o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 9 de setembro de 2012

"Quando todos calam", performance, Berna Reale


A LOUCURA SEM REPOUSO

Toda doença pode ser chamada doença da alma.
Novalis

aqui sobre a mesa à nossa
frente está Berna Reale
a paisagem de uma cidade
enfermaria a céu aberto
é feita de carne
deteriora despedaça separa
arrasa como uma sombra no
pulmão
tosses suores asfixias
em busca de ar fresco
pessoas descem ruas
mercados rios praças
uma musculatura louca
também isso a arte faz
traz cadáveres à rua
pra revoar os pássaros do
horror
deixar falar os balbucios do
medo
os braços da morte não estão
mais
cruzados diante do espectador
aonde essa doença vai dar
sem penicilina & cânfora
a um sem-número de nãos?
a uma dor mais intensa?
aqui sobre a mesa à nossa
frente está Berna Reale
o corpo nu sem respiração
ligado à loucura & à morte
ainda assim quer viver
absorto em seu mal
quer seguir respirando
aspirar o ar necessário
pra nunca mais precisar
voltar à superfície


Ney Ferraz Paiva, Arrastar um landau debaixo d'água

sábado, 8 de setembro de 2012

deixo que a sombra siga seu caminho


fria como sempre sobre o travesseiro
a poesia vira & dorme seus pesadelos

não me deixa apagar a luz

mas também não posso ler
palavras suspensas no teto
como um livro ou uma tela
está doente cospe sangue
seus olhos devoram a luz

deixo que a sombra siga seu caminho
a face morta do mundo me comprime




ney ferraz paiva

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

anne escreveu um bilhete & saiu
está farta do gás carbônico dos
meus livros: "preciso respirar"



Anne Sexton

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

almocei à tarde com Robert Lowell
fartas porções de cansaço & silêncio
por toda a casa pudemos ouvir o mar


Robert Lowell

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

nadei hoje cedo com Anne Sexton
fiz o que o médico recomendou
"deixe os livros nada um pouco"


Anne Sexton


terça-feira, 4 de setembro de 2012

Prefácio, Michel Foucault



Deveria escrever um novo prefácio para este livro já velho. Confesso que a ideia não me agrada, pois isso seria inútil: não deixaria de querer justificá-lo por aquilo que ele era e de reinscrevê-lo, tanto quanto possível, naquilo que está acontecendo hoje. Possível ou não, hábil ou não, isso não seria honesto. Acima de tudo, não seria conforme tudo aquilo que deve ser, com relação a um livro, a reserva daquele que se escreveu. Um livro é produzido, evento minúsculo, pequeno objeto manejável. A partir daí, é aprisionado num jogo contínuo de repetições; seus duplos, a sua volta e bem longe dele, formigam; cada leitura atribui-lhe, por um momento, um corpo impalpável e único; fragmentos de si próprio circulam como sendo sua totalidade, passando por contê-lo quase tudo e nos quais acontece-lhe, finalmente, encontrar abrigo; os comentários desdobram-no, outros discursos no qual enfim ele mesmo deve aparecer, confessar o que se recusou a dizer, liberta-se daquilo que, ruidosamente, fingia ser. A reedição numa outra época, num outro lugar, ainda é um desses duplos: nem um completo engodo, nem uma completa identidade consigo mesmo

Para quem escreve o livro, é grande a tentação de legislar sobre todo esse resplandecer de simulacros, prescrever-lhes uma forma, carregá-los com uma identidade, impor-lhes uma marca que daria a todos um certo valor constante.

Sou o autor: observem meu rosto ou meu perfil; é a isto que deverão assemelhar-se todas essas figuras duplicadas que vão circular com meu nome; as que se afastarem dele, nada valerão, e é a partir de seu grau de semelhança que poderão julgar do valor dos outros. Sou o nome, a lei, a alma, o segredo, a balança de todos esses duplos.

Assim se escreve o Prefácio, ato primeiro com o qual começa a estabelecer-se a monarquia do autor, declaração da tirania: minha intenção deverá ser seu preceito, leitor; sua leitura, suas análises suas críticas se conformarão àquilo que pretendi fazer; entendam bem minha modéstia: quando falo dos limites de meu empreendimento, pretendo limitar sua liberdade, e se proclamo a sensação de não ter estado à altura de minha tarefa é porque não quero deixar-lhe o privilégio de contrapor a meu livro o fantasma de um outro, bem próximo dele porém mais belo que ele. Sou o monarca das coisas que disse e mantenho sobre elas uma soberania eminente: a de minha intenção e do sentido que lhes quis atribuir.

Gostaria que um livro, pelo menos da parte de quem o escreveu, nada fosse além das frases de que é feito; que ele não se desdobrasse nesse primeiro simulacro de si mesmo que é um prefácio, e que pretende oferecer sua lei a todos que, no futuro, venham a formar-se a partir dele. Gostaria que esse objeto-evento, quase imperceptível entre tantos outros, se recopiasse, se fragmentasse, se repetisse, se simulasse, se desdobrasse, desaparecesse enfim sem que aquele a quem aconteceu escrevê-lo pudesse alguma vez reivindicar o direito de ser seu senhor, de impor o que queria dizer, ou  dizer o que o livro deveria ser. Em suma, gostaria que um livro não se atribuísse a si mesmo essa condição de texto ao qual a pedagogia ou a crítica saberão reduzi-lo, mas que tivesse a desenvoltura de apresentar-se como discurso: simultaneamente batalha e arma, conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetível.

É por isso que, ao pedido que me fizeram de escrever um novo prefácio para este livro reeditado, só me foi possível responder uma coisa: suprimamos o antigo prefácio. Honestidade será isso. Não procuremos nem justificar esse velho livro, nem reinscrevê-lo hoje; a série dos eventos à qual ele pertence, e que é sua verdadeira lei, está longe de estar concluída. Quanto à novidade, não finjamos descobri-la nele, como uma reserva secreta, uma riqueza inicialmente despercebida: ela se fez apenas com as coisas sobre ele ditas, e dos eventos dos quais se viu prisioneiro.

 Mas você acaba de fazer um prefácio!
 Pelo menos é curto.




Michel Foucault, “História da Loucura”, 1972
tradução José Teixeira Coelho Neto
Perspectiva, 2010, 9 ed.

O POEMA COMO UMA CÂMERA QUE SE APROXIMASSE 

PARA DAR UM CLOSE


oficina de poesia contemporânea para jovens poetas
com Ney Ferraz Paiva


RESUMO: O espaço da literatura na atualidade dispensa as influências totalizantes e apaziguadoras de outrora: de uma Cecília Meireles a um Carlos Drummond de Andrade. A poesia contemporânea movimenta-se pelas conexões com os canais abertos na internet, dos blogs e das revistas eletrônicas. Ela quer outro testemunho de linguagem e de escrita, mais instantânea e fragmentada – não só circular pelas ruas, ir à praça e ao shopping. Os poetas se lançam inteiros num mar de sobressaltos para escrever poemas que até então não atravessariam a escuridão tumular das gavetas. Muito próximos das redes e das selfes, experimentam a superexposição - simulacro e simulação do tempo e dos seus resíduos. Algo que o escritor guatemalteco Augusto Monterroso antevê num conto de apenas 37 letras: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. 





Período 10 a 14 de setembro 2012
Horário 15 as 18 horas
Inscrições abertas e gratuitas


INSTITUTO DE ARTES DO PARÁ – IAP
Praça Justo Chermont, 236, Nazaré
 Belém-PA, (91) 4006-2920



segunda-feira, 3 de setembro de 2012

ESTAÇÃO PARA LANÇAR-SE AO MAR



perdi o mês de agosto
como vou perder setembro
caiu-me de meu bolso
em voltas pelo mundo
na enchente de certo rio
no salto & sobressalto
no beco naquela noite –
na chuva na imundície
desnudo de agosto
setembro me reveste
igual a um morto
que o tempo debelaria





ney ferraz paiva
paulo ponte souza

sábado, 1 de setembro de 2012

CARTA DE EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO à organização do "Seminário vômito e não: práticas antropoêmicas na arte e na cultura"

Essa semana, uma decisão judicial paralisou a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. A dimensão simbólica e material da obra não pode ser menosprezada, já que ela cristaliza um projeto político, econômico e antropológico desenvolvimentista (ou melhor, crescimentista) e que consiste em destruir a multiplicidade sócio-ambiental das formas de vida 

em nome de um padrão de riqueza etno- e antropocêntrico: a conversão de todo fluxo em energia, de todo curso em recurso, de toda diferença em poder. Uma das acionárias da Norte Energia, responsável pela construção de Belo Monte, é a Vale, empresa com um histórico lamentável de desrespeito aos direitos humanos e de devastação ambiental, tendo passado, além do mais, por um vexaminoso processo de privatização, ao mesmo tempo em que projeta em seu horizonte futuro diversos projetos que virão ampliar esse rol nefasto de feitos. Não por acaso, a Vale recebeu o “honroso” prêmio de “Pior Empresa do Mundo” esse ano. Assim sendo, espantamo-nos enormemente ao saber que a Vale — bem como as Organizações Globo, conhecidas pelo seu departamento de censura interna durante a Ditadura militar e suas recorrentes alianças com os donos do poder do turno — patrocina o seminário Vomito e não: práticas antropoêmicas na arte e na cultura, para o qual fomos convidados. Em primeiro lugar, porque nunca fomos informados sobre tais patrocinadores, dos quais só tivemos notícia hoje (ontem) ao vermos o material de divulgação do evento. Mas, acima de tudo, porque não é possível compactuar com as práticas de tais empresas, especialmente em um seminário que se propõe a discutir a antropofagia oswaldiana, uma outra concepção de vida e mundo (além de uma prática artística) baseada nas cosmogonias e modos de vida ameríndios, diversa daquela gerida pelo que Oswald de Andrade chamou de “conúbio do Capital, do Oportunismo e do Terror”, conúbio materializado, inter alia, por corporações como a Globo e a Vale. Não será um total contrassenso? Esperemos que seja apenas isso, e não uma triste e reveladora convergência, uma vez que a proposta do seminário insinua uma insuficiência da antropofagia e sugere, no lugar desta, pensar a antropoemia, aquela prática que exclui pela inclusão, que impõe um modo de vida pela exclusão de todos os outros, que busca eliminar até mesmo toda possibilidade de modo de vida — uma prática que, como os zumbis dos filmes hollywoodianos, tenta nulificar toda alteridade em nome do mesmo (do morto-vivo). Esperemos, de fato, que seja apenas um total contrassenso. Mas de qualquer forma, não podemos participar dele.








Eduardo Viveiros de Castro
imagem: Marco Aresta
Nos dias que antecederam o início da guerra do Iraque, Colin Powell, secretário de Estado norte-americano, ao discursar na ONU, determinou-se que se cobrisse com uma cortina uma réplica de "Guernica", ali instalada. A ONU está longe de ser uma instituição cultural e artística (a menos que se fale da arte das guerras), mas não raro as próprias instituições culturais não fazem mais do que isto: correr a cortina sobre a obra de arte. No mundo clássico a arte está nas ruas. Ela fala  nas ruas aos passantes. Dispensa críticos, curadores, especialistas. Não há ainda formas de mediar a individuação. Todos sabem como isso tudo muda e chega-se até aqui - à bilheteria. Ao espaço fechado e controlado dos museus, bibliotecas, teatros, galerias. Que mais do que dizer o deve ser visto, escolhem, elegem, disseminam. Vivemos as indiferenciações dos editais, das leis de patrocínio, dos prêmios de toda ordem. Vejam o retrospecto dos que os vencem e se perceberá o engodo da diversidade e da variação dos regimentos - os louros passam de um a outro e voltam entre eles. Explica-se aos que ainda não entenderam como tudo se dá: são sempre os mesmos, numa repetição que arromba a todos a percepção e os sentidos. Como diz Deleuze, "repartimos o espaço fixo entre os sedentários, segundo demarcações e cercados". Os panos de fundo e as cortinas "promovem" as invariações de cena. A repetição das falas e das vozes imperiais dos mestres de cerimônia - à parte o gracejo, o riso amarelo, os nervos medicados. Todos sabem como se chegou a isso. À magia dos olhos que se cerram.



ney ferraz paiva


quarta-feira, 29 de agosto de 2012

"Eu a trouxe a Devon. Eu a trouxe para minha terra dos sonhos." (Ted Hughes)


Ted Hughes com Frieda e Nicholas em Devon.

"Eu sou, eu sou, eu sou" Sylvia Plath, The Bell Jar




Sylvia, Frieda e Nicholas, Devon, 1962


terça-feira, 28 de agosto de 2012

aulas de equitação com sylvia plath

você esperava vida longa em Devon
apaziguava crianças abelhas livros  
datilografava     enviava     poemas
não precisava de rimas mas de selos
atravessar a cavalo  paisagens recém-
 brotadas em Londres
sair da estrada ter que morrer uma vez em cada década
em disparada oh Atena as retorcidas rédeas da urgência
defensora      protetora     como foi a Ulisses
cavalgar oh deusa cavalgar de uma maneira
que transgrida estilos        moldes inertes
palavras colocadas de saída já no desvio

a morte    agora    ficou pra trás
entranhada numa    vegetação enganosa
livros não dizem nem cartomantes gregas
agamêmnon ou ésquilo  não deram prova
sinal realmente claro  –  pistas ou rasuras
lacrado em sigilo todo destino
o tempo rigorosíssimo omitiu
chegar   onde   quer que seja
preparar-se      pros enganos
areia    transe    rastro   exílio  

Sylvia Plath deixou Devon e foi para Londres em dezembro de 1962.
Ted volta dois meses depois da morte de Sylvia, para a casa que ela
amava, para morar com Assia Wevill. Anos depois, em 1988, o funeral de
Ted foi realizado na igreja de São Pedro, ao lado da propriedade.
"Fumegantes, névoas espirituosas habitam este lugar./
Separada da minha casa por uma fileira de lápides./
Eu simplesmente não consigo ver onde estou para chegar."
(Sylvia Plath, "A Lua e o Teixo")

ney ferraz paiva

sábado, 25 de agosto de 2012

30 de Agosto, às 19h, o projeto SENDAS (pontos & fugas da linguagem) reinicia suas atividades com a palestra "Como se nasce numa ilha deserta?" do filósofo Eduardo Pellejero - seguida de lançamento da plaquete.

finalmente um filósofo-geógrafo em Belém com o "impulso" de falar das ilhas - separados, isolados em Belém sonhamos os recomeços, os reingressos, mas a que lugares? guiados por quem? financiados a que preço?...

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

eu queria estar com vocês hoje

ganhei coragem pra dizer a ela
 não gosto de cindy sherman
prefiro otto stupakoff ou larry clarck
por uma    razão bem simples
o mundo do homem em geral
tem menos constrangimentos
eles se dizem homens   & são
 o que anelam ser

mulheres se põem a discutir
 personagens a que se mesclam
auto-incluindo interioridades
dramas cenas de todo tipo
 brutos disfarces entre nós

eu prefiro  francesca woodman
revoluteando o  corpo cada vez
 mais     depressa
morta na sala: simples fácil alegre
ela se aproxima faz cintilar a cena
por danças metáforas em conexão
parece querer  estar comigo hoje
arfa precipita-se contra a parede
tenta    vencer    pela   velocidade
 a dor
vê-se a câmera mexer tensão dos
 corpos à maneira do teatro de artaud

depois dela nenhuma mulher pode
 dizer “eu sou fotógrafa”
sem conhecer a bílis &
 os rumores do gesto
sua espiral muito louca

sem aspirar ser cinema
sem soletrar literatura




ney ferraz paiva
imagem: francesca woodman
A Guerra de Dríade
ou
Volta a ser Eucalipto

O enorme cão abriu os olhos,
deu um salto e arqueando o dorso negro,
bem plantado em suas quatro patas,
uivou com uivo interminável:
que via com seis olhos injetados,
seus três focinhos contra quem ganiam?
via uma nuvem prenhe de centelhas,
via um par de olhos, via um gato montês,
o gato caiu sobre o cão,
o cão derrubou o gato,
o gato arrancou um olho ao cão,
o cão se tornou um ladrido de fumaça,
a fumaça subiu ao céu,
o céu se tornou tempestade,
a tempestade baixou armada de raios,
o raio incendiou o gato montês,
as cinzas do gato se espalharam
entre as quatro esquinas do universo,
o quarto se converteu em Saara,
soprou o simun e me abrasei em seu hálito,
convoquei os gênios da água,
o trovão rodopiou no terraço,
quebraram-se os cântaros de cima,
choveu sem parar durante quarenta relâmpagos,
a água chegou ao céu do teto,
no vértice da crista tua cama balouçava,
com os lençóis armaste um velame,
de pé na proa de teu esquife instável
tirado por quatro cavalos de espuma e uma águia,
uma chama ondulante tua cabeleira elétrica,
levantaste a âncora, negaceaste o temporal
e te fizeste ao mar,
                                        tua artilharia
disparava de estibordo,
desmantelava minhas premissas,
fazia em pedaços meus conseguintes,
teus espelhos ustórios
incendiavam minhas convicções,
recuei para a cozinha,
rompi o cerco no porão
escapei por um esgoto,
no subsolo achei tocas,
a insônia acendeu suas velas,
sua luz díscola iluminou minha noite,
inspirações, conspirações, imolações,
com fúria verde, uma chamazinha iracunda
e o maçarico de “vais me pagar!”,
forjei um punhal de misericórdia,
me banhei no sangue do dragão,
saltei o fosso, escalei as muralhas,
espreitei o corredor, abri a porta,
tu te olhavas no espelho e sorrias,
ao ver-me desapareceste num lampejo,
corri atrás dessa claridade desaparecida,
inquiri a lua de cristal do armário,
espremi as sombras da cortina,
plantado no centro da ausência
fui estátua numa praça vazia,
fui palavra fechada num parêntese,
fui agulha de um relógio parado,
fiquei com um punhado de ecos,
dança de sílabas fantasmas
na cova do crânio,
reapareceste num resplendor súbito,
levavas na mão direita um sol diminuto,
na esquerda um cometa de cauda vermelho-romã,
os astros giravam e cantavam,
ao voar desenhavam figuras,
se uniam, separavam, uniam,
eram dois e eram um e eram nenhum,
o dúplice pássaro de luz
aninhou em meus ouvidos,
queimou meus pensamentos, dissipou minhas memórias,
cantou na jaula do cérebro
o solo do farol na noite oceânica
e o hino nupcial das baleias,
o punhal floresceu,
o cão de três cabeças lambia teus pés,
o espelho era um arroio reprimido,
o gato pescava imagens no arroio,
tu rias no meio do aposento,
eras uma coluna de luz líquida,
Volta a ser eucalipto, disseste,
o vento agitava-me a folhagem,
eu calava e o vento falava,
murmúrio de palavras que eram folhas,
verdes cintilações, língua de água,
estendida ao pé do eucalipto
tu eras a fonte que ria,
vaivém das ramagens sigilosas,
eras tu, era a brisa que voltava.


Octavio Paz, de "Arbol adentro", 1987
tradução: Haroldo de Campos
imagem: Grete Stern