o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Para que não se vá a vida ainda


Internado há seis meses em um hospital de Belém, o poeta Max Martins, 82 anos, enfrenta seus dias finais. Ainda em dezembro sofreu uma parada cardíaca que durou trinta minutos, mas surpreendentemente seu coração voltou a bater. Por ele mesmo, pelos amigos, pela palavra – esta última sempre foi a sua grande opção: “Em primeiro lugar, eu quis ser poeta. Mas eu sabia que isto poderia me custar muito. Perdi os dentes, perdi o bonde, perdi uma maneira de ganhar dinheiro, de vencer na vida. Me dediquei só à poesia. O resto eu transformei em calo seco para que não doesse tanto”. Sob os efeitos da palavra Max apreendeu esta fala de fluxos errantes em todos os sentidos e direções. Entre 1952 e 2002 foram quinze livros de intensidade livre, aberta – partículas loucas, inesperadas, sem estratificações.




***
Seleta - Max Martins
***

Estanho

Não entenderás o meu dialeto
nem compreenderás os meus costumes.
Mas ouvirei sempre as tuas canções
e todas as noites procurarás meu corpo.
Terei as carícias dos teus seios brancos.
Iremos amiúde ver o mar.
Muito te beijarei
e não me amarás como estrangeiro.


[do livro O Estranho, Belém, 1952]


1926/1959

Já então é tudo pedra
os dias, os desenganos.
Rios secaram neste rosto, casca
de barro, areia causticante.
E onde outrora o mar
– os olhos – búzios esburacados.

E tudo é duro e seco e oco,
o sexo enlouquecido
o osso agudo
coberto de pó e de silêncios.

Havia uma ferida, a primavera
que já não arde nem desfibra – seca
a flor amarela escura
anêmica impura
– rato no deserto

caveira de pássaro
exposta na planura


[do livro Anti-Retrato, Belém, 1960]


Koan

A pá nas minhas mãos vazias
Não a pá de ser
mas a de estar, sendo pá
lavra no vento
nuvem-poema
arco
busco-te-em-mim dentro dum lago
max
eKOÃdo
e a face esgarça-se verdemusgo
muda

(Quem com ferro fere
o canto-chão
infere o
silen
cioso
poço?)

pá!
Cavo esta terra – busco num fosso
FODO-A
agudo osso
oco
flauta de barro
sôo?

Silentes os sulcos se fecham
espelhos turvam-se
e cavo sou
a pá nas minhas mãos vazias


[do livro H’era, Rio de Janeiro, Labor, 1971]


Enterro dos Ossos

Outrora eu te escrevia oásis
Raso fosso de vozes
entre parênteses
(eu-tu)
tu) (eu
nós
palavras
de febre e areia
ex-caldo
do vosso ventre
fruto
frustro num X
pendente:
ISTO É MEU CORPO
delito
escrito e escarrado
parido
da mão solitária
Mister-mistério (o acaso) eu te escrevia
transcrevia
do princípio ao fim o avesso nome
alpha de alar
phalar
e te seguir
as’ir
seta perdida
atrás do alvo (negro eu) Céu cego-vazio
Ou
Outrora escrita-pista para o pouso
(ânsia no vôo
em vão
no ar senil)
ousava
usava falaz-faminto
o louco lábio
errava

E ilhas não há
senão álibis sibilinos sub-líneos
Uns pássaros sujos
as’peados

Hoje te desescrevo
libidinoso grito: Cavo o silêncio

e enterro os ossos
órficos
(e este vício)
no poente
ó asa
as
a


[do livro O risco subscrito, Belém, 1980]


***

Este que é o sudário. A teia
em que me escrevo e me alivia
do sangue adiante na sua cólera
este é meu céu. Numa bandeira turva

a palavra sobrevoada por astros –
constelações de minha vida, uma jura
adorada no silêncio
– eis-me

em linho corrompido amordaçando a ilha
amordaçando a chaga, aliciando a carne
anavalhada, a lua
negra na pele – eis
erótico-erosivo, o ideograma da morte
a flor da areia

O nome na escritura, eis
a palavra, o deserto da página
e o verso mistério da fé
Eis
o caminho
o branco que firo, a letra
o gueto do signo e suas estrelas

Eis-nos, em abandono


[do livro A fala entre parêntesis, renga com Age de Carvalho, Belém, 1982]


Ayesha

Toco
enfim no oco
no ânus sinuoso da beleza
E é falso

o Luminoso
o outro-gozo, o vício da beleza

falsa a falárica, a fala em riste
a África em chamas do poema
o fórum da beleza
Toco
desmoronadamente n’Ela
a Feiticeira


[do livro Caminho de Marahu, Belém, 1983]


Isto por aquilo

Impossível não te ofertar:
O rancor da idade na carga do poema
O ronco do motor numa garrafa

Ou isto

(por aquilo
que vibrava
dentro do peito) o coração na boca
atrás do vidro a cavidade
o cavo amor roendo
o seu motor-rancor
– ruídos

[do livro 60/35, Belém, 1985]


Saltimbanco

O não mais espumoso vinho dos abismos
O cauterizado testemunho de um instante de beleza
O ritmo do oceano
O palco
e a metade da cama para o falso poema
O saltimbanco

Ou o sangramento
da pedra de um deus a cada assalto
O cadafalso
O semi destroçado frêmito de um destino de cego de antemão
O não mais aceito rito do ofício O ofício:
esta rasura do corpo sendo esquecido
O esquecimento
O desabitado segredo das palavras


[do livro Marahu Poemas, Belém, 1991]


A hóspede

Tua mão no freio embaixo, freia.
Detém tuas coxas
teus pés
os passos. Deixa
que a fruta caia só ao seu tempo.

Cumpre é que te isoles
(ou até mesmo fujas)
desta insolente e sobrevinda jovem
a hóspede
(para que teu céu não se envileça
nem te envelheça o vento
que vem de cima para baixo, sobre a pele)

Melhor é que agora obscureças
o poder dela, o nome dela, estas tuas águas
– águas trementes

[do livro Para ter onde ir, São Paulo, 2002]


Marahu: primeira relação

2 formigas – operárias
ápteras
ou novatas, não
de fogo mas
noturnas, doces

1 grilo
(depois aprisionado
pela aranha, morto
ao amanhecer)
O canto dum galo
e outro galo
A saracura. A tarde
2 gaviões molhados
encolhidos no pau da árvore
pensos

Garças
Sobre as pedras
negras da praia
Os urubus
o boto morto
um cão medroso, sapos
sapos
sapos
1 goteira
sapos
chuva
o sol
vindo do mato
às 7
da manhã
A noite
a escuridão o vento as velas
de Lao-tsé
Thoreau
E o meu cajado de bambu rachado
o chão
folhas úmidas


[do livro Colmando a lacuna, Belém, 2001]
Imagem: Paulo Ponte Souza

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A BARBÁRIE VERBAL DE MAX MARTINS

Por Ney Ferraz Paiva


Quando o homem toma plena consciência dos seus poderes, do seu papel, do seu destino, é um artista e cessa de debater-se com a realidade. Torna-se um traidor à raça humana. Cria a guerra porque anda permanentemente de passo trocado com o resto da humanidade. Senta-se no limiar do ventre materno com as reminiscências da sua raça e os seus desejos incestuosos, e recusa-se a sair dali. Esgota o seu sonho de paraíso. Reduz a sua experiência real da vida a equações espirituais. Despreza o alfabeto ordinário que oferece quando muito uma gramática do pensamento e adota o símbolo, a metáfora, o ideograma. Escreve em chinês. Cria um mundo impossível a partir de uma linguagem incompreensível, uma mentira que encanta e escraviza os homens.

Henry Miller, carta a Lawrence Durrel, 1937.


Alguém que joga fora a sua própria obra. Assim o poeta Max Martins enfrenta há 50 anos a perfídia e a opressão que o nega. Seu primeiro livro O Estranho [1952] nunca chegou às livrarias. Anti-Retrato [1960] não teve destino melhor: ficou empilhado dentro da casa do poeta, até mesmo no banheiro do seu escritório. “Foi quando resolvi mandar um menino jogar fora os livros nos covões de São Braz, onde é hoje o terminal rodoviário. Anos depois, amigos me comunicavam que possuíam o Anti-Retrato. ‘Mas eu não dei o livro’, retrucava. ‘Jogaram pela minha janela’, respondiam. Pois bem, esse menino, em vez de jogar os livros nos covões, passou a distribuí-los pelas casas, jogando-os pelas janelas, como se fazia antigamente com os almanaques”. Estamos diante de uma literatura sustentada apenas pela precariedade, não pelo seu valor de mercado; errática e alheia, desloca-se do seu destino objetivo para um lugar sem referências nem memórias: um labirinto se fazendo. Da longínqua Belém dos anos 1940, desde sempre destinada a não ser porto nem metrópole, e das “anotações líricas” desse período, o poeta chega, na contramão de si mesmo, a uma escrita que convive com o fracasso de ocupar com a palavra os territórios vazios: cavar e lavrar seus sulcos. Impassível, ela [a rosa de Celan/e de ninguém] se fecha à sua volta como uma armadilha. Colmando a Lacuna [2001] comprova: mais uma vez, acossados pelas costas, a palavra, a frase, o verbo [os chamados do tigre] lhe atravessam. Max Martins escreve de dentro de uma cova, cada vez mais funda. Desce à merda da palavra, revolve a sua lama. Não se submete às superficialidades, escava contra elas, esconde-se, retira o que disse [seu indizer] nesse subscrito jogo da linguagem. Eis aqui o seu lance: não identifica a sua fala a um pensamento qualquer, a uma cultura dominante que lhe sirva de moldura e espelho. Desde O Estranho [livro dedicado à memória de seu pai e à sua mãe], Max multiplica imagens desfeitas da infância, ou melhor, desescreve-as, estranhando-se nelas, desterritorializando sua fala, para assim se livrar das nostalgias maternas e das culpas em relação ao pai – nada mais que isso e a um só tempo tudo isso. Em Anti-Retrato o poeta se espelha como uma pessoa que não se parece com os da família: um bicho, uma aberração. É sem os cosméticos da linguagem que a escrita de Max modifica seus traços, a hera misteriosa revolve tudo [o teu grotesco/na impossibilidade de me deter/já me consola]. O não-consolo do poeta se dá pelo indefinido de suas imagens adversas, sinuosas, inexatas. Só como aberração essa escrita funciona, deslocando-se no pouco do seu buraco, no tempo exíguo de um grito e, no entanto, temos sempre expresso aí um transcurso de tão longa duração: a intensidade e não o significante é o que importa para essa poesia arrastada entre paredes, com dilaceradas peles e órgãos revolvidos. De um jogar fora para um jogar dentro – eis a malograda linha divisória dessa geografia em transe, ligada subterraneamente à linguagem que não se quer poder – mas rastro, erro. Essa anti-fala mais uma vez lançada nos covões, em seu limiar de morte, e só por acaso recolhida.



SOBRE UM POEMA DE ROBERT STOCK


Algumas semanas antes de sua morte
meu pai dizia
podando os pés de pêra
– como
era saudável e doce a nossa fome
contudo
indiferentes
apenas deleitávamo-nos
dos seus suados frutos

Vivo e precioso
aquele sabor também morava
razão e fé em minha mãe
sabor na boca – beijo
do amor sofrido num e noutro
sua ternura
sua armadura, flor
(nunca mais em maio)
semente e herança:
as
pêras
– lágrimas –
frutos fartos para sempre e um dia


QUERO


Quero que ela seja rainha
A rainha. Quero
fechadas as paredes
com raízes
e rufar de tambores
Mulher na manhã
mesmo sem cinzas na clareira do bosque
dissolvida a cuspo
Mulher-amante
Musa e nuvem
tatear seu ventre
na sublime meditação
do seu olhar
sonhar
águas azuis
E que rei sou eu? Sem coroa e reinado
sem dinheiro, traído e desterrado
O Velho Rei de Rouault, católico e operário,
taoísta e zen
O Velho Rei austero com flores na mão
o ser próprio

Quero, Rainha
que o ouro do seu coração, quero
na minha boca
em febre
febre prateada

Eis que escuto a Sonata
para piano e violoncelo
que ofereço
com molto sentimento d’affetto
no seu aniversário
à Rainha!


LE SQUARE TROUSSEAU


O teu preciso envelope
finalmente chegou. Que bom saber
que estais bem! Que bom poder
te ler
depois de tanto
tempo!

Obrigada, amor, obrigada!

Tu és a boa notícia, a Boa Nova
desta temporada,
primavera em Paris
Beijos sabor chocolate


Max Martins, O Cadafalso, Organização Ney Ferraz Paiva, Belém: Cão-guia, 2001.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

PERTURBAÇÃO, THOMAS BERNHARD
Os comunistas não sabem o que é o comunismo. Lamentavelmente.


Somos, independentemente da vida profissional, viajantes em enterros. E sempre morrem precisamente, caro doutor, os que sabíamos que morreriam. As surpresas são raras. Pergunto, disse o príncipe, agora estão ampliando o cemitério de Bundau, não? E Huber diz: brigas. O prefeito, os socialistas... etc... Ao município, diz Huber, ninguém queria dar um pedaço de terra. Por isso o município simplesmente o desapropriou. Desapropriou, acho eu. Eis uma palavra que me faz compreender toda a repulsividade do Estado, toda a estupidez estatal, toda a súcia de funcionários públicos. Desapropriar! Desapropria-se a torto e a direito, digo, por todos os lados se desapropria, com os pretextos mais fúteis. Os políticos desapropriam impunemente. Desapropria-se impunemente. Desapropriam e arruínam. Arruínam a natureza. Desapropriar!, exclamo. E digo: tomara que o Estado logo se desaproprie a si mesmo. Que se desaproprie o quanto antes!, exclamo, que se suicide! Chegou o momento de o Estado se desapropriar a si mesmo, disse o príncipe. Esse estado ridículo, eu disse. Desapropriar! Decepam-nos a machadadas os dedos dos pés, meu caro doutor, veja o senhor, os dedos dos pés; cortam-nos os jarretes, ficamos sem poder andar... O Estado está bichado, digo; falo sério, o Estado está bichado. Nos últimos tempos minha frase favorita é, caro doutor, o Estado está bichado. Tudo é uma porcaria, digo a Huber; os vermelhos são uma porcaria e os negros são uma porcaria. Tudo agoniza de uma forma igualmente estúpida, não é verdade?

Tudo menos a ciência. Digo a Huber: apesar de tudo, a agonia republicana é sem dúvida a mais repulsiva, a mais dolorosa. Não é verdade, caro doutor? Digo: o povo é estúpido e fede; sempre foi assim. Huber diz então que no Bundau, concretamente, entre os trabalhadores de Drack, há comunistas. Comunistas!, digo, comunistas! Sim, comunistas! Também eu tenho um montão deles, asseguro-lhe. Tudo o que há embaixo do castelo, digo, é comunista! Tudo! Mas o comunismo e os comunistas não sabem o que é o comunismo. Lamentavelmente.






Thomas Bernhard, Perturbação, Rocco, 1999,

Tradução: Hans Peter welper & José Laurênio de Melo.
Imagem: Iraq, after Saddan @ Eddy Van Wessel.