Por Leonardo Padura
Havana, fevereiro/2010 – Às vezes, parecia que estava morto há muito tempo, e a notícia de que morreu fisicamente no dia 28 de janeiro, recém-completados 91 anos, não desmente essa sensação estranha de ser e não estar (ou de estar e não ser) que aquele homem forjou, inclusive a golpes. Porque, talvez, há quase meio século J. D. Salinger estava morto, como costumam morrer os escritores: quando deixam de escrever. Mas o fato incontestável é que sua morte nunca seria possível porque, graças ao que já havia escrito, Salinger era, é e será, e mais a partir de agora, terrivelmente imortal (para dizê-lo com um de seus mais queridos advérbios).
Seu último suspiro (ou a passagem necessária para uma nova encarnação budista) exalou tal e qual ele havia decidido: longe do mundo, em total silêncio, naquele remoto rincão de New Hampshire chamado Cornish, onde se mantinha em autorreclusão voluntária e ferreamente decidido a viver em paz e meditação.
Morreu do modo salingeriano no qual sempre viveu. Porque nunca um escritor se pareceu de maneira tão visceral com seus personagens. Até o final, Salinger foi uma mescla do adolescente Holden Caulfield, de The Catcher in the Rye, com uma síntese de cada um dos irmãos Glass, protagonistas de várias de suas novelas e relatos. Um homem atormentado que não encontra nem encontrou um lugar no mundo material e perseguiu seu lugar na sunya (vazio) do budismo zen quando abraçou esta filosofia.
Um narrador que considerava a si mesmo o mais importante acontecimento nas letras norte-americanas desde a existência de Herman Melville, que conheceu a guerra e o fracasso literário aos 20 anos, que ganhou fama e fortuna aos 30, que deu as costas aos efeitos de sua celebridade e a toda atividade social aos 40, e aos 45 cortou a última amarra com o mundo editorial quando entregou ao The New Yorker o relato “Hapworth 16, 1924”, e, definitivamente, uma personagem literária, mais do que um homem real.
O fastio existencial, que o levou à prática do zen, e a decisão terrivelmente dramática (sim, terrivelmente) de viver em solidão e não voltar a publicar texto algum, quando já era considerado um clássico da literatura universal e um ícone de toda uma geração e dos traumas de um país, assemelha-se mais a uma obra de ficção do que a uma vida terrena. Mas, é que em Salinger tudo foi literatura e tudo o que nos legou foi mais literatura. Talvez – e seria lamentável – não tanta como deveria...
Porque o verdadeiro mistério de sua existência, que agora se converte em expectativa, é, na realidade, que seu silêncio foi apenas editorial ou se também foi criativo. A afirmação que alguns asseguram ter ouvido dele, de que continuava escrevendo, mas apenas para seu prazer, não para publicar (tão parecida com a de Juan Rulfo e sua inexistente próxima novela, anunciada por décadas), ilumina como uma luz de esperanças no fundo da caverna. O que terá escrito – se é que escreveu? Mais histórias dos irmãos Glass? Os frutos de sua contemplação budista?
Como tanta gente que hoje habita a Terra e leu Salinger, meu primeiro encontro com sua obra foi quando ele já havia rompido relações com o mundo das publicações. E o encontro foi brutal: da comoção que me causou The Catcher in the Rye (a peça que o tornaria célebre em 1951), passei à leitura – e quase morro de inveja – de suas Nine Stories (editadas em 1953), para depois cair, deslumbrado, em Franny and Zooey (meu Salinger preferido, de 1961), e terminar no apocalipse de Raise High the Roof Beam, Carpenters and Seymour: An Introduction (seu último livro, quase agônico, saído das prensas em 1963).
Desde então, me fiz militante do partido dos salingerianos, li uma e outra vez cada um de seus livros, me meti na vida de seus personagens e até me apropriei do sentido de um de seus relatos (“For Esmé, whith Love and Squalor”) para tratar de escrever, eu também, “histórias esquálidas e comovedoras”, como as que preferia ler a adolescente Esmé.
Desde então, por tantos anos, me acompanhou um sonho: que Salinger, lá de seu refúgio do norte, não só se dedicasse a meditar, mas também a escrever (como dizem que alguma vez falou). Porque um homem capaz de criar tanta beleza, de provocar a inquietude que nos deixam seus livros, de conseguir a perfeição que outros jamais poderemos sequer tocar, de engendrar criaturas capazes de mudar nossa percepção do mundo, não tem o direito de fechar a torneira e nos deixar com sede. Salinger tinha de continuar escrevendo. E, se não o fez, cometeu um dos crimes mais imperdoáveis da história da literatura.
Mas, como eu sei – claro que sei – que teve de escrever durante estes anos de silêncio, agora espero que alguém coloque em circulação seus manuscritos, e deste lado do mundo, onde aguardamos o momento de nossa próxima reencarnação, desejo a J. D. Salinger uma feliz chegada ao seu novo estado, e o desejo with love and squalor...
Leonardo Padura é escritor e jornalista cubano. Suas novelas foram traduzidas para mais de 15 idiomas e sua obra mais recente, O Homem que Amava os Cães, tem como personagens centrais León Trotski e seu assassino, Ramón Mercader.
Publicado originariamente na Revista Envolverde
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