o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 29 de abril de 2010

A pintura de Nina Matos: entre a vida e o supermercado









De boas intenções o inferno e as galerias de arte estão cheias. Almas Bem-intencionadas não produzem arte de valor e sim muita empulhação, improvisação e bobagem. Quem percorrer os seis quilômetros quadrados da 25ª Bienal de Artes de São Paulo comprovará: fotos do aeroporto de San Juan e suportes de aviões pendurados pelo teto; tubos de ventilação instalados para deixar o incauto espectador “sensível a ventos em várias partes do corpo”.

Deixando de lado o caricatural, o panorama atual das artes plásticas demonstra uma acentuadíssima hibridez. A exposição “Inéditos e Dispersos”, de Nina Matos (na galeria do CCBEU até dia 4 de abril), abre-se a esses diversificados desmontes da arte contemporânea, de umas tantas coisas da vida marcadas pelas perdas que o esforço de respirar, na atmosfera densa, fechada da cidade, exige, entre a beleza e a precariedade. O nascimento arbitrário de suas telas – misto de pinturas e colagem, pop-arte e literatura – almeja e por vezes alcança imagens de alto impacto, como em “Pretérito Perfeito”, em que a vida nem se fecha nem se abre, estacionada, quase uma miragem, ou o remoto “Picassos Falsos” (1991), as várias vias e versões de uma mesma imagem, um jogo, um brinquedo que não se extingue, mas nos escapa como a imagem do outro sempre fugidia, entre o júbilo do primeiro instante e a lágrima implacável. O que mais choca na pintura de Nina Matos é esse desejo pelo Outro, o desejo de um encontro que de antemão se sabe, não acontecerá. O outro é o que não se esclarece, nem se decifra.

Numa reação crítica a isso, a pintura de Nina Matos devora as personagens românticas, sobretudo as garotas propaganda das revistas e cartazes, mulheres tipo dama atrasada, plenos anos 60, o desbunde contra cultural nas ruas, e elas colocadas em sacrifício pela mídia em nome de um “bom produto” com a melancolia impressa no rosto e na alma. Sylvia Plath – insistentemente citada por Nina – foi a grande poeta norte-americana que procurou desativar de vez essa mulher entregue aos filhos e à casa, infeliz e consumista (“presa nesta casa/ acorrentada as crianças/ estou sentido o meu cheiro de cadáver”) – os versos são meus, feitos para Sylvia, ela mesma, um animal doméstico acuado, que para não assistir ao desmoronamento do seu mundo familiar e patético, dividido com o também poeta Ted Hughes, suicida-se em 1962, aos trinta anos. O animal que não troca de pele, perece (Nietzsche).

Eis aí uma obra melancólica, de impressões densas/tensas, num diálogo permanente com a vida urbana e seus dilaceramentos. Quase cinema, quase fotografia. Poesia, certamente. Para Nina já o título da obra deve ser necessariamente um verso, o que exclui de cara o título exíguo, o infame S/T, modestíssimos, sem retórica e ritmo febril. "Um Banquete Híbrido" (nome de sua exposição anterior), que a artista oferece e regateia: nem a Deus, nem ao Diabo; nem a mim, nem a você, pois, num certo aspecto bem particular, nessa pintura, o Outro é apenas uma cena que se dissipa, que se perde e no entanto permanece como um silêncio de despedida; um silêncio que as cores fazem falar as longínquas palavras (mais que construções esquemáticas e rótulos acadêmicos) que o corpo não esquece.



Ney Ferraz Paiva
Jornal "O Liberal", Belém março 2002


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