o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 16 de setembro de 2012

Uma criança

Em pensamento, minha mãe montava a casa para seus pais. Isso dá uma biblioteca magnífica, disse ela. De fato, era uma biblioteca magnífica aquela em que, já poucas semanas depois de pago o adiantamento do aluguel, e graças a minha mãe e à mudança para ali de meus avós, se transformou o cômodo da casa de Ettendorf que dava para o sudeste. Com um adiantamento pago pelo editor, um carpinteiro foi incumbido de construir o que meu avô projetara. Um caminhão de livros e manuscritos estacionou diante da casa e as estantes se encheram. Desde o início da juventude, desde a Basiléia, como sempre ele dizia, meu avô juntava livros, não tinham dinheiro, mas cada vez um número maior de livros. Milhares deles. No escritório da cabana do Mirtel não havia lugar para eles, que, em grande parte tinham sido abrigados no sótão. Agora, as paredes do novo escritório em Ettendorf estavam lotadas. Eu nem sabia que tinha juntado tanta riqueza intelectual, disse ele, e tanta pobreza também. Hegel, Kant, Schopenhauer eram nomes que eu conhecia e que para mim sempre haviam ocultado enorme mistério. E Shakespeare, então!, disse meu avô. São luminares, inatingíveis. Sentado ali, ele fumava seu cachimbo, tinha sido melhor eu não ter me matado, mas esperado por ele, disse a mim mesmo. Estávamos prestes, a partir de Ettendorf, a descortinar um novo paraíso para nós, como o de Seekirchen, o fato de ser agora um paraíso bávaro, e não austríaco, já não incomodava. A lembrança de Seekirchen e, no tocante ao meu avô, a de Viena continuavam a ser fundamentais. Mas pouco a pouco a transição para o idílio bávaro se completou com sucesso. Teve lá suas grandes vantagens. Decerto a Baviera era católica, arquicatólica, e nazista, arquinazista, mas como na região em torno do Wallersee, estava ali em terras pré-alpinas, e portanto inteiramente profícuas às intenções do meu avô; seu pensamento, ao contrário do que se temia, não foi sufocado, mas ganhou asas, como se verificou mais tarde. Ele trabalhava com ímpeto maior do que em Seekirchen e afirmava ter, de fato, entrado agora em sua fase decisiva como escritor, alcançara determinado patamar filosófico. Eu não sabia o que aquilo significava. Sempre se dizia apenas que ele estava trabalhando em seu grande romance, e minha avó sublinhava essa observação constantemente sussurrada dizendo vai ter mais de mil páginas. Para mim era um completo mistério como uma pessoa podia se sentar e escrever mil páginas. Que escrevesse cem já me era totalmente incompreensível. Por outro lado, ainda ouço meu avô dizendo que tudo que escreve é besteira. De onde, então, ele tinha ido tirar aquela ideia de escrever mil páginas de besteira? Ele sempre tinha ideias as mais incríveis, mas sentia que elas eram o motivo do seu fracasso. Fracassamos todos, dizia sempre. E esse é também o meu pensamento central constante. Naturalmente, eu não imaginava o que era fracassar, o que isso significava ou podia significar, embora eu próprio atravessasse um processo rumo ao fracasso, ininterrupto, fracassava inclusive com incrível consistência: na escola. Meus esforços de nada adiantavam, minhas tentativas sempre renovadas de me corrigir morriam ainda no nascedouro. Os professores não tinham paciência e me afundavam cada vez mais no pântano do qual deveriam me resgatar. Pisavam-me onde podiam. Também eles gostavam de me chamar de Esterreicher, atormentavam-me com isso, perseguiam-me dia e noite, eu não tinha sossego. Errava na hora de somar, errava ao dividir e logo já não distinguia o direito do avesso. Escrevia com uma caligrafia que, tão logo entregue a tarefa, era alardeada como exemplo supremo de dispersão e negligência ilimitadas. Praticamente não se passava um único dia em que eu não tivesse de me apresentar para levar alguns golpes de vara. Sabia por quê, mas nãos sabia como fora parar ali. Logo fui relegado à categoria dos chamados piores alunos, à horda dos idiotas, que acreditavam que eu fosse um deles. Para mim não havia escapatória. Os ditos inteligentes me evitavam. Não demorou muito para que eu percebesse que não pertencia nem a um grupo nem ao outro, que não me encaixava em nenhum deles. A isso veio se somar o fato de eu não ter pais de respeito, como se dizia, de ser, por assim dizer, o rebento de gente pobre, filho de ninguém. Não tínhamos uma casa, apenas morávamos numa casa, e aquilo já dizia tudo.


Thomas com Ferdl, Graml e Franziska no pátio Wieland Schmied, 1971. 

Thomas Bernhard, Origem, Companhia das Letras, 2006.
Foto: Erika Smith

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