o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 17 de janeiro de 2016

Duas cartas de René Magritte a Michel Foucault


23 de maio de 1966

Prezado Senhor,

O senhor fará o obséquio, espero, de considerar estas poucas reflexões relativas à leitura que faço de seu livro As palavras e as coisas...
As palavras Semelhança e Similitude permitem ao senhor sugerir com força a presença – absolutamente estranha – do mundo e de nós próprios. Entretanto, creio que essas duas palavras não são muito diferenciadas, os dicionários não são muito edificantes no que as distingue.
Parece-me que, por exemplo, as ervilhas possuem relação de similitude entre si, ao mesmo tempo visível (sua cor, forma, dimensão) e invisível (sua natureza, sabor, peso). É a mesma coisa que concerne ao falso e ao autêntico etc. As “coisas” não possuem entre si semelhanças, elas têm ou não têm similitudes.
Só ao pensamento é dado ser semelhante. Ele se assemelha sendo o que vê, ouve ou conhece, ele torna-se o que o mundo lhe oferece.
Ele é tão invisível quanto o prazer e a pena. Mas a pintura faz intervir uma dificuldade: há o pensamento que vê o que pode ser descrito visivelmente. As Damas de Honra[1] são a imagem visível do pensamento invisível de Velásquez. O invisível seria então, por vezes, visível? Só com a condição de que o pensamento seja constituído exclusivamente de figuras visíveis.
A esse respeito, é evidente que uma imagem pintada – que é intangível por sua natureza – não esconda nada, enquanto o visível tangível esconde sistematicamente um outro visível – se cremos em nossa experiência.
Existe, há algum tempo, uma curiosa primazia conferida ao “invisível” através de uma literatura confusa, cujo interesse desaparece se se observa que o visível pode ser escondido, mas que o invisível não esconde nada: pode ser conhecido ou ignorado, sem mais. Não cabe conferir ao invisível mais importância do que ao visível, ou inversamente.
O que não “falta” importância é ao mistério evocado de fato pelo visível e pelo invisível, e que pode ser evocado de direito pelo pensamento que une as “coisas” na ordem que o mistério evoca.
Permito-me apresentar a sua atenção as reproduções de quadros anexas, que pintei sem me preocupar com uma busca original no pintar[2].
Queira aceitar etc...

René Magritte

______________________
Notas
[1] Também conhecido por Las meninas. (N. do T.)
[2] Entre essas reproduções havia “Isto não é um cachimbo”: no verso, Magritte escrevera: “o título não contradiz o desenho, ele o afirma de outro modo”.


Isto não é um cachimbo, 1929. Óleo sobre tela 23 x 31 cm


4 de junho de 1966

Prezado Senhor,

... Sua questão (a respeito do meu quadro Perspectiva. O Balcão de Manet) pergunta sobre o que ela própria já contém: o que me fez ver ataúdes onde Manet via figuras brancas é a imagem mostrada por meu quadro onde o cenário do Balcão convinha para situar os ataúdes.
O “mecanismo” que operou aqui pode ser objeto de uma explicação erudita, da qual sou incapaz. Essa explicação seria válida, talvez certa, mas continuaria sendo um mistério.
O primeiro quadro, intitulado Perspectiva, era um ataúde sentado sobre uma pedra, numa paisagem.
O Balcão é uma variante do precedente, houve outras anteriormente: Perspectiva. Madame Recamier de David e Perspectiva. Madame Recamier de Gérard. Uma variante com, por exemplo, o cenário e os personagens do Enterro em Ornans, de Coubert, teria o sentido de uma paródia.
Creio que se deve notar que esses quadros, chamados Perspectivas mostram um sentido que os dois sentidos da palavra Perspectiva não têm. Essa palavra, e as outras, tem um sentido preciso num contexto, mas o contexto – o senhor o demonstra melhor do que ninguém em As palavras e as coisas – pode dizer que nada é confuso salvo o espírito que imagina um mundo imaginário.
Agrada-me o fato de que o senhor reconheça uma semelhança entre Roussel e o que eu possa pensar que mereça ser pensado. O que ele imagina não evoca nada de imaginário, evoca a realidade do mundo que a experiência e a razão consideram confusamente.
Espero ter a oportunidade de encontrá-lo por ocasião da exposição que farei em Paris, na galeria Iolas, pelo fim do ano.
Aceite etc...


RENÉ MAGRITTE
Tradução: Jorge Coli



Madame Recamier de David, 1950. Óleo sobre tela 60 x 80



Balcão de Manet, 1950. Óleo sobre tela 81 x 60 cm 

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Orfeu na Coréia


Aqui estou, Orfeu, na terra coreana,
músico condenado sem morte, em busca do atalho
para o subterrâneo, onde minha mulher, coberta
no mofo com esta canção, lacera a mortalha.
Aqui estou, Orfeu, na terra coreana.

Será que posso aqui morrer, onde a morte é forte
feito sol, forçando as muralhas e os olhos esmaga
com unhas e sem o signo das lágrimas revolve
ruínas o solo fundo como raízes centenárias.
Morrer enfim aqui onde a morte é forte.

Estarreçam terras onde cadáver - irmão do homicídio -
após cadáver cai no rio do apodrecimento em labaredas.
E os vivos onde estão? Quem faz guerra ininterrupta
entre pássaros sem bico e mortos e a cidade arrasada?
Vejam terras onde o irmão da caveira é o fuzil no ombro.

De novo aqui estou diante dos portões das trevas e não
há mais flora sob o pé chagoso, nem mais seres vivos
em torno da lira. Nos campos abandonados o sangue será sêmen.
Nuvens - capacetes do firmamento - sossegarão os gemidos
diante dos portões das trevas e não haverá mais aflição.

Será que alguém ao passar encontrará a minha lira
pelo defunto ano, ao longo da lamentação do vento?
Será que o dedo da criança buscará a melodia
e poderá atrair animais, viveiros brancos e sementes?
Será que alguém virá buscar a minha lira?

Eurídice, aqui estás, pois a luz escorre como alma penada
e a gavela dos canos de ferro do teu jazigo
me aguarda e tiro após tiro cumpre o que foi jurado -
que minha canção jamais possa em tua tumba ser ouvida.
Eurídice, recebe a superfície azul de meu olhar estilhaçada.

Enfim agora sei - aí embaixo junto de ti estou chegando
de fossa em fossa pela borda do deserto da Coréia.
Mas para trás não olharei. Aqueles que amam
a terra fitar devem. E tua mão onde está?
Querida, eis-me aqui, para junto de ti descendo.





Miodrag Pávlovitch
Tradução: Aleksandar Jovanovic
Imagens: Ladies" Code

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Lazarus


Look up here, I'm in heaven
I've got scars that can't be seen
I've got drama, can't be stolen
Everybody knows me now

Look up here, man, I'm in danger
I've got nothing left to lose
I'm so high it makes my brain whirl
Dropped my cell phone down below
Ain't that just like me?

By the time I got to New York
I was living like a king
Then I used up all my money
I was looking for your ass
This way or no way
You know, I'll be free
Just like that bluebird
Now ain't that just like me?
Oh I'll be free
Just like that bluebird
Oh I'll be free
Ain't that just like me?







David Bowie

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

NAM SIBYLLAM



Lá onde um velho corpo desfraldava
As trêmulas imagens de seus anos;
Onde imaturo corpo condenava
Ao canibal solar seus tenros anos;
Lá onde em cada corpo vi gravadas
Lápides eloquentes de um passado
Ou de um futuro arguido pelos anos; 
Lá cândidos leões alvijubados
As brisas temporais se espedaçavam
Contra as salsas areias sibilantes;
Lá vi o pó do espaço me enrolando
Em turbilhões de peixes e presságios
Pois na orla do mundo as delatantes
Sombras marinhas, vagas, me apontavam.



Mário Faustino, O Homem e sua Hora, Sete Sonetos de Amor e Morte, 1955.
Imagem: William Eggleston

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

HORSE LATITUDES



Quando o mar tranquilo conspira uma armadura
E as suas morosas e abortadas
Correntes engendram monstrinhos,
A verdadeira navegação está morta
Instante constrangedor
E o primeiro animal é lançado,
Patas furiosamente pressionando
Seu galope rígido e verde,
E cabeças pairam
Equilibradas
Delicadas
Pausam
Consentem
Na agonia das narinas mudas
Cuidadosamente refinadas
E finalmente seladas





JIM MORRISON
Imagem: Ben Zark

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Política



Vivia jogado em casa.
Os amigos o abandonaram
quando rompeu com o chefe político.
O jornal governista ridicularizava seus versos,
os versos que ele sabia bons.
Sentia-se diminuído em sua glória
enquanto crescia a dos rivais
que apoiavam a Câmara em exercício.

Entrou a tomar porres
violentos, diários.
E a desleixar os versos.
Se já não tinha discípulos.
Se só os outros poetas eram imitados.

Uma ocasião em que não tinha dinheiro
para tomar o seu conhaque
saiu à toa pelas ruas escuras.
Parou na ponte sobre o rio moroso,
o rio que lá embaixo poucos se importava com ele
e no entanto o chamava
para misteriosos carnavais.

E teve vontade de se atirar
(só vontade).

Depois voltou para casa
livre, sem correntes
muito livre, infinitamente
livre livre livre que nem uma besta
que nem uma coisa.





Carlos Drummond de Andrade, Alguma Poesia
Imagem: Robert e Shana Parkeharrison

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Versos do testamento



A solidão: é preciso ser muito forte
para amar a solidão; é preciso ter pernas firmes
e uma resistência fora do comum; não se deve arriscar
pegar um resfriado, gripe ou dor de garganta; não se devem temer
assaltantes ou assassinos; há que caminhar
por toda a tarde ou talvez por toda a noite
é preciso saber fazê-lo sem dar-se conta; sentar-se nem pensar;
sobretudo no inverno, com o vento que sopra na grama molhada
e grandes pedras em meio à sujeira úmida e lamacenta;
não existe realmente nenhum conforto, sobre isso não há dúvida,
exceto o de ter pela frente todo um dia e uma noite
sem obrigações ou limites de qualquer espécie.
O sexo é um pretexto. Sejam quais forem os encontros
― e mesmo no inverno, pelas ruas abandonadas ao vento,
ao longo das fileiras de lixo junto aos edifícios distantes,
que são muitos ― eles não passam de momentos da solidão;
mais quente e vivo é o corpo gentil
que exala sêmen e se vai,
mais frio e mortal é o querido deserto ao redor;
é isso o que enche de alegria, como um vento milagroso,
não o sorriso inocente ou a prepotência turva
de quem depois vai embora; ele traz consigo uma juventude
enormemente jovem; e nisso é desumano,
porque não deixa rastros, ou melhor, deixa um único rastro
que é sempre o mesmo em todas as estações.
Um jovem em seus primeiros amores
não é senão a fecundidade do mundo.
É o mundo que chega assim com ele; aparece e desaparece,
como uma forma que muda. Restam intactas todas as coisas,
e você poderia percorrer meia cidade, não voltaria a encontrá-lo;
o ato está cumprido, sua repetição é um rito; pois
a solidão é ainda maior se uma multidão inteira
espera sua vez; cresce de fato o número dos desaparecimentos ―
ir embora é fugir ― e o instante seguinte paira sobre o presente
como um dever; um sacrifício a cumprir como um desejo de morte.
Ao envelhecer, porém, o cansaço começa a se fazer sentir,
sobretudo naquela hora imediatamente após o jantar,
e para você nada mudou; então por um triz você não grita ou chora;
e isso seria enorme se não fosse mesmo apenas cansaço,
e talvez um pouco de fome. Enorme, porque significaria
que o seu desejo de solidão já não poderia ser satisfeito;
e então o que o aguarda, se isto que não se considera solidão
é a verdadeira solidão, aquela que você não pode aceitar?
Não há almoço ou jantar ou satisfação do mundo
que valha uma caminhada sem fim pelas ruas pobres,
onde é preciso ser desgraçado e forte, irmão dos cães.



Pier Paolo Pasolini
Tradução de Cide Piquet e Davi Pessoa
Imagem: Duane Michals, Salve, Walt Whitman

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

NÃO ENTRES DOCILMENTE NESTA NOITE MANSA


Não entres docilmente nesta noite mansa:
A idade deve arder e irar-se ao fim do dia;
Grita, grita contra a luz que está morrendo.

Mesmo sabendo no final que a justa escuridão avança,
Pois seus gestos não forjaram raios, o homem sábio
Não entra docilmente nesta noite mansa.

O homem, à onda derradeira, gemendo
Que seus frágeis atos poderiam ter brilhado e dançado na enseada,
Grita, grita contra a luz que está morrendo.

O homem louco que reteu e cantou o sol em fuga,
E aprendeu, tão tarde, que apenas lamentava seu passar,
Não entra docilmente nesta noite mansa.

O homem grave, ao morrer, já cego vendo
Que olhos cegos poderiam brilhar como as estrelas e alegrar-se,
Grita, grita contra a luz que está morrendo.

E tu, meu pai, aí da tua altura triste,
Amaldiçoa-me, abençoa-me, te peço, com tuas lágrimas ferozes.
Não entres docilmente nesta noite mansa.
Grita, grita contra a luz que está morrendo.



DYLAN THOMAS
Tradução: Ana Cristina Cesar
Imagem: Francis Bacon  

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

TODOS SÃO POETAS, EXCETO OS QUE NÃO SÃO

                                aqui onde o escuro chegou rente
então aqui deve ser onde se encerra o escuro
doris lessing

chegamos a mais um dezembro e convém não só puxar conversa, mas também avaliar e fazer prognósticos. e aproveitem, eu estou otimista. penso que a poesia está em excelente forma. dá sinais de uma exuberância surpreendente. ainda que outro dia, ou melhor, há um ano, por aí, fiquei mesmo impressionado, e talvez um pouco perturbado... a posse de ferreira gullar à academia brasileira de letras. eu, que sou perfeitamente mortal, esperava morrer sem ver isso. e não sei se realmente vi, ou se estava, como aquele acadêmico na plateia, com os olhos fechados e parecendo dormir. gullar ainda é capaz dessa ironia. mas, de dentro daquele fardão asséptico ao novo, o que mais terá a dar à poesia? mudar-se para a casa de machado, para um gullar muito à vontade lendo ali o seu discurso, faz parecer o “destino” natural do poeta (de todo poeta; o que não consegue fracassa). ao mesmo tempo não se pode ficar sem perceber a verdadeira força do que gullar vive. ele não deixa dúvidas de que é capaz de continuar. de ir adiante. ainda que sobre isso ele não tenha dito nada, e eu tenha a mente tomada por essas fantasias. me concentrei nos sintomas. a posse, a festa, a pose. já as fraturas, as lesões, os cortes me escaparam. o modo lento e cauteloso. as frases breves. a fadiga. o poeta em seu triunfo ameaçado pela pacata pungência. tudo tão pequeno e tão grandioso ronda o poeta para fechar a sua obra. seu destino verdadeiro. o que inclui rastrear os próprios insucessos e colapsos até o êxito e a ascensão. a poesia está em excelente forma porque pode estar em forma. bem como a minha contínua incapacidade de prever – e, pior, avaliar – está aí porque está aí. tão certo como não ocorre mais a ninguém ir a uma banca de jornal comprar uma revista de mulher nua, e ter que disfarçar a compra “imoral” tendo que ao mesmo tempo adquirir outras publicações “sérias”. coube à revista playboy vestir as “coelhinhas” para termos outra vez que imaginar a silhueta do mistério. por sua vez a literatura terá que vir com toda a carga de variadas, revezadas e diversas pirações. em 2015 a editora autêntica extraordinariamente republicou numa só caixa  por amor ao deus dos hospícios  a esgotadíssima maura lopes cançado. o anúncio infernal, perturbador, amargo da vida. e para além da loucura, venha a nós, leitores do abismo, o erotismo da grande poesia, do romance, do teatro a partir das ruas, das noites, dos precipícios – e não da insuportável modelagem comercial da obra, desde a capa, como ainda se faz impunemente à clarice, a machado e a outros tantos. puxar esse pesado véu para revelar o imprevisto, o inesperado, de uma só vez, como faz com a fotografia a mexicana graciela iturbide: vestir uma mulher (a obra) de iguana em vez de um prosaico chapéu. estranho & bonito, terno & perverso. que na arte os extremos se encontrem; os extremos se transformem em seus opostos.

Ferreira Gullar toma posse na Academia. Foto: Fábio Mota/Estadão Conteúdo

Hospício é Deus e O Sofredor do Ver, de Maura
Lopes Cançado, pela Editora Autêntica.

 
Nossa Senhora das Iguanas, Graciela Iturbide.


ney ferraz paiva

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

POESIA DE AMOR – AMOR PELA POESIA: E NÃO HÁ PROVAS DE QUE EROS NOS PERDOA


Os poetas brasileiros não morrem em revoluções.
Quando elas acontecem, os bardos nacionais
preferem segurar os empregos.
Na Revolução de 30 não morreu um só Dante
de Cascadura para contar como é descer ao inferno.
Fernando Monteiro, Vi uma foto de Anna Akhmátova


UM GRANDE PROBLEMA talvez não mais da Poesia e sim dos poetas no Brasil, dos poetas que vão aparecendo cada vez mais cedo com novos livrinhos gestados na toxidade noturna da internet ou do mercado editorial – esse que principalmente anuncia a baixo custo e sob demanda a um país que não lê, que não lê sobretudo poesia, o Grande e Desmesurado Poeta do Dia para uso compulsório do leitor incauto, pois bem, talvez o grande problema, que também muito contribua para que essa maquinaria opere observando leis, editais, prêmios, festas e etiquetas próprias, deixando à parte a divulgação, circulação, ampliação e discussão da Poesia, seja o fato de que os poetas, entregues a seus transes festivos, amem cada vez mais não a Poesia (substância maior que o Estado parece querer banir com as suas instituições desestabilizadoras da cultura), mas apenas a “sua” diluída e hibridizada poesia, conectada a seu próprio umbigo e revestida de desimportância exemplar. Poetas amantes de si mesmos. Jovens e não velhos sem idade, que bem ao contrário do vinho, não melhoram com o passar dos anos, apenas envelhecem, pioram a safra e reprisam o ciclo decadente. Atados a uma mesma teia cada vez mais estranha à Poesia e a seu desenvolvimento como organismo relevante. E de igual modo que falar inglês não resulta no estabelecimento de uma comunicação global, o declínio da Poesia também nos ambientes de cultura aparentemente cultos não se reverte pelo anúncio e acúmulo sucessivo dos nomes e dos respectivos “livros à mão cheia”. O mercado, neste caso também, não de amor, mas de amplo negócio, não é a melhor reação. Ele não tem como fecundar, renovar e ampliar as possibilidades de acesso e circulação, incendiando corações e mentes dos novos leitores com a Poesia, este Amor que quando se revela é sempre uma descoberta revolucionária – “crescer, criar, subir”. Amor pela Poesia. Nele e através dele, diz Mário Faustino, não há a imprecisão do “etc”. Com o surgimento da internet e da tecnologia digital esse Amor não prosperou. Ampliaram-se às escâncaras os egos invioláveis. Os tributos ao “eu” e ao “meu”. Território de livre circulação de toda sorte de investidas, a Poesia perde espaço. Apequenada, energia reduzida à baixa intensidade, o mercado a colocou sob sua cúpula como objeto estático, dependente e isolado. E apenas pelo efeito ilusório das vitrines a Poesia aparenta ter sido prolongada em redes como os outros segmentos. Resulta disso que raros livros quase imperceptivelmente como este Vi uma foto de Anna Akhmátova, Fernando Monteiro, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2009, a prorrogam com força e intensidade próprias desde uma ida banal à padaria na esquina, ao bar ou à praia até uma viagem incomensurável para o outro lado do mundo, com o qual os grandes mercados turísticos das Festas, Feiras e Bienais estão de passos firmados e não trocados e por isso não têm como enlaçar as mãos num mesmo momento de afeto. Inverossímil Viagem de Amor. Não apenas por um deslocamento subjetivo entre Brasil, Ucrânia e Rússia, é o que esta escrita promove, sem medir nem desmentir a distância entre uma Akhmátova e uma Clarice (lado a lado a outras articulações: Hilda Hilst, Adélia Prado, Olga Savary, Marize Castro) – não mais uma viagem pelo “Mesmo” como tantas histórias a contar ou a representar os dias adversos, aqui e alhures; não mais um “poema-clichê de sofrimentos/de poetas perseguidos”. Antes, uma poesia de deslocamentos, que reflete inclusive as condições de leitura de duas grandes escritoras em variados e revezados trânsitos de importância, tentando escapar sobretudo ao intimismo a que sempre são lançadas. Fernando Monteiro não ilustra quem tenha sido Anna ou Clarice. Ele relaciona. Parte de uma imagem a outra, sobrepondo-as, sem atá-las uma à outra. De uma Anna correlata a uma Clarice. Do Recife intercambiável a Tchechelnik Moscou Maceió Paris Pequim ou a que não lugar mais seja – ali onde somem. Na foto como no poema o que se quer abordar são terras desconhecidas. Conectar o que está por vir. Não a paisagem e sim a vida como uma estranha jornada. “Você pode ver numa foto o que não está nela”. Variações e revezamentos do olhar. O conciso. A nuance. O espelho. “Se eu errei ao nascer,/ela errou ao dar a luz./Se eu estou ainda aqui,/ela não está mais”. Ver Anna Akhmátova implica ver o impreciso que se é: episódios imperfeitos, evanescentes de calmaria e indiferença. Ainda que Clarice tenha flertado como jornalista com o mundo insípido da moda, não posou nunca como a mulher de um futuro ideal, utópico, lunar (“Princesa da Lua, por que você voltou?”), senão como a sobrevivente desfavorecida num ambiente de cultura que nem mesmo ainda hoje pode admitir uma “Esparta moderna”. A imagem de uma se conecta a outra, duas (quantas?) replicadas mulheres desmunidas de afeto, proteção, luxo, lançadas ao jogo de se prender e se soltar antes de se esgotarem os prazos. Embaralhadas e sempre dispostas ao combate. Escapar às ratoeiras domésticas da casa (apanhar depois de cozinhar bolos etc.) ou às ratoeiras das vitrines da vida cultural moderna. “Clarice não podia ter saudade/ de dois meses de vida em Tchechelnik,/ na Ucrânia de árvores nacaradas”. De que poderia ter saudade Clarice? “da casa entre movelarias e sebos/vinda da Ucrânia para o coração/deste bairro de esquecidos”, “do centro da cidade onde viveu/a descoberta do mundo no Recife”, “de imigrantes deslocados”? Clarice-criança não tinha como saber que moveria esse mundo morro acima para o lado da modernidade. Essa Clarice de quem temos que ter saudade. Da adolescente que deu a ver a linguagem daí há pouco definida mundo afora como “clariceana”, a que de cara soube escapar ao modo burocrático de lidar com a escrita no espaço público (jornalismo, universidade, diplomacia), onde a mulher ainda ocupa funções anônimas, e ela nos chega muito mais como singularidade a se prorrogar do que como originalidade pueril. Quantas Clarices aí? (“ainda que vivas outra vida, não há saída”). A casa, o sobrado dos Lispector ficou só. Como tende a desaparecer uma outra casa habitada por fantasmas (Volódia, Nikolai, Elena...), onde Akhmátova reforma aqueles versos: “Esta mulher está só” vira: “Esta mulher está no fim”. De que vida Akhmátova poderia ter saudade se perdeu todas de antemão? "A minha vida foi uma roda de enganos". Na roda de azar ela perde tudo e todos. Lev, o filho, que vieram buscar como o pai e o amante sem acusação formal, sem julgamento, para ser morto? Ela própria uma mulher com vontade de morrer, encadeada a tantos outros finais, a coisas que se partem sem conserto algum. Mas não tem escolhas: terá que engendrar a si mesma como poeta e ocupar um lugar nunca antes reservado à mulher na literatura russa. Desenfreada, irreverente, desconcertante – em posição de permanente ataque e afrontamentos, ativa, que, portanto, prejudicou a si própria. Nos espaços codificados da guerra o êxito da mulher se duplica em um fracasso ainda mais profundo. (“tantos poetas mortos,/tudo fazia crer/que algo andou errado/muito errado). A Poesia é um esgotamento que se reveza e ramifica desde o corpo até o poema. Fernando Monteiro o inventa a seu modo – o modo do grande poeta que se põe a desfalecer, ele mesmo, no que escreve. A fadiga de um poema longo, como almejava Mário Faustino e que Monteiro acata, realiza e sai de cena, pois agora que vai escrever sequer pode escovar os dentes. Quede o poeta? Irreconhecível no fedor intenso do livro. Pouco dele resta aí como autor, mas um pedaço generoso como escritor, no livro de uma editora não comercial, de Fundação sem fundos (leia-se: grana), mas de gente atenta e sensível. Não entra nem a gravata, sequer a foto de orelha. Nada se vê como figurações; tudo é Poesia. Amor precipitado que Fernando Monteiro nutre pelo livro que resolveu fazer para ver de perto uma vez mais Anna Akhmátova e mirar a seu lado ("Você pode ver numa foto o que não está nela") Clarice Lispector, os olhos atentos a todos os grandes livros que amou, entre eles um “muito velho”, “de capas vermelhas”, PÉROLAS DA POESIA RUSSA escrito “na lombada desbotada”  nunca deixado para trás.

Anna Akhmátova e Clarice Lispector

NEY FERRAZ PAIVA 

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

ESTAS ÚLTIMAS PALAVRAS AO PÉ DO VESÚVIO


DOCUMENTÁRIO SOBRE CLARICE LISPECTOR


o documentário abordará um dos raros acontecimentos da vida de clarice que segue pouco conhecido do grande público - a estada de clarice por seis meses em belém do pará. nos primeiros dias de janeiro de 1944 ela lança seu romance de estreia, perto do coração selvagem e, recém casada, viaja para belém a caminho de nápoles, na itália, onde acabará por visitar as lavas ainda quentes da última erupção do vesúvio. no filme esse fato se desdobrará como um acontecimento fatídico, pelo gesto da escritora de se virar e olhar para trás como um animal à espreita. para ela, para além da literatura, as fronteiras estão fechadas. e esse gesto acabará por deflagar toda a história.

em belém clarice permanecerá trancada num quarto de hotel no centro da cidade - lê muito e recebe boa parte da crítica feita sobre seu livro. e cartas, muitas cartas, sobretudo de lúcio cardoso. e uma de mário de andrade que se extraviará e no filme expressará mais do que um mistério - a condição de inacessibilidade e ruptura que envolverá a vida e obra de clarice.

o documentário evocará a escritora jovem, iniciante - orfeu desatento e inseguro - mas que já se deixa marcar por uma escrita de subversão. exibirá o cenário literário local, num período que se encaminha para o final do modernismo, onde se destacam bruno de menezes, dalcídio jurandir, francisco paulo mendes, paulo plínio abreu, ruy barata, cauby cruz e haroldo maranhão.

o documentário é uma homenagem aos setenta anos da passagem de clarice por belém - e os setenta anos de publicação de perto do coração selvagem.

ney ferraz paiva

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O POETA E O LANDAU

                                 Rogério A. Tancredo
                  Imagem: Jean Baudrillard


Entre os lançamentos da ótima safra de livros de poesia dos últimos anos – alimentada por editoras “menores” que vão na contramão do mercado editorial – um chama atenção não só pela força e beleza de seus poemas, mas por seu título, falo do instigante Arrastar um landau debaixo d’água, de Ney Ferraz Paiva, lançado em 2015 pela jovem e corajosa editora Patuá. Conhecido por seus títulos que remetem às suas preferências e influências poéticas como Nave do Nada tirado de um verso de Paulo Plínio Abreu (seu conterrâneo), Arrastar um landau debaixo d’água não foge à regra, fora tirado de um poema do francês Henry Michaux. Não vamos nos deter aqui em falar sobre suas preferências – se o faço é apenas como forma de introdução e sim do título curioso (assim como Uma faca só lâmina ou O cão sem plumas) que nos remete a pensarmos o atual, ou seja, o contemporâneo. Se destacarmos do nome do livro a palavra que mais chama atenção nos deparamos com a figura do landau, carro outrora luxuoso, cheio de pompa, que hoje não passa de uma “banheira”, “lata velha” emprestando os termos dos apaixonados por carro, ou de artigo de colecionador para embelezar os salões. Tal qual, o poeta não é diferente do famoso carro, que nos dias atuais, segue encarquilhado, sem uso prático, de serventia de pouco valor, a não ser ornar as estantes cheias de livros não lidos. Isso se pensarmos a palavra landau separadamente, e logo fazendo uma analogia com a figurado do poeta, já daria o que falar, imagine se nos debruçarmos sobre o criativo título Arrastar um landau debaixo d’água aí a coisa começa a ficar interessante porque já não estamos falando de figuras obsoletas, como queiram alguns, mas do fazer poético propriamente dito, do “arrastar” para ilustrar esse fazer.

Todos sabemos que a contemporaneidade se constitui como uma dobra da modernidade por acentuar a dimensão melancólica e desesperada da irmã mais velha. Além disso, podemos notar um afunilamento em relação às exigências profissionais, é uma época marcada pelo pensar prático e objetivo, onde as coisas têm de ter uma função, desconsiderando àquelas que não tem função alguma – como a poesia – mas são o que são e se explicam por si só. Fazer poesia nessa época que não pensa mais o mito como verdade e sim como uma função prática, onde você tem e deve ser o melhor, acaba sendo um grande sacrifício, como matar um leão a cada dia, ou seja, é arrastar um landau debaixo d’água. Quem aceita sacrificar-se assim acaba como um cavaleiro de armadura andando pela cidade cheia de máquinas e arranha-céus. O poeta é o fantasma fora de seu tempo, sob o elmo tem uma visão distorcida e disforme, mais próxima do que chamamos realidade. No poema “A LOUCURA SEM REPOUSO”, título que remete ao sacrifico de escrever, espécie de doença que move o poeta, podemos notar em seus versos como este vê a cidade através do limiar que a razão tenta esconder: [...] a paisagem de uma cidade/ enfermaria a céu aberto/ é feita de carne/ deteriora despedaça separa [...] A cidade, é o palco dos dramas a serem vividos, seus cidadãos vivem sufocados pelas exigências que esta impõe: [...] tosses suores asfixias/ em busca de ar fresco pessoas descem ruas/ mercados rios praças/ uma musculatura louca/ também isso a arte faz/ traz cadáveres à rua/ pra revoar os pássaros do horror ...

A arte serve para pensarmos o agora, o que fora dado, imposto, amplia o que a história tenta diminuir. Precisamos voltar a um ponto de partida para recomeçarmos, se é que existe esse ponto. O contemporâneo – neste caso o poeta – é aquele capaz de ver para além do clarão que nos ofusca, é como nos diz Agamben: “o contemporâneo é aquele que percebe o escuro de seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirigi-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. Arrastar um landau debaixo d’água é estar fora e dentro do seu tempo. Fora porque ainda se escreve poemas apesar das adversidades e exigências impostas pelos novos tempos, e dentro porque aquele que os escreve é capaz de enxergar os males de sua época. Aliás, o tempo inexorável, que a tudo corrói e no qual estamos imersos é um tema constante no livro: acende meu cigarro Augusto dos Anjos/ fim de semana fumo a ruína dos anos/ viro duas páginas (sábado & domingo) / não mantenho mais a casa limpa/ não me alimento não verifico o correio/ você se apressa a me oferecer fogo/ fumo pra escamar o dia o beijo a faísca. Para suportar tanta loucura e doença, além da poesia, temos os vícios, que ajudam a seguir adiante, nesses dias difíceis em “IMAGEM DO VELHO POETA QUE SE EXERCITA COM PESO DE PEDRAS DO MUSEU DE OLYMPIA”, espécie de Ode ao cigarro (companheiro fiel do ato de solidão que a escrita exige) o poeta diz: tenho fumado uns cigarros um pouco de/ tabaco faz eu me sentir menos esquisito/ sem cigarros não consigo escrever aquele/ prefácio nem consigo fazer a barba ficar/ bonito tenho uns amigos que sem fumar/ conseguem ser bons poetas em Curitiba/ em Belém não consigo escrever uma linha...

Debaixo d’água o landau segue falando do peso de se viver o contemporâneo, da luta do poeta para suportar os dias – cheios de angústias que se repetem incessantemente:  era o rádio sintonizado num som aleijado/ era o rádio mergulhado no vômito no sofá/ era o rádio insaciável embriagado censurado/ era o rádio paralisado por um câncer devastador/ era o rádio indo às montanhas respirar o ar da vida [...] E dentro dele estão todos e niguém, principalmente aqueles que se retiraram para dar voz a outros como Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Ana Cristina C,  Bukowski, Fernando Pessoa, Adília Lopes, Silvia Plath, Anne Sexton, Francesca Woodman, Frank Gehry... personas que através de sua arte propunham outra coisa, não esta que nos arrasta para um fim desconhecido, nebuloso. Igualmente a eles, Paiva se coloca contra a mesmice contemporânea com uma força poética de rara beleza que questiona, insurge-se contra o presente. Em tempos onde tudo está sujeito a um mercado, cheio de “Escritores” que produzem para agradar a X e a Y, o autor vai contra esse movimento “por uma literatura menor”, para viver submerso na essência da poesia, no subterrâneo da linguagem.   


















   

terça-feira, 22 de setembro de 2015

ARRASTAR UM LANDAU DEBAIXO D'ÁGUA


UM HORIZONTE PROVÁVEL: 

AUTOMÓVEIS SUBMERSOS

Redemoinhos de vida se alastram.
A noite ferve o mundo.
Imergir para outros trânsitos. A imagem do automóvel submerso funciona como umbral, enlace para curvas sem consolo, talvez mais, para os lados, para o subterrâneo. Finalmente evadir-se dos pontos. Pontos fixos embaraçam as linhas, obliteram ondas. É preciso escapar do foco, sobretudo dos mapas e mapas do mesmo. Desenhando uma outra cartografia, Ney Ferraz Paiva nos diz sem receios: “escrever é não ter chaves/ dos mares portos ilhas/ périplo a esmo no Pacífico”. A poesia de Ney Ferraz Paiva se desloca num ciclo vicioso cuja persistência equivale a uma vontade de despertencimento, força [in] transitiva que não cessa de se perder, acontecimento que desata num desejo escapadiço, movimento no qual escrever se consagra num erro essencial. Sim, o jogo se deflagra ainda na literatura, é disso que se trata, de escrever como questão do escrever, demanda da escrita. Demanda que na poesia de Paiva acontece com exigência de uma experiência de descriação, que consiste em subverter os pontos, des-criar o real, ser mais sensível do que o fato que ‘aí’ se posta [a escrita vigente] e imergir para as bordas de um horizonte outro, da escrita na sua possibilidade plural. Ou seja, da escrita como deslizamento sem fim, imanente à liberdade selvagem do escrever. É assim que a poesia se efetua em Arrastar um landau debaixo d’água: fértil de encontros, cesuras, derivações, se arrastando “contra maré”, mas ainda “na correnteza”. Portanto, na contramão, mas resvalando numa linha (de possível) que se desdobra num duplo processo de recusa – do galardão e do senso comum – numa negação que afirma outras aberturas. Já não se trata do possível como mero campo de possibilidades, fortuito, gratuito, mas o possível criado necessariamente, mesmo que a partir de uma impossibilidade. É a poesia irrompendo numa situação de combate: “arrasto um Landau debaixo d’água/ contra maré na correnteza/ não me agarro a mais nada/ o vento é meu desafeto/ me afoga o quanto pode/ o cérebro os intestinos/ num câncer que vai metamorfoseando/ enferrujando secretamente/ mas muito de propósito/ [...] um Landau afogado vai passando rasteiro/ o passeio que homem algum jamais teve/ – suave amável mórbido/ Landau para doentes/ levados para fora do alcance”. “Suave amável... Landau para doentes”. Essa passagem não deixa de ser uma imagem que remete ao ‘filósofo vitalista’, aquele para quem a compreensão da doença se amálgama a uma potência de vida, a algo que entende a doença não como inimiga, pois a doença em si, segundo o filosofo, não traz a sensação da morte e sim aguça a vontade da vida. Mas quem são os doentes? São aqueles marcados por uma força, os “grandes viventes”: são artistas, poetas, pensadores, corpos sensíveis, cujas vidas se atravessam na fronteira entre doença e saúde, oscilando numa alternância entre a potência e a debilidade. E quem são? Fotógrafas, Poetas, Reclusos, Dramaturgas, Perdedores, Escritores, Suicidas, Suspeitos, Náufragos, Desertores; uma raça forte, poderosa constelação: “todos aqueles que deixaram a sanidade para trás”. O Landau e seus doentes, tal como a nau dos loucos, se arrastam para fora do alcance da vida ordinária, para dentro de outra compreensão da vida, sem subterfúgios, total, fora dos dispositivos de controle, fora do alcance dos poderes, dentro dos abismos da experiência literária. Experiência oscilante entre escrita e furor, engendrada sob o signo de uma força bruta – força não corpórea (que age contra o corpo), cujos enunciados embaralham os contornos do mundo, desfiguram identidades, desmantelando as fronteiras e os códigos literários, alcançando imagens das quais o reflexo causa uma sensação de inquietação: “O poema é cama para transportar alguém ferido ou morto/ arte pode ser velha e ter algo de extrema violência e revolta/ [...] rogai pela carne crua da noite quebrai meus ossos ao amanhecer”. Na poesia de Paiva prevalece um movimento no qual a experiência de escrever não é ainda senão uma violência que tende a se abrir e a se fechar. Acontecimento que se abre, mas que tende a se retirar para o infinito de outras margens, num retorno excessivo. Nessa esfera, a poesia torna-se então a intimidade em luta por momentos irreconciliáveis, experiência dilacerada entre a efetuação da obra como origem e a fratura onde ela reina como ilimitada. É, portanto, a essa direção [o ilimitado] que a poesia de Paiva nos arrasta e é precisamente a essa direção que ela se desloca. Arrastar um landau debaixo d’água: momento solene cuja estranheza angustiante todo aquele que atravessá-la, de algum modo, o reconhecerá. Não se trata da aflição diante da obra, mas o desassossego diante daquilo que se arrasta com a obra: o ingovernável, fotogramas do imperceptível, o jogo das margens áridas. São experiências possíveis senão por um intenso e exaltante movimento da poesia.



Nilson Oliveira, Prefácio, Arrastar um landau debaixo d'água
Capa: Leonardo Mathias

domingo, 30 de agosto de 2015

MAX MARTINS
Ensaio fotográfico

       
       Já então é tudo pedra/ os dias, os desenganos.
 

Ney Ferraz Paiva 


quarta-feira, 1 de julho de 2015

Em louvor do Espanto

Nada nos espanta porque nada é novo. Não estamos jogados no meio das coisas, mas no meio de instrumentos. Esses instrumentos são, no fundo, prolongamentos e projeções do nosso próprio eu. As máquinas são nosso braço prolongado, os veículos nossas pernas prolongadas, e o mundo em geral é uma projeção do nosso eu sobre a superfície calma e abismal do nada. As feras que ainda aparecem são cachorros projetados por nós para guardar nossas casas. Os trovões que ainda trovejam são movimentos de ar projetados por nós para carregar nossos aviões em voo fútil. As árvores que ainda brotam são matéria-prima projetada por nós para ser transformada em instrumento. E o “outro” que compartilha conosco esse mundo instrumental é, ele próprio, instrumento, sendo fornecedor ou consumidor, parceiro ou concorrente. Nossa atitude diante desse mundo dos instrumentos é a atitude do déjà vu, a atitude do “já vi tudo”. Os instrumentos não nos advêm da penumbra misteriosa, não são venturosos. Pelo contrário, estão aqui, diante da nossa mão para servir-nos. Tomados de nojo dessa servilidade somos nós que saímos em busca desesperada da aventura, desautenticando, por esse nosso movimento deliberado, a própria essência da natureza, que é um “advir”, e não um “ser buscado”. Essa nossa busca inautêntica de aventura, que é no fundo uma fuga do tédio, e que caracteriza tão bem a situação atual, é já uma tentativa fracassada de responder à pergunta “por que não me mato?”. A transformação do mundo espantoso das coisas milagrosas no mundo nojento dos instrumentos tediosos é uma transformação lenta. Levou milênios para realizar-se e ainda não está completa. Ainda restam, na situação atual, grandes províncias “subdesenvolvidas”, grandes ilhas do maravilhoso a flutuar no oceano dos instrumentos. Mas, protegidos como somos pela muralha dos instrumentos, não nos ameaçam esses restos de um mundo ultrapassado. E embora continuemos avançando contra essas regiões mal exploradas com rapidez impiedosamente acelerada, não nos seduz esse avanço, já lhe conhecemos o resultado: transformação do maravilhoso em tedioso. Nesse sentido, sim, podemos dizer que o processo de transformação do espanto em tédio está completado, por assim dizer por antecipação do resultado. Ainda resta muito a fazer, mas já não vale a pena fazê-lo. É nesse clima que Camus formula a sua pergunta, e é nesse clima que grande parte da nova geração vegeta.

[...].

Creio que somos uma geração em transição, e que assistimos ao fim de uma época e ao surgir de outra. A Idade Moderna transformou a natureza em parque industrial e tornou-a tediosa. Esse tédio de fin de siècle nos faz perguntar: “por que não me mato?”. Mas sentimos as dores de parto de uma Idade nova. A natureza esvaziada, e os métodos de sua investigação, como ciência e tecnologia, tornaram-se desinteressantes existencialmente, mas surge um fascínio novo, ainda não articulável, mas existencialmente sorvível. O perigo desse novo fascínio reside no seu possível antiintelectualismmo, e a tarefa da nossa geração é intelectualizá-lo. É uma tarefa nobre, e nela reside, ao meu ver, a resposta à pergunta: “por que eu não me mato?”. É uma tarefa espantosa. Aristóteles diz: Propter admirationem enim et nunc et primo homines principiabant philosophari (É pelo espanto que os homens começaram a filosofar antigamente e hoje em dia). Enquanto esse espanto da filosofia persistir, não há motivo para matar-se.




Vilém Flusser – Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 25 de abril de 1964.
Colagem Ney Ferraz Paiva

sábado, 23 de maio de 2015

Max Martins, Poeta

Eu era dois, diversos?
Guimarães Rosa


Max Martins sou eu, o Max Martins que há em mim. Mas não vou tomá-lo por um espelho, sequer uma máscara. Ele é a feição pura de um ícone, ainda que tenha tido a face desfigurada pelo tempo e pela doença. Em sua obra, não há encenação nem representação: Max, como Poe, declara guerra. E nem mesmo será correto trazer o modernismo a mais esta peleja. Como movimento literário o modernismo não foi exatamente imprescindível a ele. Max é, antes de tudo, um poeta da modernidade. Porque no combate suas armas vão se tornando progressivamente menos angélicas do que daquele, uma vez que os demônios maus não cessam de transgredir. Max haverá de escapar às poéticas relacionadas ao modernismo – entre ele e elas haverá direções opostas, guinadas, reviravoltas. Decorrem rebeliões não só da forma como da invenção. Enquanto um se estratifica como evento histórico, o outro se torna estranho aos modos e práticas dos grupos e se lança ao alcance imprevisível de uma poética que se entregará às aberrações. O atravessar do poeta a uma desfiguração do “eu” como essência e representação, por estar, na verdade, em busca da singularidade (casualidade, diferença) nos jogos de acaso e azar com a linguagem. Desde as más influências, observadas a partir da proximidade com a obra de Mário Faustino, Robert Stock, Henri Miller, expressas em Max já na publicação do seu segundo livro, Anti-Retrato (1960). Max confirma Barthes: "A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro." Ele sempre tentará uma aproximação imanente com as forças intensas da poesia e da arte. No que se esquivava, quando dizia não, exercitava a espera, a maturação, e almejava uma existência própria para chegar, a seu modo, à inevitável conclusão. Dão-se datas ao poeta, sobretudo a partir deste livro, porque com ele virá a obra que fará submergir definitivamente o autor. Colocar-se entre parêntesis. Subscrito. Tornar-se infactível. Nós que estivemos junto a ele na maturidade e na velhice, tudo que se pode dizer aqui talvez não passe de uma descrição inverossímil, como tantas a seu respeito. Nós que estivemos juntos na literatura e na amizade pela poesia. E somos ainda seus leitores, esses seres aos quais ele tentava se esquivar, não dar pistas. Fugir às perguntas, curiosidades, aplausos, sobretudo aos elogios. Reservado, recolhido, cético. Porque como poeta, nada parecia lhe fazer falta, entregue ao lema da criatividade e da novidade imprevisíveis. "Sê criativo o dia todo/ Te empenha o dia todo cauteloso/ voa/ mesmo hesitante sobre o teu malogro". Desde os anos 1940, quando escreve os poemas de O Estranho (1952), até a sua morte (2009), completam-se quase 70 anos de atividade com a palavra. Uma jornada longa e cheia de cintilações: poemas que ecoam poemas e não se desgastam, nem malogram – mas intensos, ascendem.






Ney Ferraz Paiva

quarta-feira, 11 de março de 2015


Cacaso ao acaso


Fui amigo do Cacaso o Antonio Carlos de Brito
Lá de Uberaba que nem eu & que morou
Encostadinho à fazenda do meu avô
Levávamos uma vida excitante de moleque
Depois ela foi se abrindo como um abcesso
Dele li dois ou três livros deixe-me ver: “Mar de Mineiro”
“Lero Lero” “Segunda Classe” “Beijo na Boca” “Jogos Florais” –
Eita que foram cinco! 
“Palavra Cerzida” preferi não ler por causa do prefácio do 
José Guilherme Merquior de quem sempre fomos inimigos – 
Tem sujeitos que pelejam sempre contra certas coisas
De dentro de seu pequeno ringue iluminado
O mundo & os livros ficam sem conserto
Dizque tem rua de nome Cacaso em Jacarepaguá
Isso não é em Uberaba não é no Rio de Janeiro
Convivemos mais pacificamente com ditadores do que com poetas
Uberaba & os críticos teimam em ficar do jeito que sempre foram





Ney Ferraz Paiva


Jardim & Cemitério

Não gosto muito de citá-lo, nem penso que a leva contemporânea de escritores e poetas entenda-se & desentenda-se com o verbo dentro do que se consagrou chamar de "período literário" – agora as imagens fortes de Antonio Candido ainda perduram & prosperam pelos cemitérios-parque da literatura espalhados por aí, vejam: "Cada período literário é ao mesmo tempo um jardim e um cemitério, onde vêm coexistir os produtores exuberantes da seiva renovada, as plantas enfezadas que não querem morrer, a ossaria petrificada das gerações perdidas."



Ney Ferraz Paiva
Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira, Editora da USP/Editora Itatiaia, 1975.

Lei Semear o quê?


Entre os critérios específicos para análise dos projetos na área de Literatura submetidos à Lei Semear consta, cito: "valorização de abordagens de temáticas históricas ou cotidianas do cenário paraense, independente do estilo artístico escolhido". Penso que se constitui uma exigência descabida e anacrônica solicitar que o cenário poético (inventivo, criativo, afetivo) dos poetas que atuam em Belém se restrinja (ou seja restrito por força de lei) ao "paraense" - as temáticas históricas e/ou cotidianas estão fortemente marcadas na literatura contemporânea, sim, mas elas nem sempre se restringem a um lugar, o lugar inclusive pode ser fictício, irreal, recriado ou nem constar, escapar (não por indiferença ou despeito mas por opção estética) como fizeram, por exemplo, Paulo Plínio Abreu, Cauby Cruz, Mário Faustino, Max Martins, que atuaram e desenvolveram projetos poéticos distintos, num período muito próximo e na mesma cidade - espaço no qual reinventaram de forma diversa o projeto espiritual de uma época.


Max Martins

Ney Ferraz Paiva