o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 1 de julho de 2012

Al Berto . Coimbra . Janeiro 1992



Antes de começar a ler só queria perguntar-vos se vocês não são capazes de estar em silêncio cinco minutos com vocês mesmos para conseguirem estar em silêncio às vezes quando é necessário com os outros, e quem não gosta sai e volta a seguir porque se for um merda, deixem-me acabar, se faz favor, se for um merda com uma guitarra que faz três acordes vocês estão em silêncio porque se curte e é imensamente bom para a carola, a poesia, pá, lamento, boa ou má, talvez não fosse má ideia ouvir. E suponho que há montes de gente aqui nesta sala que nunca abriu um livro de poesia sequer. E é uma questão de respeito pelas outras pessoas e por aquilo que elas fazem. Eu vou dormir mas pagaram-me para estar aqui, inclusivamente, e eu não publico livros para idiotas. Importas-te de servir mais um que é para eu me animar? Eu estou bem, só preciso de um reforço aí no copo. O que eu acabo de dizer não obriga ninguém a gostar daquilo que eu escrevo, inclusivamente. Já começo, se for preciso eu espero. À vossa. Eu estou lindamente. Posso começar? Também me posso ir embora, de qualquer maneira não tem importância nenhuma, para mim é-me igual. Não, eu estou lindamente. Eu hoje estou numa de chato também, se não te importas, também tenho o direito. Agora é quando me apetecer também. E como eu não sou a Anabela, não canto, não é, é um problema, ela abre o gasganete, pá... Falta gelo, é horrível isto assim, não leio nada sem gelo, toma. Gelo aí para dentro. Eu já começo, eu vou ler, juro. Nem penses, agora é quando eu quiser. Não, Helder, tu não me conheces! Ouve lá, queres vir comigo? Vais tu primeiro! Agora começo quando me apetecer e se calhar nem sequer leio que é para chatear! Não, eu até me vou embora, não preciso de ler nada, eu. Eu não preciso de ler nada. Mas eu não preciso de ler nada! É-me igual, mais do que eu já bebi... costumo tomar o pequeno-almoço às 10 da manhã. Bom, eu vou tentar abstrair-me do som de fundo.

E um caralho para quem faz barulho.

Vocês são mesmo ordinários, foda-se. Acho que não leio mais nada, não me apetece. Não pensem que me vou embora sem dizer meia dúzia de coisas, eu por acaso lamento imenso que pessoas que têm um nível, penso eu, ou não têm, de facto, é a primeira vez que me acontece e devo dizer que desde 1985 que leio poemas em público, é a primeira vez que não consigo ler ou que estou a ler com imenso sacrifício porque é perturbante ter um barulho e a falta de respeito pelo trabalho dos outros, é a mesma coisa que eu entrar quando vocês estão a fazer exames e eu digo assim então e agora se fossem apanhar no cu, não é, é giro, é muita giro, é fresco, pá, é porreiro à brava. É mais ou menos a mesma coisa só que eu já não faço exames há vinte anos, sou profissional, no sentido que sou... eu sou escritor há vinte anos, há vinte anos que escrevo, há dez que publico neste país, tenho imensa pena da vossa ignorância, ou da ignorância de alguns. Primeiro, e as outras pessoas que aqui estão também, não estou sozinho, não estou, felizmente não estou sozinho! Porque está aqui o Manuel Fernando, está aqui o Helder Moura Pereira, o António Franco Alexandre, o Paulo da Costa Domingos, se vocês não conhecem são mais ignorantes que aquilo que eu pensava, mas muito mais. O que vocês precisam é de Saramagos, muitos. E mais mal escrito, porque ele até nem escreve muito mal. Lamento imenso, mas eu não vou ler mais nada, porque não é possível. As vaias fazem parte também de uma paixão, do mito. Muito obrigado. E eu só trabalho para o meu mito, mais nada. Agradeço aqueles que também me vaiaram porque estão a contribuir para isso, largamente, nesta cidade, sobretudo onde eu nasci, sobretudo na cidade onde eu nasci, é porreiro, porque é a primeira vez que fui vaiado. E é a primeira vez que não houve respeito por mim nem pelas outras pessoas que aqui estiveram, que estão de boa vontade e sem mais algum interesse. Muito obrigado, adorei o whisky que vim tomar a Coimbra. Não vou voltar tão cedo.

terça-feira, 26 de junho de 2012


imagens pesam mais do que o mar

alessandra negrinni como a vi em seus quarenta anos



ela não ri: move-se esquiva de um lado a outro
anda a casa como se fizesse fotos
pés trocados olhar confuso
faz pose pra ele pra o deter de quem?
fisicamente opostos & partidos
o mundo vira de ponta-cabeça
ele a olha com expressão vazia
voz baixa fala devagar
diz ter um problema enorme
precisa urgentemente viajar
ir ao mar ao fogo às nuvens
“ou quem sabe de um bom xampu anticaspa”
sempre diz isso pra fazer as pessoas rirem
ela não ri ele pergunta “por que você não ri?”
desde pequena que não sabe
rir nem dos pequenos dramas
“ria se alguém está sofrendo
perto de você – por causa de você”
pra ela o inferno é isso
ele nada sabe a respeito
não presta muita atenção
suspensa no ar sem deixar





ney ferraz paiva

CANTO VIGÉSIMO OITAVO

Tenho a impressão que a avareza
não é um defeito se acontece na velhice
quando  o tédio já invadiu o cérebro.
A mim salvou-me aos setenta anos
quando uma tarde comecei a apagar as luzes
e meu irmão tropeçava por todo o lado.
Agora recolho os fósforos usados
(com algodão podem servir para limpar os ouvidos)
e de manhã à noite
tenho muito que fazer:
quero que meu irmão deite pouco açúcar
no leite e eu, guloso por mel,
lambo apenas uma colherzita ao domingo,
em pé, entre as duas portas do guarda-louça.
A toalha não é necessária, usámos um pedaço de papel
que depois serve também para acender o lume.
De noite se alguém se levanta
basta uma candeia enquanto o outro permanece no escuro.
Assim passa uma hora, passam duas, passa um mês
e a cabeça trabalha.


Tonino Guerra «O Mel», Assírio e Alvim
imagem: Saul Leiter

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Para o livro de Literatura de segundo grau


Não leias odes, meu filho, lê os horários
(dos trens, dos ônibus, dos aviões):
são mais exatos. Abre os mapas náuticos
antes que seja tarde demais. Sê vigilante, não cantes.
Chegará o dia em que eles, de novo, pregarão listas
no portão e desenharão marcas no peito daqueles que dizem
não. Aprende a ir incógnito, aprende mais do que eu:
a mudar de bairro, de passaporte, de rosto.
Entende da pequena traição,
da salvação suja de todos os dias. Úteis
são as encíclicas para se fazer fogo,
e os manifestos: para a manteiga e sal
dos indefesos. É preciso raiva e paciência
para se soprar nos pulmões do poder
o fino pó mortal, moído
por aqueles, que aprenderam muito,
que são exatos, por ti.







Poema: Hans Magnus Enzensberger
Tradução: Kurt Scharf e Armindo Trevisan

Imagem: Carlos Vergara

quarta-feira, 2 de maio de 2012

adeus às coisas aqui embaixo


tento morrer agora
que os cinquenta anos
travam meus pés
numa armadilha
e a poesia continua a ser
minha ocupação
não posso dar um passo
à frente nem atrás
preciso tentar a morte
com determinação
atento à voz do Cosmo
aos gritos de Minerva
morrer no mais refletido
onde chego a ser dois
enxertado em livros
léxicos tipografias
hastes subterrâneas
sem nada levar da arte
além da minha loucura




poema: ney ferraz paiva
imagem: graciela itubirde

segunda-feira, 23 de abril de 2012

ERA UMA VEZ FERNANDO DINIZ



quis ser vilão de história em quadrinhos
anjo de rua com plumagem de pássaros
 isso de qualquer forma acabou sendo
paisagens estriadas desertos bifurcados
face selvagem martelada no painel caos
de longeva infância & breve vida adulta
tipo exato de louco que se quis moldar
pedra borboleta margarida estrela
razão limbo incerto da alvorada



Fernando diniz



Ney Ferraz Paiva

segunda-feira, 16 de abril de 2012

"cambridge", desenho de sylvia plath


brasília


será que elas existem
essas pessoas com torso de aço
cotovelos e olhos alados

aguardando tufos
de nuvem, para lhes dar expressão
esses super-homens! 

e o meu bebê deixado num prego
impulsionado, conduzido
adentro, grita, obeso

ossos exalam a distância.
e eu, quase extinta,
seus três dentes de corte

 acertam meu polegar 
e a estrela,
a velha história.

no caminho encontro ovelhas e vagões,
terra vermelha, sangue materno.
ó tu que devoras

homens como raios de sol, deixe
este
espelho, desfigurado, não redimido

pela aniquilação da pomba,
a glória
o poder, a glória.


sylvia plath, londres, 1962
livre versão: ney ferraz paiva


ao centro, quadro com o poema "brasília" ilustrado com o desenho "cambridge".
exposição de sylvia plath na mayor gallery, londres, 2011.



Will they occur,
These people with torso of steel
Winged elbows and eyeholes

Awaiting masses
Of cloud to give them expression,
Thes super-people! 
And my baby a nail
Driven, driven in.
He shrieks his grease

Bones nosing for distance.
And I, nearly extinct,
His three teeth cutting
Themselves on my thumb 
And the star,
The old story.

In the lane I meet sheep and wagons,
Red earth, motherly blood.
O You who eat

People like light rays, leave
This one
Mirror safe, unredeemed

By the dove's annihilation,
The glory
The power, the glory.


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domingo, 15 de abril de 2012


tédio

folhas de chá, negando visões de desastre,
prometem vida que não vai se cumprir:
o tédio cruza a palma de sua mão
mas nem a cigana prevê perigo aí.
estéril advertência: o cavaleiro ingênuo
recua aos dragões e ogres impotentes
enquanto princesas blasées consideram
absurdo inclinar-se, na arena, ao terror.


a besta, no bosque de henry james, não saltará,
ofuscando ainda mais a fama do herói em crise;
e quando anjos à espreita soarem a divina trombeta,
a uma plateia entediada ou, afinal, de olhar ansioso,
atenta ao desafio - não aos apelos e aos prêmios,
não deixará escapar pela porta da ruína, mulher e tigre.


sylvia plath
livre versão: ney ferraz paiva

terça-feira, 10 de abril de 2012

Protesto poético 


Minha mãe enterrada
é exumada para reprises...

Agora querem fazer um filme
Para os incapazes
De imaginar o corpo
Com a cabeça no forno.
Os comedores de amendoim, divertidos
Com a morte de minha mãe, irão para casa ...
Talvez comprem o vídeo.
Só precisarão pressionar 'pause'
Se quiserem colocar a chaleira no fogo
Enquanto minha mãe segura sua respiração na tela
Para terminar de morrer depois do chá...


Eles pensam que eu deveria adorar ... eles pensam
Que eu deveria lhes dar as palavras de minha mãe
Para encher a boca de seu monstrengo
Sua Boneca Sylvia Suicida
Que vai saber andar, falar
E morrer quando eles quiserem
Morrer e morrer de novo
Viver sempre morrendo.







Frieda Hughes (excerto) 

quarta-feira, 21 de março de 2012

Destruir o  mistério é com efeito a maior das infâmias - 
destruí-lo puramente claro. E como é arrepiadora e
genial, por isso mesmo,a concepção do seu Fausto!...
de uma carta de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa em 5-2-1916 


Não leio já; queria abrir um livro
E ver, de chofre, ali, a ciência toda...
Queria ao menos poder crer que, lendo,
E em prolongadas horas lendo e lendo,
No fim alguma cousa me ficava
Do essencial do mundo, que eu subia
Até ao menos cada vez mais perto
Do mistério... Que ele, inda que inatingido,
Ao menos dele que eu [me] aproximava...
Não fosse tudo um (...)
Como uma criança que a fingir sobre
Uns degraus que pintou no chão...

Não leio. Horas intérminas, perdido
De tudo, salvo de uma dolorosa
Consciência vazia de mim próprio,
Como um frio numa noite intensa,
Em frente ao livro aberto /vivo e  morro/...
Nada... E a impaciência fria e dolorosa
De ler p’ra não sonhar, e ter perdido
O sonho! Assim como um (...) engenho
Que, abandonado, em vão trabalha ainda,
Sem nexo, sem propósito, eu môo
E remôo a ilusão do pensamento...
E hora a hora na minha estéril alma
Mais fundo o abismo entre meu ser e mim

Ditoso o tempo em que eu sonhava, e às vezes
Eu parava de ler para seguir
Os cortejos em mim... Amor, orgulho,
 – Crenças inda! – pintavam os meus sonhos...
E com muita insistência [?], eu era (...)
O amante de belezas (...)
E o rei de povos vagos e submissos;
E quer em braços que eu sonhava, ou entre
As filas (...) prostradas, eu vivia
Sublimes nadas, alegrias sem cor.

Mas
Hoje nenhuma imagem, nenhum vulto
Evoco em mim... Só um deserto aonde
Não a cor dum areal, nem um ar morto
Posso sonhar... Mas tendo só a ideia,
Tendo da cor o pensamento apenas,
Vazio, oco, sem calor nem frio,
Sem posição, nem direção , nem (...)
Só o vazio lugar do pensamento...





Fernando Pessoa, FAUSTO, Tragédia Subjetiva
imagem: Yeong Deok

terça-feira, 20 de março de 2012

AMIGO


Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.
Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa! 






Alexandre O'Neill 
Ben Zank 


sábado, 10 de março de 2012

Um filme sobre a amizade e não sobre neonazistas

Winfried Bonengel
Inspirado na história da vida de Ingo Hasselbach, jovem líder neonazista no leste alemão, o filme de Winfried Bonengel é baseado no livro Acerto de Contas, escrito a quatro mãos por Bonengel e Hasselbach. O longa, que participou da mostra competitiva do Festival de Cinema de Veneza, narra os encontros e desencontros de Heiko e Tommy, dois jovens da ex-Alemanha Oriental, que sonham com a vida no Ocidente.


Um belo dia, um deles desaparece e volta com tatuagens neonazistas nos braços. A tentativa conjunta de ambos de escapar do comunismo em 1986, três anos antes da queda do Muro de Berlim, termina frustrada. Tanto Heiko quanto Tommy acabam na prisão. Heiko é violentado por outros detentos e somente escapa da morte graças à ajuda de Tommy e seus amigos neonazistas.


Reencontro
O destino separa os amigos. Quando voltam a se encontrar, em 1990, em uma Berlim Ocidental já sem o Muro, Heiko mostra-se um militante de extrema direita. Tommy, a quem foi possível fugir para a Alemanha Ocidental, mostra ter conseguido superar seu passado neonazista e tenta afastar o amigo dos círculos de extremistas.
Em entrevista exclusiva a Eleonora Volodina, da DW-World, Winfried Bonengel fala do que o levou a se dedicar ao tema, dos contatos com ex-oficiais da SS durante o trabalho de pesquisa, do caráter político do filme e da necessidade de debate sobre o extremismo de direita.


DW-World – Por que você retoma o tema do documentário Profissão Neonazista, usando agora os recursos da ficção?

Bonengel – O interesse em rodar um filme sobre o mesmo assunto foi mostrar que de pessoas sensíveis, bem humoradas e inocentes podem resultar neonazistas. Isso é mais fácil expressar em um filme de ficção do que em um documentário. Este, embora mostre as estruturas, não pode abordar o fator emocional, que é muito importante na discussão do porquê de as pessoas jovens acreditarem nas promessas de tais grupos, que, como seitas, prendem os jovens e lhes dão o que não encontram em outros lugares.


DW-World – Esta é uma história real...

Bonengel – 60% dos fundamentos do filme são acontecimentos reais, vividos não necessariamente por Ingo Hasselbach, mas também por outras pessoas. A história dele é uma certa base. Ela é fascinante e, há dez anos, eu já sabia que seria um material interessante para um filme. Ingo Hasselbach esteve, acima de tudo, presente nas cenas da prisão. Suas experiências de ex-detento foram de um valor inestimável, porque o que importava era a autenticidade. Não queríamos mostrar nada que não tivesse realmente acontecido. Queríamos nos manter fiéis à realidade e isso só foi possível na medida em que falamos constantemente com testemunhas que puderam contar essa experiência vivida. Nas pesquisas para o filme, conheci também ex-criminosos de guerra da SS, nos quais eu me orientei, sem citar nomes. Eles também estiveram presos. E estes caras têm hoje influência sobre a juventude. Isso foi para mim o mais amedrontador: na ex-Alemanha Oriental, pessoas não criminosas eram colocadas nas prisões ao lado dessa gente.

DW-World – Este é um filme político?

Bonengel – A mim interessam, em primeira linha, as emoções e o caráter trágico, histórias de pessoas reais. Eu parto de um indivíduo e de seu aspecto trágico e tento transportá-lo de forma que eu, ou qualquer um que veja o filme, reflita: como eu reagiria, se estivesse no lugar dele. Mas eu parto pouco do aspecto político, parto das pessoas. Para mim, é um filme sobre amizade e não sobre neonazistas, embora seja também um filme político, é claro.


DW-World – Um dos dois jovens, Heiko, passa de anarquista a divulgador da ideologia nazista.

Bonengel – Heiko procura apoio entre os nazistas, porque se não fizer isso irá provavelmente morrer na prisão. Porque não consegue viver nessa situação. Ele procura os nazistas por uma questão de sobrevivência e é tomado e doutrinado por eles. Heiko está cheio de ódio e precisa se livrar desse ódio. Isso só vai ser possível, no entanto, após a queda do Muro.


DW-World – O outro herói, Tommy, foi o primeiro a se aproximar dos neonazistas. Depois, para salvar Heiko, entra para a Stasi (polícia política da ex-Alemanha Oriental). Mais tarde, descobre no ocidente os efeitos relaxantes da cannabis e começa a pensar que "os turcos também são gente".

Bonengel – Tommy é, para mim, um anarquista que não pode ser classificado. Ele é esperto e está sempre um passo à frente de seu amigo. Além disso, tem a sorte de ser forte o suficiente para não se deixar convencer por essas coisas. Ele reconhece instintivamente que o caminho está errado.


DW-World – Por que o movimento dos neonazistas é mais forte no leste alemão?

Bonengel – Eu não acredito que seja algo específico do leste alemão. Este é um problema de todo o país, de toda a Europa e de todo mundo. Há direitistas em todos os lugares. Trata-se de um fenômeno mundial. Na França, Le Pen atingiu 20% dos votos. Acontece em todos os países, quando os jovens se sentem os últimos em uma sociedade, sem qualquer espécie de chance. Aí passam a jogar a culpa nos mais fracos que são, na maioria das vezes, os estrangeiros. Isso não é um problema do leste alemão. Acredito que seja no oeste do país pelo menos tão forte quanto no leste.


DW-World – Não são apenas razões sociais, como o desemprego, que levam os jovens aos círculos neonazistas. Nos países que viveram sob o comunismo, onde as pessoas perderam a segurança garantida pelo Estado, razões psicológicas exercem um grande papel. Isso se vê na Rússia e também no leste alemão.

Bonengel – Um país que construiu um muro e uma cerca ao seu redor, para evitar que seus cidadãos saíssem rumo ao estrangeiro, já é especial. Meramente no aspecto visual, parece uma prisão. As pessoas têm, no entanto, um impulso de liberdade muito grande, que não pode ser expressado. Mais tarde, acabam como inocentes na prisão. O filme mostra como de jovens inocentes e sensíveis resultam primeiro vítimas e depois culpados. Toda pessoa que um dia foi vítima pode vir a se tornar culpado de outra forma. É a perversão da vítima.


DW-World – Essa é uma desculpa?

Bonengel – Não, de forma alguma. Eu tento explicar as coisas e daí pode se fazer algo contra. Quando não se tenta entender como as coisas acontecem, não se pode fazer nada contra elas. É esse o pensamento que está por trás. Não acredito que se possa conseguir algo mostrando da distância os nazistas – como acontece com freqüência – como seres completamente inumanos, monstros do começo ao fim. Isso é simples demais. Seria bom se assim fosse, pois aí eles seriam mais facilmente identificáveis e seria mais fácil fazer algo contra. Mas as pessoas são, com freqüência, inteligentes e têm uma certa forma de sensibilidade e humor. É isso que as faz mais perigosas, em função desses fatores humanos. Isso eu acho muito mais inquietante.


DW-World – Mostrar isso no filme certamente não foi fácil...

Bonengel – Eu quis, conscientemente, que o protagonista parecesse no início do filme especialmente ingênuo e fosse aos poucos se modificando. Esse é um papel extremamente difícil, um desenvolvimento do anarquista ingênuo, de alguém que é violentado e precisa suportar humilhações dolorosíssimas, até ao neonazista. É um desafio extremo. Aí até mesmo atores renomados teriam grandes problemas. Representar um papel desses é uma exigência em si. 


Eleonora Volodina, da DW-World