão logo o tempo, for o caso o contê-las. Qual então o caminho/ o percurso? Parece-me que devem ser lançadas ao espaço público as palavras – lugar onde, outrora, seria a grande política o que lá se ensejava. Outrora. Por ora – vá se saber o tempo em que esta hora parece vingar?! – ali é o desmonte. E sequer que há o ‘ali’. E sequer que haja o espectro de ter havido o outrora. Restringiram-se os seus modos. Constrangeu-se aos seus convivas. Convidou-se a que se retirassem até o lar/até a casa/até o privado/até os limites de suas especialidades (os seus mundinhos mínimos inofensivos)/até o corpo somático/até a gula voraz na que habita a palavra à boca/até o chiste sob a tutela do ‘psicológico’ e neste, e uma vez este o que se fez foi convidar (convocar) a que se permaneça ‘lá onde’ a fala é sempre ela o regurgito da pessoa (ou os seus derivados) – e tão somente isto, a ‘pessoinha/peçonha’ na que parece é sempre que se está sob as alíneas do sintoma, sempre que se está (que se estaria) sob os rumores do fantasma redivivo a voltear, a voltear, a retornar a retornar o recalque (laço e elo, lanço e jugo), a estabelecer com ele elos frondosos, vãos insuspeitos, campinas desérticas, e um mar de negócios. Na contrafeita disto, faça-se então o trato – façamo-lo: ‘Apaguemos a pessoa por detrás da palavra – for o caso o literário’. Situa-se tudo e tudo ao tanto do que é dito, e aos modos mesmos do que se diz. Sempre o impessoal ali. ‘Sempre’ porque ‘o sempre’ seria o tempo de um seu apagamento – direito à morte do escritor. Estamos a pensar no que Blanchot buscou indicar – a força do literário ali, o seu espaço ali. Estamos a pensar desde a forma traçada em grita, em acusação contínua por um Foucault nos seus diagnósticos. Estivera ele a pensar no que seria ‘um autor’ – ali uma função, ali a indicação de que o que se fazia era o escrutínio – o revirar de arquivos, a notação contumaz do que lhes fosse suspeito. Um indicador uma pista um registro a arrefecer a potência do discurso, e sua condição anônima. Uma sinalização um farol aos escribas a que eles tecessem a sua rede, a sua malha copiosa, a sua folha corrida em acusação e então ali um autor, ali o autor. Foucault a denunciar isto. O autor como uma forma retesada na que se está em definitivo firmado sob o esteio deflagrado da assinatura. O autor como forma, função de um seu registro contínuo. Estamos a pensar em Beckett a indicar que pouco é que importava ‘o quem’ fala, ‘o quem’ da fala – Beckett a descosturar esta teia, a traçar suas linhas desde o sulco, a ruga, a fenda, o interstício, e esteve Beckett a fazer de forma contínua este apagamento. Pensamos em sua trilogia. Pensamos em um seu Companhia, pensamos em um de seus últimos escritos, Pioravante marche. Escritura do que não se nomeia. Escritura que parece sugerir que se há o movimento é para longe/ sempre para longe, e que se há o movimento é desde os longes onde lobos são todos aqueles que não deixam marcas por onde passam. Houvesse ali uma letra e talvez que fosse um Kafka quem lá a teria depositado – a letra em lugar do nome próprio. Os jeitos, os modos, a pessoalidade sob a contenção de uma letra. Outra vez aqui o desmonte do registro no que funda e se promove a oficialidade dos jogos desde o Estado (Estado que é forma e investidura - ecos desde o poder). Evitar (evitou-se) falar desde um aquele. Kafka esteve a evitar a impostura do ‘aquele’. Evitar evitou-se isto. Evitar que se registre o ‘aquele’ da fala, evitar que a fala se registre e se faça resignada a um ‘aquele’ que fala, e que se vá até este ‘aquele’ quem sabe se numa conspiração a ver se se faz sitiado ali nele todo o possível que o desmantela. E desde sempre isto – o desmantelar, o desmantelado.  Esta a virulência da contrafação de um Kafka, um Beckett – inserir ‘o falso’ quando for o caso/sempre que for o caso a tirania do ‘verdadeiro’. O ‘verdadeiro’, os ‘efeitos de verdade’, o seu ‘campo’, os seus ‘signos sinais’ o que são senão os poderes do Estado (um Estado, sempre um Estado) - e dizer o Estado é já dizer dos poderes, e dizer um Estado é já dizer da violência e de seu monopólio, e dizer deste modo/esta fórmula ‘os poderes do Estado’ é dizer um pleonasmo o que buscamos apontar, e são os poderes e o Estado o que esteve ali a tecer os remendos ao desmantelado, o impor-lhe um dique, uma represa. Como se o estivesse a recolocar tudo num ‘seu lugar’. Recolocar. Reposicionar. Remendar o inominável sob os modos e a afetação de um nome, uma insígnia. Nele situar a legião que seria desde sempre o seu apagamento. Nele situar a legião. Convocar a todos ‘os aqueles’, os decaídos, a que se ajeitem ao tanto da Luz – ‘luz’ que é princípio de todo saber, ‘luz’ que é condição a que se saiba, ‘luz’ que é ela mesma o saber todo saber, instância de corte, instância de registro, regime de funcionamento, sistema de contenção. Não seria isto o que um Foucault sugere ao dizer que todo saber se presta ao corte?! Não seria isto o que um Foucault estaria a sugerir – que o saber se serve a algo este algo seria o corte?! Saber, cortar. Cortar desde o inominado um nome que se lhe acerque – uma área em demarcação uma cerca ali (e já e já todo o sistema de vigilância, o arame com farpas, os grileiros a fazer valer que não se o atravesse), um princípio de legibilidade, a propriedade privada uma vez que tão logo será a patente o que se lhe afixa. Faz-se a cerca – dá-se nome aos bois, impõem-se lhes as iniciais – que é já ‘onde’ começa um seu abate. Deposita-se aos seus interiores o que era vário e indistinto. Ofertam-se lhes a boa nova da significação. Como se o que se estivesse a conceder fosse uma terra, um lugar, a ‘casa própria’ desde a qual, para a qual, em nome da qual tudo será o que se fará. E então, o júbilo uma vez a conquista. Conquista-se o nome. Enquista-se uma vez o nome – ali a circunscrição, ali o raio de ação no que perpassa a varredura dos que perscrutam - vigiar, dispor. Faz-se acenar com a posteridade toda esta agarrada/amparada aos limites do nome (forma curiosa a de fazer não ver a finitude, a condição trágica da vida - a de apagá-la, a de fazer que se a apaga, forma curiosa a dizer que continua o que não continua). É-se já o autor. Está-se ali um autor. Assina-se a obra, nela se estará encerrado, e será a pompa, os louros, as batatas, a glória, a baía, um homem ali (um homem feliz, um bobo a quem se oferece um bolo de noiva, e coisas do gênero, um prêmio literário, um saldo na bolsa de investimentos) – mas que dizer de tudo? - já o disse um Bandeira da baía, da glória o tão pouco que isto importa - se o que se vê, se o que se enxerga, se o que se experimenta ‘no ali’ é o beco, um beco! E todo beco sempre (ele) se presta a ser o das lamentações. E dizer ‘beco’ será dizer o muro. Será se o atravessa? Será se o lança abaixo?
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Como será se apaga um nome? Como será se o subverte? Como será se o esquece? Como será se faz valer o esquecimento desde aí – voltar até onde nada é o que se (nos) retorna, voltar até que a desprega (nos) seja toda hora, todo tempo. Voltar até que o anonimato se (nos) faça a casa dos que não têm. E nada que aí se estivesse a experimentar uma perda, o infortúnio. Nada que se estivesse a perder. E nada que se estivesse a lamentar a ‘menos-valia’ que já seria o desmonte do que se acumulara. Nada que fosse desde aí o náufrago/o revolto a buscar (agônico) o tocar dos cabelos do mar à caça de uma salvaguarda a si. Nada que isto. Agora aqui não mais isto, esta lamúria, esta ladainha. Está-se a pensar que a condição de náufrago é a condição primeira, ela mesma a assunção (a afirmação) do trágico a existência ali, e dizer o porto seria dizer a negação de tudo, e dizer ‘o bote-salva-vidas’ seria dizer da miração como o de que se padece, e dizer ‘da agonia o sufoco o grito por socorro’ seria dizer que tão logo é que se estaria a inventar um deus aos fracos, um deus-ficção-aprumada-uma-casa-a-farmacopéia-aos-obstruídos quando à tentação, um remédio-uma-óstia-uma-prescrição ao ‘quê fazer’, e ao ‘como do fazer’ - porém o que se nos vêm é a voz de outro o poeta a dizer que a óstia toda óstia é apenas (e sobretudo) o que atua ‘quando o desejo morre de preguiça’. Está-se a ver que o desejo prescindiria da pessoa-que-deseja, não se está? Está-se a ver que os modos à pessoa bem pode ser o que acabe por represar a este desejo que é torrencial, desejo que seria o próprio mover da vida, e a inscrição de um seu passamento. Está-se a ver que o desejo seria a condição uma condição à imanência (desejo-mundo-fluxo-germinal), e que nela, desde ela nada é que se dá a ver sob a tutela de um nome, todo nome, ali uma igreja, ali o Estado - sempre ele a operar os seus milagres aos lázaros rotos – asseá-los, conjurá-los, interná-los, ou num termo apenas, um eufemismo: otratá-los’. Está-se a ver que a resistência é à imanência – porque o que se ‘desopera’ sempre e sempre não seria já a ficção de que (nos) haja um ‘para acima’, ‘um para além’ (um transcendente) que não aquele ‘lá’, que não aquele ‘estar todo lá’ – e o ‘lá’ em sendo uma região inóspita, toda a região este ‘lá’, região na que a condição fluidífica é(-nos) também a condição afirmada de que nos seja o que for, de que nos seja o que já (nos) é. Lembrança de um lance de dados. Lembrança de um Nietzsche a afirmar que o lance é um apenas. E que não se trata de depositar a ênfase no ‘aquele’ que estaria a lançar os dados – como se fora uma ‘pessoa’ ali a escolher. Lembrança de um Nietzsche que ao dizer que a ênfase em definitivo em não estando ali – nesta ‘envergadura intencionada, a pessoa’, ele mesmo, este Nietzsche, ele não estaria a dizer que seria de se tecer louros às mãos invisíveis de um mercado (de trocas, de tomas-lá-e-dás-aqui), não seria de se lhe render graças – nunca que isto! - Nietzsche estaria a dizer do trágico a condição na que o dado está já a ser lançado, e que se for de ser esta a combinação não será de outro modo (ainda) um tempo outro na que quem sabe se lance outro dado (e outro e outro), na que quem sabe se lance uma outra vez (e outra e outra a vez) o mesmo dado até que então quem sabe se acerte a uma combinação, até que então quem sabe se esteja a acertar senhas que escancarem portas. Não há o que acertar. Não há o estar ao certo. Não há este lugar para onde se vai em conformidade ao que se queria. Quem seria ‘este que quer’? Apenas que isto - o dado, o lanço. Aí é que se está. Não há saída. E o ‘não haver saídas’ é já a condição do liberto. Liberto da ficção, liberto das falsas promessas de que um dia o dia nos será de um azul metafísico, liberto das falsas certezas de quando um sermão desde a montanha (a ênfase numa posse/escritura do que nos seria desde sempre – uma vez que se estando inscrito à filiação – deus deus - tudo já nos seria nosso – esquema de herança do privado uma transferência de recursos e propriedades, um cristo que é filho de ninguém menos do que ‘o dono do mundo’, ele a dizer: ‘como podes me dar o que já é meu?!”), liberto dos modos diversos no que (nos) se inscreve a culpa uma vez um fracasso a se nos pregar até a comoção, ela a culpa a irresgatável, ela a que faz vergar – os joelhos ao chão, ela a culpa (e seu maquinário) a nos sugerir uma (nossa) superação, tão logo, prostrados à adoração, à adulação de tão brancos os senhores. Lembrança de um Carlos Henrique Escobar a dizer que sempre se está sob o acaso pesado de uma inscrição singular - a cena suja na que se é toda hora todo sempre e isto de uma só vez. Nada que se erra, nada que se acerte. Apenas que está-se ali. Então, trata-se disto. E então, trata disto. Em tempo: não se deve ler ‘tratar’ como se  se estivesse a dizer ‘curar’ – ao menos aqui e agora. A não ser que o médico aqui seja aquele que tome a si a civilização. Sobrelevá-la? – qual nada isto! Buscar uma planura, um lugarzinho ao sol for o caso os pulmões resfriados? Nada que isto. O médico aqui traz consigo a sabedoria de Sileno. Outro modo o dizer disto – ‘Vais ter com homens? Levar consigo os chicotes”.
3
Um prêmio literário. Sobre o que será versa um prêmio literário? Está-se aqui a perguntar quase afônico. Parece que o caminho a que se dá aquele percurso às palavras que desde a boca se lançam ao mundo é percurso estranho, espinhoso, pedregoso, formado por rochas de há muito sedimentadas. Há que se usar de britas. Há de se fazer das palavras substância corrosiva que quem sabe elas penetrem o muro das significações dominantes. Que quem sabe elas as palavras se façam explosivas e seja de um desmonte o operar delas até que os homens – está-se com as palavras, mas palavras aqui são esporas. Um prêmio literário o que seria? Resposta rápida rapidinha que se (nos) chega é resposta rasa, situada (sitiada, sitiante) ao tanto do comum que se firma (tão logo) desde o que parece brilhar (aceso) a campainha de todas as respostas, uma eureka! Fiat lux! E no calor da resposta de pronto a resposta pronta a que se faz valer é aquela que diz que o que ali se faz (quando de um prêmio literário) é premiar o que seria o melhor dentre os textos, o melhor dentre os melhores, ou os melhores dentre os outros que não. E então, e então, e então. As palavras fáceis elas descem por corredeiras. São palavras tagarelas elas mesmas. São palavras em equilíbrio aos lugares. São palavras-clichês. São palavras que nunca é que solapam. São palavras que dão o sítio. São palavras que esclarecem.  São palavras que como pregos, estacas, arames promovem uma cerca. Palavras do saber, desde o saber, para o saber – palavras sábias. Palavras que amealham a si alguma prata. Palavras que se lançam à direção dos editais e os seus formulários. São palavras que preenchem cada item. Palavras que a tudo respondem. São palavras-respostas. Palavras de plantão.  Palavras de orelhas em pé. E como que numa giratória contínua as orelhas das palavras. Palavras radares. Palavras como sirenas. Palavras de emergência, dos que emergem, dos emergentes. Palavras de novos ricos. Palavras que fazem caber em si tudo como se elas lhes servissem de luva. Estamos à contramão disto. Necessário diminuir o tempo. Necessário desacelerar os motores. Está-se em terreno sólido, pedregoso. Está-se dentro dos saberes que já e há tanto andaram a operar os seus cortes, as suas incisões à carne do mundo. O que será se deixou de fora uma vez o corte? Não será a noite dos incontinentes, e nela estes, os tais incontinentes? Não seria aquilo mesmo que se lhe escapuliu uma vez a precisão da lâmina, uma vez a pontualidade das arestas de então, uma vez as alíneas do contrato que passou a registrar o legítimo? Está-se a sugerir o passo lento, o cágado em lugar ao lépido, o devagar uma vez os instantâneos. Está-se a sugerir que desmontemos a casa, e que desmontando a casa se comece por desmontar o quarto dos horrores no que uma casa (por vezes, tantas às vezes) ali se funda. Está-se a sugerir que retomemos ao inóspito de antes – aquela região curiosa na que as coisas não pareciam tender a um centro. Espécie de insaber que é antes o tom da contenda do que o do contrato. Claro está que a contenda aqui não é a guerra que desde o Estado se opera na direção de seu palácio – contenção das bordas, contenção da periferia, contenção dos perigosos, contenção dos inumanos, os monstros, contenção das bacantes desde o exército a cavalaria de que nos conta um Eurípedes. A contenda da que falamos é já a maquinaria de guerra de que sugere um Deleuze – Aquiles contra Heitor, e Aquiles luta porque a luta é de sua natureza barbárica. Não quer ele o regozijo do Estado (que é coextensivo à manutenção das classes, e de seu regime de favorecimento às elites que lhe operam).  Não quer Aquiles as plumas e paetês um seu afago – a remissão contínua a um sistema de premiação, não quer ele o acordo ao oficialato – sua ira de ferro, seu humor de úlcera, sua hierarquia assinalada nos distintivos o galardão as estrelas ao ombro. Não quer ele os jogos desde o qual o poder se faz inscrito - um saber ali, cortar e cortar. Aquiles está para lá do corte – ele mesmo o insurrecto, o incontinente. Mas voltemos. Recuemos até o prêmio. O que será se premia? Por que será se premia? Será há a possibilidade de um prêmio se não houver o primado do saber, o do cortado, o das instâncias do demarcado? Será há a possibilidade de um prêmio uma vez que não se saiba o primado da regra, e esta como que a situar o texto desde a regra mesma, o seu fabulário, um seu regulamento? O que será se premia? Não será o que desde a regra, na direção da regra se sitia, se faz sitiado um texto, todo texto ali? Não será que em se sabendo as regras se se faça um tanto mais razoável a premiação? Não será um prêmio a extensão dos domínios de posse dos seus juízes e jurados? Não será está neles representado a ‘razão’ e as ‘razões’ de um prêmio? Como se ao se premiar a um algo o algo primeiro que se está premiando fosse ‘os aqueles’ que bem julgaram – a sua certeza a sua descoberta, o seu ver ao certo, o seu enxergar perfeito, a sua detecção do que’ jamais seria’ não fossem eles os desbravadores, do que ‘jamais que viria à Luz’ não fossem aqueles olhos os de um bandeirante, aquela lupa, aquela benfeitoria o que ilumina e o que dispõe - e tudo isto desde os juízes e os jurados eles mesmos o que se fazem ver no que vêem, eles mesmos os que se distinguem no tanto que distinguem a outros, e tudo somado, noves fora zero, a imagem e semelhança o que estaria a primar?! Está-se então de todo ao saber. Saber, cortar. Mas quem é este que sabe? Qual será o estatuto do ‘quem’? Estamos ao tanto do literário, estamos a nos perguntar pelo seu espaço, e os seus modos ao texto – saber, cortar. Estamos nesta embocadura – espécie de encruzilhada dos caminhos que desde a Roma é para lá que convergem (espécie ‘impercebida’ de hegemonia do sistema viário – tudo em sendo o que acabasse por voltar ao mesmo ponto, e desde o mesmo ponto operar a sua engenharia de tráfego...), e eis que retorna a pergunta, uma vez o universo de um prêmio, e os seus subtextos, e os seus pressupostos, e eis que retorna a pergunta: o que será se premia? O que será um prêmio literário? Parece que há um texto ao prêmio. Parece que dizer ‘o texto’ é evocar também, e sobretudo, o texto que há na fala silenciosa de quem está a julgar, e no seu ato mesmo do conceder um prêmio a um texto que esteve lá de sob os seus olhos de formulação, a tábua dos indícios, uns tais mandamentos. Talvez que haja os indícios, e que os indícios sejam o que se vai passando de mão à mão: da mão de um que escreve, à mão de um texto escrito, e à mão dos que indicarão aos vencedores as batatas. Toda uma rede insidiosa de comunicação. E toda uma rede silenciosa de contenção. E todo o silêncio em rede do que se há de conjurar. Todo modo, será isto: uma sineta na calada da noite dos acordos já dispostos! Alguém ganha um prêmio. Mas quem será o ganha? E o que será ele ganha uma vez que ganha um prêmio? E retorna outra pergunta a esta embocadura da que não saímos: Qual o estatuto do ‘quem’, do ‘alguém’ – este ‘aquele’, ‘os que ganham’? Será este ‘alguém’ um alguém que ao estar fora do texto dispõe do texto como quem dispõe de um roteiro do ‘como fazer’ e do ‘quanto fazer’ e ‘do que não se deve ao fazer’ e ‘do que não se inscreve uma vez o fazer que se faz’? Tanto o saber, tanto saber – parece que sempre é que se está dentro dele, nele, a partir dele, em meio a ele, sob ele. Será não se sufoca aí? Será o caso acessar os brônquios – aparelhá-los ao conforme? Será possível o esquecimento das regras e então como que num acaso, o prêmio? Mas não será este ‘o aquele que esquece as regras’ um desregrado? E será que a um desregrado há de haver um prêmio? E será que uma vez havendo um prêmio ao desregrado este prêmio não lhe funcione como um regulamento a posteriori – uma inscrição outra vez ali ele a ser colocado para dentro, e então é que se estaria a ver se se o conserta, a ver se se o coopta! Um prêmio a este não lhe seria já um infortúnio, uma voz de prisão – um prêmio não lhe seria um forcado, um ‘a fórceps’ a enregelá-lo lá onde nele o que há é a ausência de toda luz que iluminasse – luz que espreitasse, que ‘refundasse’ o junto desde o cindido, luz que vasculhasse, que aprisionasse, e que inaugurasse deste modo o sistema mesmo de todo corte que é o saber? Mas será haverá este conluio entre o desregrado e as regras de seu corte, ou noutros termos, um prêmio e um júbilo como numa dança de roda, ou num pas de deux? Ou será que um prêmio é o que se destina aos eleitos que bem entenderam, e bem decoraram, e bem repetiram, e bem se sitiaram, e bem e bem e bem. Um prêmio não será uma artimanha ao bem – desde o bem a artimanha o artefato o regimento a tropa de elite, e tudo em sendo este caminho, este percurso, esta ‘rituália’ até que o bem, em direção a este? Um prêmio será um bem - uma propriedade, um ativo fortíssimo e operante no sistema de trocas? Um prêmio não será uma heráldica, um brasão, um distintivo – um sistema que se inaugura à filiação, uma casa grande na operação de seus milagres de inclusão social? Um prêmio não será uma distribuição de recursos aos que já os têm – uma vez que não se estaria lá sem ter os recursos que desde os bens ali eles tilintassem na direção disto que é já o que o distingue àquele que o aquinhoa? Um prêmio não seria uma tautologia – a repetição contínua da fórmula que desde a fórmula se fizesse reafirmada, e repete-se e repete-se o repetir de sempre?! Forma de levar ao longe e de modo constante uma regra, e seus operadores. Um prêmio não seria então uma ocupação de espaço? Um prêmio não seria uma empreitada – contrata-se gente na direção e na intenção de que se ‘acerquem’ (pôr uma cerca) os terrenos, e começa-se (começaria-se) pelos arames enfarpados (outra vez aqui esta imagem), e pelos sistemas de vigilância a ver se não entram por ali os detratores com pedras aos bolsos numa intifada, a ver se se restringe ao máximo os ‘aqueles’ que possam sacudir a muralha, os ‘aqueles’ que possam vir a exigir a desfeita/a desforra/o escárnio público a tudo o que for este conluio e então o muro a muralha a fortaleza o forte apache na contenção dos que estão a ver se se desfaz o feito que é desde o feitor o que se promove, a ver que se ‘desopere’ o que obnubila, a ver que se destrave a trava que se pôs em meio aos olhos a viciar a visão com os mesmos fantasmas, as mesmas regras, os mesmos acordos de gabinete - o recalque ali, uma interpretação ali, a significação dominante ali, o saber ali, o Estado sempre o Estado e ali nele os seus soberanos, a sua comitiva, a sua junta, a comissão científica. Um prêmio não seria o que se oferta sempre que o que se esteja a fazer seja a promoção de uma impostura, e também ela mesma a promoção esta impostura?
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Aqui e agora são palavras de um Sartre. E lembremos um algo: Sartre que recusara um prêmio. O Nobel de literatura. Imensa, longuíssima a conversa entre ele e sua Simone. Está-se entre os anexos de A Cerimônia do adeus. São palavras de um Sartre, ouçamo-lo: ‘O Prêmio Nobel consiste em conferir um prêmio a cada ano. A que corresponde este prêmio? Que significa que um escritor que recebeu o prêmio em 1974 - o que quer dizer isso em relação aos homens que o receberam antes ou em relação àqueles que não o receberam - mas que escrevem como ele, e que talvez sejam melhores? Que significa este prêmio? Pode-se dizer, realmente, que no ano em que mo concederam eu era superior aos meus colegas, os outros escritores, e que no ano seguinte um outro o era? É assim que se deve considerar verdadeiramente a literatura? Como pessoas que são superiores um ano, ou então que o são de há muito tempo, mas que serão reconhecidos nesse determinado ano como superiores? É absurdo. É evidente que um escritor não é alguém que num momento dado é superior aos outros. No mínimo, é igual aos melhores. Os ‘melhores’: isso ainda é uma fórmula. Ele é igual àqueles que fizeram livros realmente bons, e, além disso, é assim para sempre. Ele fez esta obra, talvez cinco anos antes, talvez dez anos antes. É preciso que haja uma certa renovação para que nos concedam o Prêmio Nobel. Eu tinha publicado ‘Les mots’; consideraram-no válido e me concederam o prêmio um ano depois. Para eles, isso acrescentava um valor a minha obra. Mas deve-se concluir que, no ano anterior, quando não tinha publicado essa obra, eu valia muito menos? É uma noção absurda; essa ideia de colocar a literatura em hierarquia é uma ideia completamente contrária à ideia literária, e, ao contrário, perfeitamente conveniente para uma sociedade burguesa que deseja integrar tudo. Se os escritores são integrados por uma sociedade burguesa, sê-lo-ão por uma hierarquia, porque é efetivamente assim que se apresentam todas as formas sociais. (...) Estou em total contradição com o Prêmio Nobel porque ele consiste em classificar os escritores. Se tivesse existido no século XVI, no século XV, saberíamos que Clément Marot recebeu o Prêmio Nobel, que Kant não o conseguiu - que deveria tê-lo recebido, mas que não lhe concederam porque houve uma confusão, ou uma atuação de determinados membros do júri; que Victor Hugo evidentemente o recebeu, etc. Assim, a literatura seria, então, completamente hierarquizada; haveria  os membros do Collège de France, e outros que teriam o Prêmio Goncourt, e depois outros que teriam recebido outras honrarias” (p.336-337).
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Na contramão disto, a contrapelo, dispara a voz da canalha (espécie de gralha loquaz)  na sua acusação contínua, habitual. São vozes rápidas no uso e abuso das palavras-fáceis a que mencionamos há pouco. Partem sempre e sempre da certeza irremovível de que o seu mundinho é a totalidade do mundo, e de que todos os que lhe acusam o fazer de seus joguetes ao feudo em proteção é por querer ocupar aquele seu casulo desde o qual lançam a toda hélade as suas verdades, e os seus formulários de conduta – romanos a tomar de assalto o que for o múltiplo – toda e qualquer voz em dissonância, e a inserir o que lhes for diverso na quadratura única de leitura de que parecem querer, poder. Juízes sempre jurados o grande julgador. Estão à condenação, à perscruta de novos réus, ou àquela premiação aos eleitos – duas facetas na retroalimentação da imensa vontade do ‘mesmo’: fazer que se continue tal como se está, fazer com que se continue a operação das benesses e de seu sistema de crença/de troca. Claro está há o cinismo e os cínicos. Mas façamos que não lhes emprestamos os ouvidos. Cínicos reiteram a peleja. Cínicos corroboram com o teatro de marionetes. Todo modo, aqui, as palavras clichês se farão presente – são os juízes que é em boa parte toda a gente um senso ao comum.  Ouçamos as suas palavras, nada doces, voltadas em composição uníssona ao que desde aqui ensejamos: - “Por que será lá vens tu a acusar tudo? Será tu pensas que alguém aqui é tolo? Será tu pensas que enganas a alguém. Estás a bradar com raivas, e cheio de ressentimento. Na certa que nunca é que conseguiste um prêmio. Na certa é que o que bem gostarias é de estar desfrutando das benesses que vêm desde os prêmios, e uma vez os prêmios. Apenas existem dois lugares: os que estão dentro da porta, e os que estão do lado de fora da mesma a querer um seu ingresso. Na certa que estás do lado de fora, e não consegues os méritos ao dentro. E mais a mais, outra vez é que retornas com este corpo de indicações em letra morta. Um Sartre ainda um Sartre? Não vês que isto há muito que foi superado. Não vês que os livros dele já não vendem? Que sequer que há fôlego a uma tese de investigação do seria um Sartre. Ele o ultrapassado. Não percebes os termos que ele usa – ainda ele a reclamar desde os chavões da velha esquerda, ele a dizer ‘sociedade burguesa’, ‘hierarquias’, ‘cooptação’, ele a supor desde si a si que seria ele mesmo o padrão de valores a ser seguido, que seria ele o íntegro e não todos que não ele, e também lá vem outra vez esta tua mania de indicar uns outros nomes de pouca monta, um Blanchot, um Foucault, um Deleuze, um Nietzsche, um Beckett, esta mania de alta literatura, esta fórmula eurocêntrica, este espelho de vaidades na que tu és ‘o aquele’ que brilha, esta erudição desde os cadernos, este tempo das letras mortas que não mais, como se fora tudo isto espécie de latim que já é ninguém quem o domina. Por que será não te renovas? Por que será não te dás a literatura dos folhetins? Aos novos de agora agorinha mesmo os bloggeiros – por que não a eles o teu credo? Por que será tu não freqüentas as festas? Por que não vais lá a aprender o se portar, e de forma desarmada esta aprendizagem?! Por que será não contratas um agente literário? Por que será não te fazes mais tranqüilo, mais cordato, por que será não aceitas as regras do jogo, por que será não entendes os refluxos de uma esquerda, por que será não compreendes que a história é morta, e que já não é o tempo das posições firmes, e dos radicalismos fadados ao fracasso? Por que será não tentas uma bolsa – tu não percebes que se está a promover a literatura uma vez as bolsas de fomento? E blá blá blá blá blá blá. Façamos minuto de silêncio ao morto – estivemos a gorar com isto. Porém desde as cinzas o renovado - aí estamos. Retomemos o fôlego desde a faca.
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Tanta a acusação – e o quanto será que vingam estes argumentos? Há aí algum argumento? Houvesse argumento - o que será o vingar dos mesmos? Será o grau de um seu convencimento e isto expresso no tanto de seu raio de ação, no seu número de adeptos? Talvez que seja isto. Ainda assim, há que se desconfiar destes critérios. Está-se sob a máquina de fabulação da imprensa de massa, está-se sob reincidente golpe de estado mediático. É já uma observação face às maiorias silenciosas. Não será que o que se busca é justo uma sua aderência não-crítica ao que se lha deposita? Como se se estivesse a exigir o silêncio, a suspensão de toda forma à crítica. Partimos desta posição. Mas pensemos o que advém desde àquela saraivada de acusações. Talvez que já se arme o cadafalso que é a casa aos proscritos. Está-se à praça pública na que vingam os jogos de execução. Não mais isto. Aqui e agora, o lugar às coisas é sempre mais ao fundo – arrancado dali, seqüestrado o ‘ali’ ao público, resgatado até à zona cinza e mórbida dos interiores - o privado, o privativo, o pessoal. Daí que a acusação toda ela se volta à suposta pessoa que está a criticar o estado de coisas. Nunca que à crítica mesma (a que se teceu) é que se voltariam estes argumentos em defesa deste mesmo estado de coisas. Não há a discórdia, não pode haver a discórdia. Também isto a fazer parte do cenário típico a este estado de coisas. Não há a guerra entre as partes contenciosas, não pode haver o guerrear. Apenas o que há é a arenga, e uma arenga é sempre o fastio. Faz demorar o que deve ser rápido rapidinho – os jogos, os acertos, as diretivas, os regulamentos, os formulários a que se preencham nele as adesões. For o caso opera-se a estas por meio de telemarketing. Está-se sob o princípio de que se está a crescer, e o mito ao crescimento um seu conclamo é sempre o que torna produtiva a safra, e então é dos estoques o de que se trata, um seu acúmulo (nunca a sua queima – como numa queima de excessos). Apenas isto o de que se trata. Estoque, escroques. O mercado é o horizonte todo horizonte possível, e necessário é o saber se portar quando ao mercado. Nada de teorias gastas. A prática é sempre outra, e os sábios devem ser práticos, e objetivos. Afinal está-se a operar ‘o milagre da inclusão’ – e se for o caso o te inquietares, vê se percebes que é em ti, e desde ti que a inquietação se faz, um teu sintoma aí – outro modo de dizer que se há um problema ele é todo teu. E será, vez mais, a suspensão à grande política uma vez que é ‘a pessoa/peçonha’ o lugar a zona de um (seu) mal estar, e tudo somado, ali o seu caso clínico. Quem será nunca ouviu um algo assim? Quem será não percebeu os efeitos perversos que operam à suspensão da crítica e da política? Uma clínica onde deveria haver a grande política/o embate/o pensamento que é embate - de que falamos ao princípio. Porque a praça pública não há de ser o espaço dos sujeitos enquanto indivíduos expandidos desde o umbigo. A praça pública deveria ser o lugar do ‘nós’, e o ‘nós’ em definitivo não seria o somatório de ‘euzinhos’ particulares – ‘euzinhos em crise’, ou ‘euzinhos jubilosos’, qualquer que seja isto. Mas será há esta esfera, a subsumida? Será não se lha apagou os regimes de outrora – como que a fazer valer a continuação do ‘mesmo’ (aquele mesmo, a mesmidade, o pensamento único), e o ‘mesmo’ em sendo o que quer a significação dominante e opressora – uma significação hegemônica, um pensamento único?! Onde a arena à discussão, e ao desmonte do instituído – ou vá se dizer que o presente é a totalidade do tempo? Que o presente é a subsunção dos possíveis, e dos mundos todos os outros nele o contido, a contenção – será não se está a promover isto? Será há um desmonte, será há o trabalhar do trabalho que se possa fazer numa outra a direção, ou estaríamos a contar a cantilena o estribilho no que se conforma o ‘aquele’ que a canta como que a repetir em alto e bom som que ‘o mundo é assim e quem quiser gostar do mundo que bem entenda que o mundo - ele é assim’?! Forma estranha esta a de vergar o que o poeta dissera numa outra feita. Mas também e aqui, nestes modos ao proceder, o que se está em promoção é o repetir de uma fórmula que tanto sucesso fez, outrora, em Pindorama: Amar, ou deixar o ‘aqui’ - amar o que se nos dá e ponto, ou então um pé às costas e às costas um pouco abaixo é o lugar ao chute. Alguém será se lembra disto? Talvez que não.  A memória, a memória – ainda se dirá que ela bem alimenta aos ressentidos. Talvez que sim, talvez que não. Todo modo uma certeza: vive-se um tempo muito pouco dado aos homens embraseados.
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Está-se em Pindorama. Bom que se deixe claro este registro de espaço e tempo. Falamos ao início que o ano é o de 2010. Nele despertamos ao ler aquele anúncio aos jornais – os resultados aos prêmios literários. A partir daí o que nos foi era a inquietude. E então, este arranjo. Claro está que boa parte do que aqui se disse não se restringe aos espaços de Pindorama. Esteve-se e está-se a falar sobre prêmios à literatura – aqui, ou algures. São espaços/modos que se comunicam, que se intercambiam, e dizer da impostura é enredá-los ao diagnóstico que se lhes voltamos. Todos juntos, todos aí. Todo modo – claro está – existirão sempre as especificidades de cada lugar, de cada aldeia. Porém, insistimos numa certa equivalência dos hábitos. Ainda assim olhemos um pouco ao umbigo. Está-se em Pindorama. Aqui os nomes costumam se repetir como que num refrão uma ladainha um estribilho, um seu bate-e-volta, um seu ir-e-vir até que se o fixe os nomes, os mesmos nomes fixados à cabeça/ ao fabulário/ao mapa das referências, os mesmos nomes, e sempre os mesmos ainda que sejam uns outros os nomes, e tudo somado - é curioso que eles pouco digam respeito ao universo das letras. Certo que havíamos combinado: esquecer os nomes, voltar os olhos aos textos. Porém, eis uma regrinha em Pindorama: ‘Há de se chamar atenção aos nomes’.  Sobretudo a eles. E serão gentes da música, com forte nome ali. E serão as gentes hiperexpostas aos media, com forte nome ali. Mas que será um nome forte? De forma pouco detida diremos sem embaraço: um nome forte é uma grife, um anteparo ao anonimato, e mais e mais, justo o seu contrário, um nome forte é o que conjura as formas ao esquecimento, todo e qualquer. Um nome forte é um nome ao mercado das trocas, um nome que movimente a bolsa, os pregões. Arrancam-se nomes fortes aos media. Arrancam-se nomes fortes à indústria cultural. E se isto se dá é porque (diz-se) uma vez a exposição contínua do nome (e daquele que atende pelo nome) se terá a garantia certa de retorno do que lá se investiu. Evita-se que se perca algo – é que a maré anda baixa, e a crise é infinita. Lamentamos que tal crise não se achegue aos escopos do ontológico. São crises intestinais, os velhos calos ao estômago, úlcera aqui, gastrite sob controle ali – sintomas de mero contratempo. Sintomas dos que estão ao jogo e o jogo é compulsivo, compulsório, sôfrego, mas carregado em adrenalina. Precisa-se de investidores - há de se ter o tino aos negócios, e há de se convir que se evite, toda prova, os riscos certos ao infortúnio. Afinal de há muito se diz que pouco é que se lê em Pindorama. Então, uma estratégia: há de se chamar atenção à literatura desde os nomes fortes. E não há como se arranjar nomes fortes desde as letras se não há um aglomerado de público ao literário. Buscar-se-á então noutros lugares a estes fortes nomes – uma vez isto, enfurna-se os tais nomes ali na intenção generosa de preencher o que parecia esvaziado. Claro que lá habitam ‘uns outros’ que sequer que carregam consigo nomes. São escritores, os anônimos. Estão debruçados ao espaço literário – o que é forma de dizer que estão nele engolfados. Mas nada que isto lhes seja amargo. Apenas que é a condição de um estar ali. Os escritores estão ali. E o estar ali é o estar àquela forma. Todavia são infortúnios àqueles promotores de festas e de fanfarras. Precisam ser removidos de ali para que os nomes fortes possam ocupar o seu extenso território de domínio. O que há de se fazer senão evitar que estes outros, os escritores, eles venham à tona? O que há de se fazer para evitar que eles se coloquem (desde a cara) fora d’água - um náufrago, os escritores, eles ali a ensejar um bom par de palavras em xingamentos, será convém isto? Talvez que estraguem a festa, e o investimento que lá nela se depositara, e então. 
8
É ainda de Pindorama que falamos. Aqui, quase que na íntegra, reproduzimos a fala de dois editores – que são as gentes a lidar com os livros, e o literário. Talvez mais com os primeiros do que com o segundo. Todo modo, vejamos o que eles conseguem no seu dizer tão curioso. Um foi quem disse a pérola, a pista, os modos a um prêmio literário – ‘Necessário o se fazer famoso. É que apenas assim se estará a ponto de conquistar um prêmio. Porque deste modo se estará a prestigiar o prêmio’. O outro editor dizia dos modos à publicação no seu nicho editorial: ‘Se for um livro comercial, nós pagamos a edição. Se não for, solicitamos ao autor que ele compareça com algum dinheiro’. O primeiro dos editores trazia um sorriso ao rosto na hora de um enunciado como aquele. Sorriso de canto de boca. É que parecia contar um segredo – e por isto o sussurro. É que parecia indicar uma luz ao final do túnel – e por isto a indulgência. Como quem indica o ‘quê fazer’. Como quem distribui bons conselhos. E como se então, uma vez isto, ele estivesse por convidar à festa – uma vez a senha ao ingresso. O segundo dos editores trazia uma carranca fechada. O queixo avantajado. A barba eriçada. Como se tivesse falhado ao apará-la sempre apressado que está. Entre viagens ao exterior – o pouso e a heresia. Parecia dizer o que lhe era claro, límpido, translúcido. Como seria de um outro modo? Um livro comercial é lucro garantido. Já o outro livro – que seja por custo e risco de quem o escreveu, e então ele que o assuma. Duas formas de ler tal enunciado: uma delas, esta de há pouco, é a que sugere que ‘um aquele’ que se deu a experimentos não-comerciais deve arcar com a sua ousadia. Como se lhe dissesse: ‘Se queres experimentar, então’. Desdobramento de tal enunciado: ‘Evite reincidir’. Este um dos modos de ler o que disse o editor da carranca, o turista de ‘sempre o mesmo’. Outro modo, a leitura nas entrelinhas daquela fala: em Pindorama, não poucas às vezes, deve-se entender de alguém que se diz ‘um editor’ o eufemismo da função investidor, e falar em literatura é contar o espaço de um negócio. Um livro comercial movimenta um bom ativo. Certo que há de se entender um tal argumento – afinal não se está à chuva para se molhar, mas para que se possa vender um bom bocado de sombrinhas, o guarda-águas. Questão é: Não serão as premissas de ambos, os editores, mais do que equívocas, não serão elas premissas perversas?!
9
O ano é o de 2010. Nele acordamos com uma notícia que (parece) mencionava livros, escritores, prêmios. Pensou-se tão logo que se tratava da literatura e então todo o estardalhaço que pudemos. Ledo engano. Nada que isto. Nada. Estava-se a falar em negócios. E falar em negócios, se é falar em investidor, é também falar em seguro, em apólices, em fiadores. Será estávamos com travas às vistas e pensamos, incautos, que líamos o caderno de cultura do jornal em questão? Talvez que fossem as páginas de economia. Talvez. Ou quem sabe se estivesse de fato entre as linhas do caderno cultural. Talvez que sim. Creio que era isto. Mas já pouco importa. Algo se dá como que à semelhança – ou não será isto, mas qual? A cultura, os negócios, a economia. Certo, certo. Necessário não perder os humores. Apenas que buscamos como que num assalto nos flagrar àquele tempo do despertar, e então que já nos vêm àquelas vozes, as mesmas vozes, aqueles nomes, os mesmos nomes, os fortes nomes, um prêmio ali, os fiadores. Será desde onde que se me chegam àquelas vozes? Pouco que importa isto. Pouco ou nada. Sobretudo se se está, uma vez desperto, um tanto mais apto à leitura dos fatos. Parece que sim. Parece que estou aí. Ao menos agora. E como que num sopro esvaem-se os fantasmas de ainda há pouco E junto com eles, as vozes os nomes. Estavam silentes entretanto. Pareciam em conluio. E sem que fosse fato, elas se riam desavergonhadas.

André Queiroz