Por Ney Ferraz
Paiva
Quando o homem toma plena consciência dos seus poderes, do seu papel,
do seu destino, é um artista e cessa de debater-se com a realidade. Torna-se um
traidor à raça humana. Cria a guerra porque anda permanentemente de passo
trocado com o resto da humanidade. Senta-se no limiar do ventre materno com as
reminiscências da sua raça e os seus desejos incestuosos, e recusa-se a sair
dali. Esgota o seu sonho de paraíso. Reduz a sua experiência real da vida a
equações espirituais. Despreza o alfabeto ordinário que oferece quando muito
uma gramática do pensamento e adota o símbolo, a metáfora, o ideograma. Escreve
em chinês. Cria um mundo impossível a partir de uma linguagem incompreensível,
uma mentira que encanta e escraviza os homens.
Henry Miller, carta a Lawrence Durrel, 1937.
Alguém que joga fora a sua própria obra. Assim o poeta Max Martins
enfrenta há 50 anos a perfídia e a opressão que o nega. Seu primeiro livro O Estranho [1952] nunca chegou às
livrarias. Anti-Retrato [1960] não
teve destino melhor: ficou empilhado dentro da casa do poeta, até mesmo no
banheiro do seu escritório. “Foi quando resolvi mandar um menino jogar fora os
livros nos covões de São Braz, onde é hoje o terminal rodoviário. Anos depois,
amigos me comunicavam que possuíam o Anti-Retrato.
‘Mas eu não dei o livro’, retrucava. ‘Jogaram pela minha janela’, respondiam.
Pois bem, esse menino, em vez de jogar os livros nos covões, passou a
distribuí-los pelas casas, jogando-os pelas janelas, como se fazia antigamente
com os almanaques”. Estamos diante de uma literatura sustentada apenas pela
precariedade, não pelo seu valor de mercado; errática e alheia, desloca-se do
seu destino objetivo para um lugar sem referências nem memórias: um labirinto
se fazendo. Da longínqua Belém dos anos 1940, desde sempre destinada a não ser
porto nem metrópole, e das “anotações líricas” desse período, o poeta chega, na
contramão de si mesmo, a uma escrita que convive com o fracasso de ocupar com a
palavra os territórios vazios: cavar e lavrar seus sulcos. Impassível, ela [a
rosa de Celan/e de ninguém] se fecha à sua volta como uma armadilha. Colmando a
Lacuna [2001] comprova: mais uma vez, acossados pelas costas, a palavra, a
frase, o verbo [os chamados do tigre] lhe atravessam. Max Martins escreve de
dentro de uma cova, cada vez mais funda. Desce à merda da palavra, revolve a
sua lama. Não se submete às superficialidades, escava contra elas, esconde-se,
retira o que disse [seu indizer] nesse subscrito jogo da linguagem. Eis aqui o
seu lance: não identifica a sua fala a um pensamento qualquer, a uma cultura
dominante que lhe sirva de moldura e espelho. Desde O Estranho [livro dedicado à memória de seu pai e à sua mãe], Max
multiplica imagens desfeitas da infância, ou melhor, desescreve-as,
estranhando-se nelas, desterritorializando sua fala, para assim se livrar das
nostalgias maternas e das culpas em relação ao pai – nada mais que isso e a um só tempo tudo isso. Em Anti-Retrato o
poeta se espelha como uma pessoa que não se parece com os da família: um bicho,
uma aberração. É sem os cosméticos da linguagem que a escrita de Max modifica
seus traços, a hera misteriosa revolve tudo [o teu grotesco/na impossibilidade
de me deter/já me consola]. O não-consolo do poeta se dá pelo indefinido de
suas imagens adversas, sinuosas, inexatas. Só como aberração essa escrita
funciona, deslocando-se no pouco do seu buraco, no tempo exíguo de um grito e,
no entanto, temos sempre expresso aí um transcurso de tão longa duração: a
intensidade e não o significante é o que importa para essa poesia arrastada entre paredes, com dilaceradas peles e órgãos revolvidos. De um jogar fora para um jogar dentro
– eis a malograda linha divisória dessa geografia em transe, ligada
subterraneamente à linguagem que não se quer poder – mas rastro, erro. Essa
anti-fala mais uma vez lançada nos covões, em seu limiar de morte, e só por acaso
recolhida.
SOBRE UM POEMA DE ROBERT STOCK
Algumas semanas antes de sua morte
meu pai dizia
podando os pés de pêra
– como
era saudável e doce a nossa fome
contudo
indiferentes
apenas deleitávamo-nos
dos seus suados frutos
Vivo e precioso
aquele sabor também morava
razão e fé em minha mãe
sabor na boca – beijo
do amor sofrido num e noutro
sua ternura
sua armadura, flor
(nunca mais em maio)
semente e herança:
as
pêras
– lágrimas –
frutos fartos para sempre e um dia
QUERO
Quero que ela seja rainha
A rainha. Quero
fechadas as paredes
com raízes
e rufar de tambores
Mulher na manhã
mesmo sem cinzas na clareira do bosque
dissolvida a cuspo
Mulher-amante
Musa e nuvem
tatear seu ventre
na sublime meditação
do seu olhar
sonhar
águas azuis
E que rei sou eu? Sem coroa e reinado
sem dinheiro, traído e desterrado
O Velho Rei de Rouault, católico e operário,
taoísta e zen
O Velho Rei austero com flores na mão
o ser próprio
Quero, Rainha
que o ouro do seu coração, quero
na minha boca
em febre
febre prateada
Eis que escuto a Sonata
para piano e violoncelo
que ofereço
com molto sentimento d’affetto
no seu aniversário
à Rainha!
LE SQUARE TROUSSEAU
O teu preciso envelope
finalmente chegou. Que bom saber
que estais bem! Que bom poder
te ler
depois de tanto
tempo!
Obrigada, amor, obrigada!
Tu és a boa notícia, a Boa Nova
desta temporada,
primavera em Paris
Beijos sabor chocolate
Max Martins, O Cadafalso,
Organização Ney Ferraz Paiva, Belém: Cão-guia, 2001.