o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A Narrativa Visual de Evandro Teixeira

Por Ney Ferraz Paiva
Não lemos as palavras: ouvimo-las; não as ouvimos: vemo-las.[Fernando Namora]
Não mais representar o visível, mas tornar visível.[Paul Klee]

O espírito dos tempos parece estar soprando na direção de uma arte cada vez mais digital, capaz de exteriorizar conteúdos não-verbais de linguagem. A poesia concreta ou visual dos anos 1950 conseguiu instaurar um longevo paraíso da imagem ao abrir um novo campo de possibilidades à arte de “representar” o mundo. Fomos lançados a uma outra sensibilidade artística que ultrapassou em muito o modelo tradicional de texto.
A fotografia de Evandro Teixeira se propaga a partir desse novo contexto de leitura e escritura. Atenta à diversidade dos sentidos e à interligação das formas do dizer, acaba por fazer da imagem uma narrativa. Não se trata mais de olhar o cotidiano através do visor de uma máquina (fotográfica/literária), “mostrar”, “registrar” e sim multiplicar, se dar a um espaço que não mais se fecha nem se fechará, que nem mesmo a escrita contemporânea recente dissolverá com suas irresoluções, suas personagens multifacetadas, não marcadas nem preestabelecidas. Teixeira vai utilizar um aparato de incontáveis espelhos que inventam um outro atravessar, a partir de uma estética atual e precisa que envolve a percepção da imagem redimensionada, em movimento, próxima, por assim dizer, ao cinema.
Um cinema em branco e preto tomado de uma energia que só aparentemente foi corroída. Em torno desse movimento transversal de raríssimas cores Teixeira vai fazer o mais belo, o mais forte que podia fazer, ao narrar num tempo fragmentado e dilacerado um imaginativo confronto entre fim e começo, messianismo e apocalipse. Seu vocabulário visual, quase sem cessar chamado equivocadamente de “fotojornalismo”, vai ocupar-se nestes longos dias e anos – quantos?, como saber? – de uma partilha de enunciados que não se perdem na trepidação do instante registrado – a máquina mais remove a imagem para junto de um tempo nômade do que marca uma data restrita vista tantas vezes e sempre a mesma, mero documento ou informação a dar significado aos acontecimentos ou às ondas de memória – sua fotografia mais escreve que descreve o mundo sob o céu.
Uma narrativa escrita para os olhos. Texto em imagem, na mesma medida em que Foucault chama a pintura de Magritte: “ele prolonga a escrita mais do que a ilustra e completa o que lhe falta”. Trinta segundos apenas e a infinita distância está desfeita, atravessada pelo orifício do tempo, como se Teixeira pudesse até mesmo desviar o leito de um rio para fazer a água refletir ou realçar a beleza, ainda que trágica. E talvez possa. Sua escrita revolve os abismos que se abrem em meio às coisas todos os dias e adensa territórios de cálculo e precisão, distância e aproximação. Sem se deter em “retratar”, desafia semelhanças e ativa pensamentos. Numa foto, Teixeira não conta uma curta história que se pega, vê e se descobre tudo. A imagem colocada numa vitrine como um ciclope paralisado, entre o mero comentário das redações. Ao contrário, ele “prolonga” e “completa” o visível, exercita uma vez mais nosso olhar nublado, cheio de tédio, que os jornais reafirmam. Engendra um espaço que se transforma em linguagem, sem aí esgotar-se.



A arte implica numa dimensão do humano, seja pela consciência, seja pelo desejo. Sempre precisamos escolher entre a alegria insensata e o prazer inexplicável, porém o artista investiga outras possibilidades: dor, loucura, morte. Teixeira soube indicar estes planos subversivos, seja no horizonte fechado da ditadura militar ou no espaço infinito banhado por luzes e cores de uma Canudos não menos trancada em seu labirinto. Rastros do abandono que se negam a desaparecer. Caso alguém volte a fazer uma consulta ao destino sobre algo tão preciosamente frágil como a vida, lá estará a mão do artista: singela e, ao mesmo tempo, perversa, buscando um sentido que corra paralelo ao sentido próprio da existência.



Temos assim uma linha divisória que deixa no passado a busca vã da imagem como ilustração ou ornamento para apostar numa ótica em que somos devolvidos à observação de nós mesmos, sem dissimular ou simular nada, na câmara-limite do tempo. Sem dar respostas combinatórias e explicativas às imagens, leva-nos para frente, pelo que prolifera e agencia, faz funcionar e intensifica, nesta que tem sido a proposta de Teixeira para os dias que seguem, se não estivermos inertes, apenas à espera (de Godot, D. Sebastião, do Juízo Final): nos mostrar como protagonistas de mais uma viagem, de todas as viagens, infinitamente. Esta é sua miragem, ela ecoa, desobstruída até as bordas da noite ou da luz solar, articulando conexões, vigílias, mistérios, incêndios, perplexidades.

Publicado originalmente na Storm-Magazine, Lisboa
O nosso trabalho de divulgação inclui o trabalho de artistas brasileiros, com cuja cultura nos identificamos e com quem mantemos relações de cumplicidade.Nesta edição, damos a conhecer o trabalho do fotógrafo Evandro Teixeira, baiano, foto-jornalista do Jornal do Brasil que, ao longo dos anos tem fixado, tanto os momentos mais marcantes da nossa história recente, como cenas da vida da rua. Evandro Teixeira é, ao lado de Gabriela Butcher (por exemplo) um dos mais importantes fotógrafos contemporâneos brasileiros.

http://www.storm-magazine.com/novodb/arqmais.php?id=311&sec=&secn=

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